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quarta-feira, 20 de julho de 2016

Impeachment – julgamento jurídico ou político?, por RPV





Num evento recente nos EUA com a participação do Ciro Gomes e dois consultores brasileiros, entrou em debate o impeachment da Presidente Dilma. Nessa discussão, um dos consultores concordou com Ciro que havia controvérsias sobre o cometimento ou não do crime de responsabilidade, porém, alegou que isso era irrelevante, uma vez que se tratava de um julgamento político e não jurídico.
A partir do argumento desse consultor (representativo do senso comum da maioria dos defensores da queda da presidente eleita) pode se deduzir duas coisas:
a) há dois tipos de julgamento, um político e outro jurídico;
b) o impeachment se enquadra no primeiro caso.
Vamos por parte. Partindo do pressuposto de que está correta a tese de haver dois tipos de julgamento, qual seria a diferença entre eles?
Segundo o consultor e cia. (sic) um julgamento jurídico seria um ato neutro, imparcial. Em suma, técnico. Enquanto um julgamento político seria uma ação de livre arbítrio. Isto é, um ato de livre expressão da vontade do julgador.
Para deixar mais claro. Num processo político, bastaria o julgador querer condenar ou absolver e pronto. O que valeria, nesses casos, seria tão somente a vontade de quem julga. Por outro lado, num processo jurídico seria necessário seguir certas regras. Não basta querer condenar ou absolver, é preciso, por exemplo, haver uma lei anterior definidora do crime, um fato tipificado, provas e contra provas, o contraditório, etc, etc. Nesse último caso, o julgador não seria livre para arbitrar segundo sua vontade, pois estaria preso a certo regramento.
Esses argumentos suscitaram algumas dúvidas.
Um julgamento de cassação de mandato de deputado, por exemplo, é jurídico ou político? Nesse caso, basta a maioria dos deputados querer cassar um colega para que isso se efetive? É assim que funciona um julgamento político no Congresso? São simples atos de vontade dos deputados? Será que um deputado cassado, sem que haja um fato determinado que caracterize quebra de decoro, não pode apelar ao STF e ter, imediatamente, seu mandato de volta?
Por outro lado, num tribunal do júri, as decisões são jurídicas ou políticas? Caso os jurados (assim como os políticos) fossem escolhidos pela sociedade para participarem desse tribunal ele deixaria de ser jurídico? Além disso, nesses tribunais as falas das partes – defesa e acusação – são marcadas por discursos jurídicos ou políticos? Há nesses julgamentos liberdade de fala para sensibilizar a livre expressão da vontade dos julgadores, ou os discursos se restringem a argumentos lógicos e fáticos? E se o resultado emanado de um tribunal do júri é uma decisão eminentemente técnica, porque não fazer um programa de computador, onde se alimentariam os dados a serem julgados e o programa daria o veredito - técnico, neutro, imparcial?
Diante desses questionamentos vem a pergunta. Será que o pressuposto primeiro supracitado está correto - há dois tipos de julgamento?
Acredita-se que sim. Pois, de um lado, por exemplo, há uma eleição - um julgamento feito pelo povo para escolher seus representantes. E, de outro, um tribunal do júri - o julgamento de uma pessoa acusada de um crime. São processos de características distintas, certo?
Ok; mas qual é a diferença entre eles?
Será que a diferença é a livre formação da consciência do julgador (seja ele o povo em geral, uma parte representativa dele ou um juiz de direito)?
Ou será que a diferença é a “coisa” que está sendo julgada - no último caso, um ato pretérito e, no primeiro, o porvir?
O que o senso comum não percebe, ou não quer perceber, é que a diferença entre os dois tipos de julgamentos não está, essencialmente, na forma de julgar. Ou seja, não há diferença entre os julgamentos no que diz respeito a “construção da livre da consciência do julgador”, pois, independentemente de quem julga (juízes, políticos, ou o povo) e onde se julga (Fórum, Congresso, cabine de votação), todos os árbitros se valem da livre construção de suas consciências1.
Por outro lado (e aí está o cerne da confusão que deliberada ou inconscientemente se faz), pelo fato dos dois julgamentos produzirem consequências distintas para o paciente, exigem-se procedimentos diversos na forma de julgar. O que não distingue a essência da decisão – uma (deliber)ação humana.
Em outras palavras, quando se avalia um ato pretérito, devido a possibilidade de haver, em caso de culpa, uma consequência objetiva para o paciente, isto é, a aplicação de uma pena, preza-se pela cautela. Ou seja, um rigoroso regramento do processo decisório. E daí a exigência de uma técnica (a ciência jurídica ou o Direito) para sua execução. Por outro lado, quando o veredito versa sobre uma expectativa futura, sem que o resultado desse julgamento tenha implicações penais para o paciente, esse processo pode ser feito de maneira mais livre, sem a necessidade de um rígido regramento.
Entretanto, o pensamento vulgar fantasia a realidade para adaptá-la ao seu capricho, não percebendo a incoerência de misturar aparência (local – fórum, congresso, cabine de votação –, e árbitro – juiz, parlamentar, cidadão leigo) com essência (coisa julgada - atos passados ou expectativas futuras2). Com isso, de forma apressada e voluntariosa se ignora que o Júri pode ser feito em qualquer local e que o árbitro não é o juiz de direito, mas o povo, indiretamente representado.
Assim, desprezando essas características do Júri (por exemplo), passa-se a acreditar que, pelo fato do processo de impeachment se dar no Congresso e o árbitro ser um deputado (político!), a vontade deleimpera para julgar retroativamente e punir, se assim desejar. Ora, na modernidade, a vontade humana não impera para julgar regressiva e punitivamente.
O que a sociedade moderna criou, apesar da incompreensão de alguns, foi algo chamado de ciência jurídica, ou simplesmente, Direito. E isso quer dizer que não se pode mais, desregradamente, julgar (com implicações penais) o ato pretérito de um sujeito. Nesses casos, o Direito impera sobre a vontade humana. Pelo menos, nas sociedades modernas, aliás, uma conquista civilizatória que os brasileiros parecem querer abrir mão.
Mas o e impeachment, afinal, é um julgamento político ou jurídico?
Agora está fácil de responder, pois, com base nos argumentos expostos, basta distinguir o objeto em julgamento. Ou seja, se o que está em avaliação é um ato pretérito (o “crime de responsabilidade”) ou uma expectativa futura (um novo governo)?
A resposta parece fácil, por isso, vamos complicá-la um pouco mais, para não deixar dúvidas.
Quando o parlamento, num regime parlamentarista, se reúne para dar um veredito sobre o voto de confiança no primeiro ministro, o que está em julgamento – um ato cometido no passado ou a continuidade ou não do governo?
Também ficou fácil de responder. Pois, nesse caso está se julgando o futuro do governo. E mesmo que se alegue que esse veredito depende da avaliação de atos passados, isso não muda o objeto central do julgamento. Afinal, também o povo, quando vai eleger seu representante, pondera sobre seu passado. Mas, não é isso (o passado) que está efetivamente sendo julgado. Nos dois casos, julga-se o “futuro”.
Concluindo, segundo a Constituição brasileira, o Impeachment é um processo que trata do cometimento ou não de um “crime de responsabilidade” (um ato pretérito) do Presidente da República. Logo, é um julgamento jurídico com todas as normas e princípios que a prática do Direito exige.
O impeachment seria um processo político se a Constituição tivesse definido que o Congresso Nacional poderia se reunir a qualquer momento para julgar a continuidade (futura) do mandato presidencial outorgado pelo povo. Aí sim (tirando o ridículo da proposta num regime presidencialista), seria um julgamento político, isto é, um simples ato deliberativo dos congressistas. Lembrando que, no parlamentarismo, o povo não elege diretamente o primeiro ministro, por isso, seu mandato (futuro) pode ser interrompido pelo parlamento sem o aval popular. Nesse caso, trata-se de duas eleições indiretas. Simples assim.
Para não esquecer jamais. Quando se avalia um ato pretérito com consequências punitivas, independentemente do espaço e de quem está julgando, trata-se um tribunal jurídico que deve respeitar as regra e princípios do Direito. Quando se julga o porvir, sem consequências punitivas à priori, tem-se um “tribunal” político, com ampla liberdade no processo decisório.
Portanto, senhor consultor, o impeachment, segundo a Constituição brasileira, não é um processo político. Os congressistas não podem deliberar livremente sobre o destino do Presidente eleito pelo povo. Fazer isso é romper com o Estado Democrático de Direito. Ou, simplesmente, um Golpe.
1 Um pressuposto kantiano de fundamento aristotélico-tomista.
2 Por exemplo, o julgamento pelo Senado do indicado pelo Presidente da República para a direção do BC ou para compor o STF é um julgamento político – está se dando um veredito sobre uma expectativa futura – se aquela pessoa vai corresponder às exigências do cargo. Nesse caso, o parlamentar não necessita seguir regras (além de sua livre consciência) para deliberar, basta querer aprovar ou reprovar o indicado.

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