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sexta-feira, 8 de julho de 2016

Os novos demiurgos do ensino superior e o materialismo histórico, por Wilson Roberto Vieira Ferreira.


“Nem parece que estou dando aula”, ouvi certa vez de uma professora entusiasmada com uma nova metodologia de ensino cada vez mais comum em universidades adquiridas por grupos turbinados por fundos internacionais de investimento. Lembra o slogan daquele banco comprado pelo Itaú, “nem parece banco”.  Hoje, a financeirização descobriu o ensino superior e trouxe a racionalidade capitalista para um setor onde o ofício do professor era um entrave na linha de produção moderna por ser ainda um antigo resquício escolástico. Dos antigos donos de faculdades  “boca de metro” pulamos para os “global players”, os novos demiurgos. Repete-se a lógica industrial prevista pelo velho materialismo histórico de Marx: trabalho complexo deve ser convertido em trabalho simples, transformando o professor num profissional destituído do seu ofício. Mas para que isso torne-se uma fatalidade natural da vida é necessário um discurso imaginário:  a ilusão (o fetiche do título e publicações), a ideologia (a meritocracia) e uma retórica - a “metodologia ativa”. Talvez a metáfora daquela professora seja mais literal do que ela imaginava...


Karl Marx insiste em não morrer. Ele e a sua abordagem metodológica de estudar a sociedade, o materialismo histórico. Não porque as esquerdas continuem invocando suas ideias muitas vezes para legitimar ações políticas que talvez Marx, se vivo, certamente discordaria.

Mas porque o Capitalismo, agora na chamada fase “tardia”, criou novas e inusitadas formas de se perpetuar através dos inventivos mecanismos de financeirização – como, por exemplo, fundos globais de investimentos com carteiras diversificadas que podem ir de títulos públicos da dívida de um país até investimentos em empresas de tecnologia, marketing esportivo, saúde ou educação.

Boca de metro e pés-de-chinelo


 Um dos motivos que levou esse ingênuo blogueiro a escolher a carreira acadêmica foi acreditar que por descender do método escolástico medieval, a universidade seria um dos setores mais anticapitalistas. Resistiria estoicamente ao avanço do capital e à mercantilização generalizada da cultura.

Claro que o ensino superior particular cresceu nas mãos de empresários locais (membros de conselhos de clubes de futebol, donos de antigos cursos de admissão ao ginásio ou de escolas técnicas) que acabaram criando as chamadas “fábricas de diplomas”, “faculdades de boca de metrô” ou de “universidades pé-de-chinelo”, como certa vez acusou o filósofo Arthur Giannotti quando membro do Conselho Nacional de Educação do governo FHC.

Porém, ainda eram, por assim dizer, representantes da antiga burguesia da época histórica do renascimento comercial e urbano. Se no renascimento comercial a burguesia criou oficinas formadas por mestres, artesãos e aprendizes, também as faculdades privadas construíram instituições cujos “mestres”, “artesãos” e “aprendizes”, dentro das condições adversas reinantes (salas superlotadas, salários baixos pagos muitas vezes por caixa dois, extensa jornada de trabalho etc.), ainda detinham um “saber-fazer”.


Vivíamos sim nos moldes da exploração capitalista, mas ainda dentro do primitivo regime daquilo que Marx chamava de “mais-valia absoluta”, produção de riqueza pelo aumento do ritmo do trabalho e vigilância sem nenhum tipo de compensação em troca.

Mas ainda dentro desse regime de exploração, o professor, como um artesão que ainda detinha o ofício (conhecimento e metodologia), fechava a porta da sala de aula e tentava manter o espírito da escolástica. Em meio a um regime de produção capitalista em larga escala, a faculdade particular ainda tinha que lidar com um insumo de produção que resistia às formas de quantificação de uma linha de montagem. O professor ainda era um artesão que detinha um conhecimento contínuo, cumulativo, qualitativo e analógico.

Dos arcontes aos novos demiurgos


 Em outras palavras: o professor era explorado, mas não despojado do seu saber. A exploração era do trabalho e a alienação era a do corpo e da mente pela exaustão física.

Os burgueses comerciais do ensino superior eram semelhantes aos arcontes (na mitologia gnóstica seres espirituais que controlam cada um o seu mundo que compõe o cosmos) ou disciplinadores que prepararam o terreno para a chegada dos novos demiurgos – a entrada do ensino universitário no modo de produção especificamente capitalista, o trabalho industrial.

A racionalidade capitalista chega hoje ao ensino superior com a entrada do capital estrangeiro dos fundos de investimentos que estão por trás turbinando grupos educacionais e criando a oligopolização do setor. Os antigos arcontes venderam suas faculdades, negócios originados de empresas familiares, para os novos demiurgos – muitos deles “global players” com redes de universidades particulares pelo mundo.


Na linguagem do materialismo histórico, passamos do regime da mais-valia absoluta para a mais-valia relativa. O trabalho complexo do artesão na manufatura (conhecimento e metodologia pedagógica do professor) deve se tornar trabalho simples – quantificado, fragmentado.

Em outras palavras: a quantidade de trabalho social presente no atividade do professor (muitas vezes resultado do investimento público em bolsas de mestrado e doutorado) deve ser diminuída por ser uma pedra no sapato para o novo ritmo de trabalho e disciplina que o modo de produção especificamente industrial exige.

Das máquinas às “metodologias ativas”


Se em Marx o trabalho social é substituído pelo maquinário, no ensino universitário será por “metodologias ativas” (“teaching-learning”) de ensino onde cada vez mais o “conteúdo” (a pedra qualitativa no sapato da quantificação) cede lugar a “jogos” ou “dinâmicas” previstos minuto a minuto em planilhas Excel. O ofício do professor-artesão (o trabalho social) é diluído no saber-fazer de gestores e coordenadores que personificam o papel da antiga gerencia responsável em ditar o ritmo da linha de montagem taylorista.

Com um plano de ensino “engessado”, o professor torna-se um “facilitador” que busca “engajar” ou “motivar” alunos para uma dinâmica (ou ritmo) imposto pelos gestores.

Ou como ouvi certa vez um professora dizer, extasiado: “nem parece que estou dando aula!”. Mal sabia ela da literalidade da sua metáfora...

Ilusão, Ideologia e Retórica


Acompanhando a metodologia do materialismo histórico, além da exploração e dominação, para se estabelecer um modo de produção são necessários outros três requisitos. Dessa vez de natureza imaginária: o véu da ilusão, a ideologia e um sistema retórico.

(a) O véu da ilusão


Assim como Marx afirmava em O Capital que o capitalismo era uma gigantesca fantasmagoria pois o fetichismo da mercadoria não nos deixava ver o que havia por trás das relações sociais de produção, da mesma maneira o modo de produção do ensino superior criou sua própria fantasmagoria: titulações e “produção científica”.

“Publish ou perish”, publique ou pereça, virou um mantra no meio acadêmico como um fim em si mesmo – o fetichismo das publicações. Tal como na situação absurda beckettiana onde se espera tanto por Godot que esquecemos o porquê da espera, as publicações perderam qualquer lastro científico e viraram um campo de simulações: autoplágio, textos escritos a inúmeras mãos que pegam carona no artigo, conluios com pareceristas de periódicos “científicos”, artigos onde as notas de rodapé ou referencias finais compete em tamanho com o próprio texto, ghost writers, textos preguiçosos, colcha de retalhos etc.

O fetichismo da produção científica cria um verniz necessário para uma atividade-fim (o ensino) que perdeu o sentido na sala de aula, já que o ofício do professor foi primeiro engessado e depois diluído.


(b) Ideologia


Marx concebia a ideologia como uma falsa consciência para dissimular a dominação. No modo de produção universitário é a ideologia meritocrática, decorrência direta do fetichismo das publicações. Títulação + publicações + cursos de aprimoramento é a fórmula para acumular méritos e até a ascensão salarial na carreira. Aqui temos um maquiavelicamente curioso fenômeno: essa fórmula tem uma função muito mais disciplinadora e auto-referencial do que de produção de conhecimento científico-pedagógico.

De um lado os cursos viram verdadeiras sessões de adestramento das competências exigidas nos planos de ensino engessados. São apenas auto-referenciais, reforço comportamental do novo papel em sala de aula do professor destituído do seu ofício.

Além de ser uma maquiavélica função subliminar presente em todas as seitas: quanto mais o indivíduo se mantiver ocupado com o acúmulo de atividades, muitas vezes simultâneas (ainda mais com a alternativa do ensino à distância), menos pensará sobre o propósito daquilo que está fazendo – sobre isso clique aqui.

O risco para o professor é que de repente ele terá tantos méritos, títulos e publicações que suas expectativas aumentarão perigosamente para uma atividade sem expectativas – já que as aulas engessadas pelas “metodologias ativas” estão totalmente dissociadas dos conteúdos e competências conquistadas na pós-graduação. Poderá ser a hora de demiti-lo, junto com todos os seus méritos.

Pierre Bourdieu e Paulo Freire

(c) Retórica


Depois de tudo isso, aqui está a cereja do bolo, o pulo do gato. Todas essas novas metodologias ativas, supostamente pedagógicas, devem ter uma aparência revolucionária, progressista e intelectualmente estimulante. Tal como o fetichismo em Marx onde as mercadorias “lançam olhares amorosos aos compradores”.

Autores da tradição crítica ao sistema educacional como o francês Pierre Bourdieu ou o brasileiro Paulo Freire são ironicamente utilizados para legitimar coisas como “metodologia ativa”: se Bourdieu denunciava o poder simbólico do professor e Paulo Freire acusava a “educação bancária” (onde o professor deposita conhecimento em um aluno desprovido de seus próprios pensamentos), nada melhor do que cortar o mal pela raiz: retire o ofício do professor para que deixe de ser uma figura autoritária e manipuladora.

A partir de citações desses autores, retirados do contexto, doura-se a pílula da quantificação do ensino com uma retórica “crítica”.

Destituído do seu ofício, o professor transforma-se no insumo de produção ideal da cadeia produtiva presente em todos os outros setores da sociedade. Ele tem o mesmo destino que os antigos artesãos tiveram com a substituição da manufatura pela fábrica: seu ofício foi roubado pela gerência e colocado em planilhas para ser fragmentado e inserido no controle numérico das máquinas.

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