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terça-feira, 21 de novembro de 2017

FBI, FIFA e a nota oficial "tautista" da Globo, por Wilsom Ferreira Vieira.






Nem a Patafísica (a “ciência das soluções imaginárias”) de Alfred Jarry ou o teatro do Absurdo de Backett conseguiriam imaginar um texto tão tautológico, circular, auto-referencial e metalinguístico como a nota oficial da Globo diante do escândalo das denúncias na Justiça dos EUA do pagamento de suborno pela emissora para a FIFA para ter a exclusividade nas transmissões do futebol: “após dois anos de investigações internas, a Globo apurou que jamais realizou pagamentos não previstos em contratos...”, leu a nota um constrangido jogral de apresentadores do JN. Desde que o ex-apresentador do Globo Esporte, Tiago Leifert, transformou a inauguração de um ônibus-estúdio em notícia mais relevante do que o próprio treino da seleção brasileira que deveria cobrir, a emissora vive um processo de negação “tautista” (tautologia + autismo) no qual transforma “eventos” em produtos próprios, criando uma atmosfera de amoralidade e blindagem. Assim como as telenovelas. Mas isso pode lhe custar caro: não perceber que a investida do FBI contra a FIFA (atingindo diretamente a Globo) é mais uma estratégia de lawfare na geopolítica dos EUA. Dessa vez, para reconfigurar o cenário da grande mídia mundial.

Dessa vez não teve o tradicional bordão “policiais federais nas ruas...” com que orgulhosamente anuncia mais uma operação da Lava Jato nos telejornais globais.



E também não teve o tradicional giro das “repercussões internacionais” nos jornais do planeta sobre as notícias dos escândalos nacionais, como foi recentemente com a prisão de Carlos Arthur Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro.



E muito menos infográficos dando destaque para trechos das transcrições das delações premiadas sob a vozes estudadamente indignadas dos apresentadores dos telejornais da Globo.



Não. Dessa vez apenas olhares constrangidos e uma locução também estudada, tentando dar um tom protocolar e burocrático, sobre o julgamento da corrupção na FIFA envolvendo pagamento de subornos de seis empresas de mídia para a exclusividade de direitos de transmissão do futebol – Fox Sports, Televisa, Media Pro, Full Play, Traffic e Globo.



Sendo que a Globo entra no imbróglio de forma direta, através da Traffic do jornalista J. Hawilla, ex-Globo. E dono da TV TEM, rede com emissoras de quatro cidades no interior paulista, todas afiliadas à Globo.



 Depois do alerta vermelho da Interpol, o advogado ítalo-argentino Alejandro Burzaco (ex-presidente de uma empresa argentina de marketing esportivo que teria sido a intermediária no pagamentos das propinas) se apresentou em uma delegacia de polícia na Itália e se tornou uma das testemunhas-chave sobre os pagamentos de propinas à FIFA.




Redes sociais obrigam Globo a dizer alguma coisa




Essas denúncias sobre as relações promíscuas da Globo com CBF e FIFA para garantir o direito de exclusividade na transmissão dos jogos são antigas. Por exemplo, em 2012 a Record denunciava que no Brasil o método da licitação da FIFA para os direitos de transmissão da Copa do Mundo era diferente em relação aos outros países: “fora do horário comercial, sem ser à luz do dia e de forma transparente”, protestou a emissora paulista na época em nota oficial.



A Record havia sido preterida, mesmo com uma proposta que cobria a da Globo.



Fosse em outros tempos, a delação de Burzaco (graças à Justiça norte-americana enquanto aqui no Brasil para o PGR e Ministério Público nada vem ao caso) mereceria o solene silêncio na programação da Globo. Mas hoje, essa estratégia de negação deixou de ser viável por causa das redes sociais.



Assim como no caso William Waack, a delação nos EUA impactou as redes sociais e obrigou a emissora a se manifestar. Além do puro pânico demonstrado pelo jogral constrangido dos apresentadores, a nota oficial da Globo revela o sintoma de uma estratégia de sobrevivência que a Globo vem assumindo nesse século diante do avanço das novas tecnologias e a mudança rápida do cenário político-econômico: o tautismo (tautologia + autismo).




O que é “tautismo”?




Antes de qualquer coisa, vamos esclarecer esse conceito de “tautismo”. Nada tem a ver com o transtorno do espectro autista no campo da saúde mental. Esse neologismo foi criado pelo pesquisador francês Lucien Sfez para se referir à “comunicação confusional”: estágio no qual um determinado sistema de comunicação, pelo seu gigantismo e poder, começa a traduzir qualquer informação externa a partir de uma descrição que o sistema faz de si mesmo.



É o que os teóricos dos sistemas (Varela e Luhumann) chamam de “fechamento operacional” – de forma tautológica e auto-referencial os sistemas negam a realidade, filtrando-a sob seus próprios termos - mais sobre esse conceito clique aqui.



Nos tempos em que o pai Roberto Marinho era vivo, pelo menos ainda havia uma percepção político-estratégica da realidade: Marinho sabia o momento certo de jogar ao mar seus campeões quando sentia os ventos das mudanças, como foi no caso do impeachment do presidente Collor em 1992.



Mas os seus filhos parecem sofrer dessa crônica negação tautista, como revela a nota oficial lida de forma constrangida através dos teleprompters pelos apresentadores do JN: “após dois anos de investigações internas, a Globo apurou que jamais realizou pagamentos não previstos em contratos...”, dizia a nota.



A Globo noticiava que o Grupo Globo fora acusado de pagar propina e a própria Globo investigou, chegando ao veredicto de que Grupo Globo era inocente das acusações feitas numa corte em Nova York. E mais! Disse que o Grupo “não tolera qualquer pagamento de propina” e que os “princípios editoriais não permitem que seja diferente”.



Nota oficial cuja lógica é delirante, circular, auto-referencial e tautológica. Nem a Patafísica (a “Ciência da soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções”) de Alfred Jarry ou o Teatro do Absurdo de Samuel Beckett poderiam imaginar tal peça dramatúrgica bizarra.




A metástase




Em última análise, essa nota revela a metástase (o tautismo) de algo que o antigo documentário Brasil: Muito Além do Cidadão Kane, feito pelo Channel Four da Inglaterra em 1993, acusava: como pode uma empresa privada, funcionando sob concessão pública, ter o monopólio das comunicações sem nenhum tipo de regulação ou controle públicos? Para o diretor do documentário, Simon Hartog, a Globo seria praticamente um governo dentro do próprio Estado brasileiro.



Pela delirante nota divulgada pela emissora, somente a Globo poderia investigar a si mesma e isso bastaria! Dois anos de investigação sem nuca ter prestado contas ao distinto público – a não ser quando se vê pivô em um escândalo de proporções internacionais.



Se no passado, mesmo com a consciência do poder político que representava o monopólio da emissora, Roberto Marinho respeitava a mudança de direção da biruta (aquela do aeroporto) que sinalizava mudanças de cenários, agora seus filhos se atiraram de cabeça na aventura de tornar a Globo em um partido de oposição política, cujo ápice foi impeachment de 2016 – levando a uma redução do ativo em caixa de 3 bilhões para R$ 990 milhões segundo o balanço da Globo de 2016.



E que ainda convive com a perda do grau de investimento dos títulos da dívida do Grupo Globo nos EUA – os chamados “bonds”, títulos convertidos da dívida pelos bancos Itaú, Santander e Bank of America – clique aqui.



É notável como nos últimos anos a cobertura esportiva, e principalmente o futebol, feita pela emissora assumiu cada vez mais um caráter metalinguístico e auto-referencial – tautológico.


Do ônibus-estúdio ao velório narrado por Galvão Bueno


Desde que em 2012 o então editor e apresentador do Globo Esporte Tiago Leifert transformou a inauguração de um ônibus estúdio em um evento mais importante do que o treino da seleção brasileira, passando pelo cúmulo de Galvão Bueno narrar o “turbilhão de emoções” do velório da Chapecoense, chegando ao ápice no qual jornalistas globais entrevistarem jornalistas veteranos da casa durantes as Olimpíadas no Rio para contar a história do evento,  as transmissões esportivas são cronicamente tautistas.

Tão auto-referencial e metalinguístico (afinal, sintoma de que a Globo não cobre mais “eventos” mas produtos da própria emissora, assim como uma telenovela do Projac) que ficou sujeita a “derrapadas”, como o ato falho da apresentadora Monalisa Perrone, no telejornal “Hora 1”, no qual “previu” o mando de campo da partida final da Copa do Brasil, mais de 24 horas antes do sorteio na sede da CBF, no Rio de Janeiro – clique aqui.

Essa negação tautista da realidade dentro de um sistema de comunicação obeso, pesado e fechado em si mesmo, é que propicia “atos falhos” como a galhofa racista de William Wack diante de uma equipe de produtores e operadores de câmeras ou a “previsão” do resultado de um sorteio ao vivo em um telejornal.

Globo e delações da JBS: fritar Temer para esconder da pauta escândalos da FIFA

Tautismo e a atmosfera de amoralidade e blindagem


Certamente o tautismo é capaz de criar uma atmosfera de amoralidade e de falsa sensação de blindagem diante da realidade fora dos estúdios de TV.

A reação padrão da Globo como sempre é tentar tapar o sol com a peneira para o distinto público – além dos shows de auto-referencia e metalinguagem, tenta desviar as atenções através da narrativa Lava Jato/denúncias/escândalos da crônica do desmonte nacional.

Por exemplo, diante do potencial escândalo da Operação Rimet, do Ministério Público espanhol, em maio desse ano que identificaram pagamentos de propinas na venda de direitos de transmissão da Copa do Brasil (clique aqui), a Globo contra-atacou com a fritura do presidente Temer batendo bumbo das delações dos irmãos Batista, da JBS, dando total apoio ao PGR de Rodrigo Janot.

É de se esperar que diante das citações diretas à Globo nas cortes dos EUA, a emissora também contra-ataque com novas delações que farão policiais federais irem para as ruas.  E, como sempre, ao vivo.

Mas toda essa narrativa tautista torna a Globo cega ao xadrez geopolítico que a estratégia de lawfare norte-americana põe em ação nesse momento: sob o pretexto do combate às fake news e à corrupção em nome da transparência das relações comerciais internacionais, grandes corporações como Google e Facebook derrubam páginas e censuram conteúdos na Internet, enquanto FBI e o pesado dispositivo de lawfare dos EUA são a vanguarda de uma reconfiguração da grande mídia internacional.

E a Globo está fora desse brave new world. Ou será que os filhos de Roberto Marinho sabem disso e se preparam para vender a emissora?  

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