(Arte Revista CULT)
“Quase tudo que é grave é difícil; e tudo é grave”, já dizia Rilke.
Este alerta talvez nunca tenha servido tanto ao Brasil quanto nos tempos
atuais. Mas não desistir de pensá-lo é uma obrigação. A sucessão
vertiginosa de acontecimentos perversos impede quase que por completo o
fôlego da reflexão. A destruição diária tem tornado difícil preservar a
lucidez. O festival de besteiras que assola o país é inesgotável. Menos
de um mês de governo, o ministro da Educação já disse que o “marxismo
cultural faz mal à saúde”; o ministro da Casa Civil afirmou que “o risco
de uma arma em casa é o mesmo de um liquidificador”; a ministra dos
Direitos Humanos esbravejou que
“meninos vestem azul e meninas vestem rosa”.
Já a nomeada como ministra da Agricultura recebeu doações de um réu por
assassinato de líder indígena e será responsável pela demarcação de
terras indígenas. Há, sobretudo,
o astrólogo reiteradamente citado por membros do governo
como mais influente intelectual de todos, que acusa Newton de ter
“espalhado a burrice”, contesta o heliocentrismo e a teoria da
relatividade de Einstein; sem esquecer o coordenador do Exame Nacional
Ensino Médio dizendo que Raskólnikov, personagem de
Crime e Castigo, era um “típico estudante esquerdista influenciado por
Nietzsche”. Nem precisamos entrar em sua base parlamentar afeita ao BBB: Bíblia, Bala e Boi. Enfim, a diversidade é grande.
A experiência política que se inicia no Brasil seria fascinante se
vivêssemos noutro planeta e não estivéssemos com a maior floresta do
mundo em perigo e se a política naturalizada de extermínio agora não
tivesse virado plano deliberado de governo. Por medo de ser assassinado,
um deputado federal reeleito, com enorme atuação em defesa da população
LGBTQ+,
desistiu do mandato e afirmou não pretender voltar ao país tão cedo.
Após publicar sua decisão, o presidente da República se manifesta no
Twitter dizendo: “Grande dia!”, seguido de um sinal de positivo.
Os exemplos se empilham a exaustão. Entretanto, insistimos eticamente
de estar à altura do que acontece. Poderíamos começar apontando, pelo
menos, a direção de duas questões fundamentais para tentar refletir
sobre o Brasil atual: 1º) como a vitória de
Bolsonaro
foi possível e o que significa sua chegada ao poder – como viemos parar
aqui? 2º) quais são as possíveis linhas de fuga (quais alternativas e
resistências) a serem criadas?
As possibilidades de enfrentamento destas e de muitas outras questões
são infinitas e as respostas sondáveis, pela profusão dos fatos,
poderão ser desmentidas no momento seguinte. Porém, cabe arriscar ler o
que se passa, exatamente valorizando a crítica radical da vida cotidiana,
ou seja, pensar a transformação social como um exercício de atenção
pleno das potências que ressoam nas situações que atravessamos.
O que ele faz ali? Ou sobre como não imaginamos que isso aconteceria
A pergunta é inafastável:
como um grupo tão exótico e provinciano
conseguiu chegar ao comando de um país tão complexo como o Brasil?
Analisar o que trouxe o desejo social até o ponto de termos um governo
Bolsonaro é antes de tudo um problema vital. Passa, sobretudo, por um
lado, em não vê-lo como uma simples anomalia política e, por outro, não
crer na exuberante ideia de que temos cinquenta e sete milhões de
fascistas no Brasil.
O atual presidente é a própria corporificação da
mediocridade
que pode acompanhar o que há de pior em cada um. Seu mérito, este sim
incontestável, foi encarnar a vulgaridade de um mal banal, a capacidade
de ser reconhecido, não como melhor, mas como igual aos seus eleitores.
Cada um de nós, afinal, conhece um tipo misógino, homofóbico e racista
como Bolsonaro. Nada de excepcional nele, portanto. Todavia, sabemos o
que isso significa.
Adorno
chamava esta figura de “pequeno grande homem”: sujeito capaz de dizer
“as verdades”, sem “politicamente correto”, “como qualquer um”, com a
burrice prosaica do senso comum e diluído em estereótipos superficiais.
Este é “o padrão da propaganda fascista”: agressividade emocional que
crie turba; escassez de ideias e a rigidez mecânica; em suma, alguém que
ostente sem vergonha sua virtuosa ignorância. Por isso, não necessitará
determinantemente de um programa positivo, mas de permanentes ameaças e
medos que sustentem tanto sua onipotência quanto a ideia de que é mais
um do povo.
Neste particular – há que se dizer – Bolsonaro não é Trump. É pior, e
não poderá ser considerado o “Trump brasileiro”. Se ambos podem estar
próximos pela capacidade de se exprimirem sem inibições suas
mentalidades mesquinhas, Bolsonaro não pertence a qualquer elite com
algum destaque particular, mesmo que duvidoso, como Trump. Passar quase
três décadas no parlamento brasileiro, conseguindo aprovar dois projetos
de lei, notabilizado por ser um personagem que ninguém levava a sério
(chegou a dizer em 2011, quando se candidatou à presidência da Câmara de
Deputados, obtendo 4 votos dos 513 possíveis: “eu não sou ninguém
aqui”), é a consagração do homem médio. O “homem sem atributos” de Musil
virou mito. O pequeno fascista é liberto de qualquer receio diante da
indignação transformada em ódio.
Mas como isso acabou por ser canalizado? Como se forjou uma rede de afetos capazes de produzir Bolsonaro?
A mediocridade, de forma concreta, pode ser estampada naquele tipo de
sujeito que, no Brasil, passou a sentir autorizado a repetir sem
qualquer vergonha suas frases de ódio, principalmente aqueles que se
sentiam acuados nos últimos tempos. Diga-se diretamente: o recalque do
homem branco heterossexual emerge sempre que alguma disfunção atinge sua
posição de privilégio que considera direito inalienável. Situação
profundamente vivida no Brasil nos últimos anos: a ênfase nos avanços
políticos reais dos
movimentos feministas,
negros e LGBTQ+. Não esqueçamos o quanto isso afeta os privilégios de
classe, raça e gênero no Brasil: as cotas nas universidades, a exposição
e enfrentamento da violência de gênero e a PEC das Domésticas (até
2012, uma categoria formada majoritariamente por mulheres negras e
pobres não tinham os mesmos direitos básicos das demais, como limite na
jornada de trabalho e seguro desemprego) são apenas alguns exemplos de
onde o rancor se estabeleceu e o sintoma do reacionarismo se reuniu.
Reação pelo ódio consagrada exatamente no que
disse o presidente na posse:
“Libertar a nação do politicamente correto”, ou seja, reforço da
autorização expressa tanto de propagar seus sentimentos reprimidos de
tripudiar minorias quanto de aniquilá-las. Opressões capilares
autorizadas e reproduzidas que estampam a necropolítica brasileira.
Bolsonaro materializou aquilo que sempre alimentou os fascismos nossos
de cada dia.
O ódio como combustível político oferece ares quase determinantes para entender
a “nova direita” no Brasil.
Sua emergência soube muito bem entender os anseios que pairavam, e
trabalhou a esperada “mudança” baseada no “retorno”. Noutros termos,
souberam angariar o desespero dos tempos que correm. Assim, uma
cartografia dos reacionarismos no Brasil não poderia ser feita ignorando
o pano de fundo global da corrosão da confiança nas instituições
políticas, fruto de um esgotamento da democracia parlamentar
representativa. Deve-se saber identificar dentro do grande colapso
liberal capitalista o surgimento das novas direitas.
No caso brasileiro, antissistema e antipetismo se uniram com Bolsonaro
. Se uma
alt-right
possui uma retórica antissistema – seja desde uma xenofobia
etnonacionalista (como no caso da Itália, Hungria e mesmo dos EUA) seja
por um populismo
antiestablishment, impulsionados por um debate
midiático digital – em termos brasileiros, aquilo que se poderia chamar
de “conservadorismo brasileiro contemporâneo” é muito heterogêneo.
Transpõe uma simples conjunção de protofascismos. Há uma multiplicidade
de frustrações e desesperanças, depois de um período de certa
experiência social democrata que abriu espaço a vários grupos. Forjado
pelo desamparo, como já foi apontado por várias análises, poderíamos
identificar pelos menos três eixos que se cruzam: a) um recorte
“cultural e moral”, expresso por uma moral cristã conservadora de tom
evangélico-empreendedor, que cresceu onde uma Igreja Católica deixou de
se encontrar com os mais pobres, e tragado pelas guerras culturais,
totalmente refratário às conquistas de gênero por exemplo; b) um viés de
“classe”, bem identificável pelo rechaço às reformas sociais e com medo
da perda de privilégios, como já foi dito; c) uma vertente
“geracional”, tanto aqueles mais velhos, dispostos à
nostalgia da ordem pelo militarismo brasileiro,
medo do “fantasma comunista” e saudosos da ditadura, quanto aqueles
antissistêmicos jovens hoje mais acoplados ao neoliberalismo.
Não esqueçamos que tanto esperança quanto medo, cristalizado em ódio,
são afetos reversíveis. Daí se pode entender por que estes
agenciamentos puderam se dar.
O ambiente de um “capitalismo de plataforma” já deu excessivas provas
da importância das redes sociais. Uma “algoritmocracia” já se dispôs
como modelo político. No caso do Brasil, não precisaremos seguir muito
as pistas do que pessoas evocavam no dia da posse em Brasília. Os gritos
de “WhatsApp! WhatsApp! Facebook! Facebook!” sinalizam algo. Cambridge
Analytica, Steve Banon e seus asseclas, seja juntos com Trump ou com
Brexit, também não nos cansarão de lembrar. [Aos italianos mais ainda,
vide o The Movement de Banon agora com seu templo populista, a “Certosa
di Trisulti”, em Collepardo, pronta a atuar nas eleições europeias de
maio.
No caso Bolsonaro, ainda muito mais no futuro virá à tona quanto à manipulação de fake news
através de grupos de WhatApp
financiados de maneira nada clara. Apenas lembremos por ora que o
“Chicago boy” de Bolsonaro, o super-ministro da Economia Paulo Guedes,
um economista medíocre até entre seus pares – para além de recapitular a
união orgânica entre militares e neoliberalismo de catástrofe, como na
ditadura Pinochet no Chile – ostenta profunda amizade com Jorge Selume
Zaror, colega de Guedes em Chicago, antigo diretor de orçamento de
Pinochet e que levou Guedes para dar aulas no Chile. Seu filho
coincidentemente hoje também é secretário de comunicação do Chile e dono
da Artool, maior empresa chilena de Big Data, empregado durante anos na
Cambridge Analityca. As imbricações de uma tecnopolítica com este
neoliberalismo autoritário são um elemento gigante nas dinâmicas
governamentais atuais.
Por outro lado, compreender o
“bolsonarismo” passa por entender a
genealogia lulista.
Ele é uma espécie de difração do lulismo. Se o Brasil foi a última
experiência das chamadas esquerdas no poder no século 20, através de um
capitalismo de Estado, interessado menos em reduzir desigualdades e mais
propenso a incrementar a cidadania pelo consumo, independente dos seus
inegáveis avanços, deve-se atentar antes para as contradições do PT no
poder, para depois examinar uma espécie de “negacionismo reativo” que se
abateu sobre ele, especialmente quanto a perceber seu próprios erros. A
lista seria demasiadamente extensa de equívocos, mas de todo modo, em
grande medida a autocrítica sempre requerida e nunca realizada por parte
do PT, passaria, em termos gerais, por perceber a sua indiferenciação
política quanto aos demais espectros, inclusive de pautas de direita.
Fica demasiadamente difícil saber o que a esquerda é quando não se
propõe distanciar radicalmente daquilo que a direita propõe.
A começar pele negação peremptória de casos de corrupção, mesmo que
analisados de modo seletivo pelas dinâmicas midiáticas, legislativas e
judiciais parciais. O paradigma desenvolvimentista já havia feito Dilma
solapar direitos trabalhistas muito antes; diversos movimentos sociais
tornaram-se mais governo do que alavanca de reivindicações em ambos os
governos – movimentos sociais
que agora poderão ser perseguidos pela mesma “lei antiterrorismo”
sancionada por Dilma; os notórios laços petistas com a bancada
ruralista levaram ao desmantelamento da Fundação Nacional do Índio muito
antes da demarcação das terras indígenas decretada por Bolsonaro ficar a
cargo do Ministério da Agricultura – sem esquecer que o governo Dilma
foi o que menos demarcou terras indígenas na história do Brasil. Mudança
climática, para o governo atual, é caso de um “complô marxista”; antes,
para Lula/Dilma,sequer passou perto de ser compreendido como assunto
deles. Especificamente com relação à Amazônia, reeditaram com êxito a
versão da ditadura brasileira das grandes obras hidrelétricas (como Belo
Monte, Jirau, Santo Antônio, Teles Pires etc). Vale referir as
comunidades urbanas pobres expulsas de suas casas pelos megaeventos
superfaturados da Copa do Mundo e Olimpíadas. Ainda destaque especial a
“Lei de Drogas” editada em 2006 por Lula que contribuiu em grande parte
para o encarceramento em massa no Brasil (mais de 750.000 presos),
notadamente jovens, negros de regiões periféricas, em especial mulheres
(mais de 700% de aumento no encarceramento em 16 anos).
Não obstante, de modo algum, deve-se ver as experiências petistas
como iguais às anteriores. Repetimos: o avanço nas políticas
afirmativas; o acesso ao ensino superior, a expansão de políticas de
renda como o Bolsa Família; o aumento real do salário mínimo e a
consequente redução da miséria e da pobreza (42 milhões ingressam na
classe média, salário mínimo ficou 50% acima da inflação), de fato,
mudaram o país. Problema é não ver o limite claro que a gestão de um
neoliberalismo com rosto mais humano pode ter, ou, para dizer noutros
termos, uma gestão reformista com sensibilidade social – uma política de
capitalização dos pobres – possui. Se os avanços notáveis em termos de
acesso pelo consumo se deram, o ritmo de crescimento da parcela mais
rica da população também manteve-se intacto (nunca os bancos lucraram
tanto na história do Brasil); a desigualdade não diminuiu, o que
pressionou o custo de vida para cima, generalizando o fenômeno bem
descrito como “produção do precariado”. Em resumo, nada houve de
constituição de um núcleo de serviços públicos de qualidade e com
consistência no Brasil.
Assim, como acreditar nos acertos se os erros são negados ou as
contradições caladas? E como achar que a população não tem discernimento
ou que foram enganadas se politicamente as esquerdas não se demonstram
ser diferentes? A partir daí poderá se entender um pouco melhor a
formação de um nexo que os fluxos conservadores souberam canalizar
seletivamente a repulsa à corrupção diretamente ao PT, o preconceito de
classe e o efeito rebote da frustração pelos limites da inclusão pelo
consumo. A autocrítica como compromisso público e prática política, e
não como expiação de pecados, é um trajeto importante para pensar as
alternativas que podemos ter.
Chamemos, com a intensidade que for, o atual governo brasileiro de
“momento neofascista do neoliberalismo” ou uma forma de “novo
neoliberalismo autoritário”. Quaisquer dessas aproximações apenas
espelham a estratégia política peculiar de um regime de
“presidencialismo de ocupação”, ou seja, a visão da nação como um
território a ser ocupado militarmente, onde qualquer opositor é um
traidor da pátria. Sua logística teológica e militar impõe, portanto, a
fabricação permanente de inimigos. Lembremos que o então candidato
Bolsonaro prometeu enviar a esquerda, senão para a prisão ou exílio,
para a “ponta da praia” (alusão ao lugar onde se jogavam os cadáveres
dos opositores políticos na ditadura militar). Para além da retórica que
se poderia alegar, o elemento de uma visão eliminacionista da política é
central.
E todo medíocre sabe que no fundo assim o é, por isso precisa reafirmar os desastres e forjar os inimigos.
Estamos diante de algo novo, peculiar organização e exercício de
poder também em escala planetária, e a consolidação do caso brasileiro é
de suma importância. Talvez o que torne o caso brasileiro pior e o
diferencie é a tremenda condição de Bolsonaro em poder melhor integrar o
“novo estado de legalidade” da exceção. No poder, seus limites de
constrangimento institucionais são quase nulos frente, por exemplo, a
Trump ou Salvini – mais uma enorme distância. Gerindo e produzindo
crises, Bolsonaro tem o poder de integrar, talvez como nunca, medidas de
urgência ao modus operandi trivial do governo, um modo de
estado de direito que integrará em sua legislação a situação de guerra
econômica e policial permanente. Não meramente a construção de um
sistema de exceção – como historicamente consolidado no Brasil desde
sempre – mas um sistema de normas, por assim dizer, que proíbe a
exceção. Se o país sempre se consagrou por matar seus pobres, negros,
suas minorias em direitos, seus trabalhadores rurais, seus ativistas e
jornalistas, o estado do desastre agora inaugura um novo ciclo de
violência política: o Estado escancaradamente convertido numa arma de
guerra contra populações mais aguda ainda.
Para onde podemos ir: quais alternativas a serem criadas?
Em apurada síntese, até aqui, não devemos perder de vista o mérito de
Bolsonaro em ter sabido aliar a escalada repressiva tradicional em
contexto brasileiro com a energia da rebeldia social liberada
ao menos depois de 2013 no Brasil.
Perceber os caminhos alternativos para a atual catástrofe brasileira
deverá passar pela atenção à força das demandas anti-institucionais. Não
obstante, até aqui, ao que tudo indica, não seria temerário arriscar
que ainda
falta uma esquerda capaz de enfrentar Bolsonaro e principalmente uma resposta consistente que não esteja atrelada aos ritmos das estratégias da direita no poder.
Porém, sempre há tempo. Os ecos de 2013 persistem. A contingência das
revoltas e o fervilhar das mobilizações sempre retornam. No Brasil, a
maré da Primavera Árabe e dos Occupy traduzidas por junho de 2013 foram
profundamente rechaçadas – lembremos que era Fernando Haddad o prefeito
da cidade de São Paulo, maior foco de repressão à época. Não desperdiçar
a experiência é fundamental. As revoltas eclodirão e com mais força
ainda nos instantes próximos. Tenhamos a sabedoria de vivê-las.
Por outro lado, diante de um governo Bolsonaro, misto entre um
patético despreparado e um poderoso representante do neoliberalismo de
catástrofe, uma das principais armadilhas para forjar alternativas de
solidariedades e resistências comuns é se iludir que ele não irá durar,
que as instituições ou a realidade irão freá-lo. Ele é a parte
torturadora do regime militar, ninguém dali vai domá-lo. Isso alarga
ainda mais o flanco aberto que parece existir para a ação hoje,
principalmente tendo em vista os primeiros dias governo. Apostar que a
selvageria irá ser amansada por um sistema político destroçado é um erro
grave, pois não percebe que para se manter no poder ele retira seu
fôlego exatamente do seu colapso. E, mais, esta postura enfraquece
sobremaneira a capacidade de mobilização e proposição.
O estado de desencanto é profundo com as próprias instituições
políticas e isto não se esgotará. E, se por um lado, Bolsonaro é fruto
dessa conjugação antiestablisment/antipetista e tentará manter sua força
a partir disso, por outro lado, seu vazio de promessas permite a todos
sonhar grande, abrindo espaços tanto para que se esperem resultados
enormes de transformação que não virão, como também para um abismo de
frustrações, horizonte que já começa a ser visto em menos de um mês de
governo. O caldo da revolta é enorme quando se pode sonhar tudo já que
não se prometeu nada.
A ambiguidade é extremamente frutífera neste instante. Mas não
esperemos que um concerto democrático ancorado nos partidos possa dar
algum tipo de resposta satisfatória no momento, principalmente porque
não parecem, de fato, quererem enfrentar propriamente o capitalismo
contemporâneo em sua fase de neoliberalismo perverso. É uma armadilha,
movida pelo desespero, priorizar aliança com o “centro”, o que
representaria tentar voltar a um falido presidencialismo de coalizão que
culminou no próprio surgimento das direitas. Erro grave será apostar,
“por estarmos todos em perigo”, na “união” contra os novos populismos de
direita. Mesmo que conseguíssemos, apenas voltaríamos à mesma situação
que ensejou o seu nascimento. Valerá mais a pena buscar esta
imprescindível e atual luta contra a opressão, não através da improvável
regeneração dos partidos, que fazem parte da mesma crise de
representação, mas das multidões que se autoconvocam, das constelações
sociais e políticas que cooperam, cuidam e colaboram fomentando
múltiplas formas de afeto.
Desativar afetos reativos está no cerne dos embriões de uma alternativa real para enfrentar Bolsonaro.
As fagulhas já foram lançadas para uma movimentação com estratégia,
consistência e propósito. Se o reacionarismo brasileiro, como dito,
também foi resultado da explosão feminista, LGBTQ+, antirracista, o furo
na bolha institucional passa por aí. Lembremos a rede “Mulheres unidas
contra Bolsonaro”, com mais de 4 milhões de mulheres,
que fez eclodir o #EleNao
na última semana antes da primeira volta das eleições. A onda feminista
relativamente espontânea venceu de alguma maneira, pois além de fazer
acreditar, faz ainda lembrar a vocação internacionalista das esquerdas
articuladas de vários modos em diferentes contextos pelo mundo.
Não serão à toa os ataques privilegiados do governo para “acabar com a
ideologia de gênero” ou “lutar contra o lixo marxista nas escolas”,
como dito pelo presidente eleito no discurso de posse. Num governo em
que a guerra impera, é preciso fazer calar de quem nunca se acomodou com
as regressões autoritárias ou aos arranjos populistas que marcaram
nossa história. No fundo da sua mediocridade, esta associação macabra de
militares, pastores, latifundiários e banqueiros sabe bem de onde pode
vir o seu fim.
Assim, a insistência deve passar, sobretudo, pela indignação, não
recoberta pela mera reação, mas à altura das linhas de força que a
esquerda tradicional não consegue captar. Enfrentar as contradições de
uma esquerda no poder; fazer o luto da própria hegemonia lulista;
abandonar os projetos personalistas e as curadorias partidárias – enfim,
lutar contra uma espécie de servidão voluntária, parece fazer parte
desta tarefa.
Fazer a resistência (é) criar corpo.
Resistir não é reagir simplesmente, ou seja, um fraco desdobramento
passivo da impotência antipolítica. É, sim, sermos capazes de estar à
altura da indignação social, algo que de uns anos para cá não foi feito
no Brasil. Repita-se: a brecha de junho de 2013, onde se apresentava a
“sociedade contra o Estado”, não foi aproveitada e acabou amplamente
barrada pela esquerda institucionalizada. Grande parte do
antipetismo
foi resultado de o partido não ter sabido reconhecer as manifestações
exatamente como propulsoras das transformações estruturais do país,
preferindo aderir ao que havia de mais retrógrado na casta política
brasileira, abrindo horizonte para que, pelo marketing digital, o
antiestablishment fosse agenciado em outra direção.
Fazer a resistência criar corpo é, antes, ter sensibilidade, ser
capaz de agenciar o desejo, criando a revolta que povoa corações e
mentes.
E se pudéssemos arriscar, o voto em Bolsonaro foi menos fruto do
antipetismo do que da territorialização retrógrada dos fluxos e linhas
de fuga que junho de 2013 ensaiou. Necessário agora pesquisar os germens
da indignação que virá, exatamente porque Bolsonaro continua a ser o
retrato mais fiel do establishment político. Trata-se de mapear
o conjunto de crenças e desejos sociais numa nova vidência e gestar as
condições para uma nova sensibilidade coletiva.
Resistência hoje é condição de conectar o mais possível com nossa
condição vivente, afetar-se pela percepção da existência social. Nada de
mais concreto que habitar a vida o mais plenamente possível, numa
espécie de ressonância intensiva entre afetos. Uma luta micropolítica
não poderá ser ingênua e nem será oposta a um embate macropolítico. O
novo e desafiador neste momento, no entanto, é que não há como crer num
porvir harmonioso e sem conflitos, mas dar-se conta de que a vida
política é uma luta constante entre forças ativas e reativas, luta
contra forças que querem destruir a vida, não somente na sociedade, mas
em nossa própria subjetividade. Algo que sempre foi claro e presente na
luta dos negros, indígenas, de mulheres, de LGBTQ+ etc.
Diretamente, em alguma medida, em qualquer espaço a insurreição passa
pela criação de outras formas de viver organizadas desde lugares de
subalternidade, ou seja, composição de coletivos efêmeros, porém com uma
mesma frequência de afetos, que se agitam em corpos que se juntam.
Fazer vibrar estes embriões que querem germinar requer ações que lhes
darão forma. Tais ações não se dão sozinhas, por isso necessitam de
experimentações coletivas que as produzam. Aqui está a articulação
indispensável e nova entre dinâmicas macro e micropolíticas – por ambas
dimensões, a resistência faz corpo. Vale a provocação de que
precisamente nestes momentos em que figuras bizarras como Bolsonaro
assumem protagonismo é que surge a maior possibilidade de uma esquerda
radical emergir, sem medo de dizer a que veio e livre das amarras dos
velhos pactos políticos. É preciso, todavia, ter a ousadia de enfrentar e
propor um novo pacto social.
Mas como? Reativando o desejo da relação entre corpos que falam.
Podemos falar muito em redes sociais, mas não nos encontrar
efetivamente. A experiência de corpos que se encontram é que poderá
disputar as permanentes metamorfoses dos “fascismos que vêm”. Se o
fascismo é antes um modo de vida que um regime político (que pode ser
inclusive democrático), desativar paixões tristes no terreno da vida
cotidiana torna-se uma ação principal. Deleuze lembrava que um traço
fundamental da esquerda passava por uma forma especial de sensibilidade,
de experimentar o mundo de modo diferente. E repita-se: experimentação
não se faz só, é germinação que pede produção. Portanto, indispensável
que se articulem como resistências. Dinâmicas de auto-organização
popular são efeitos de ressensibilização social através da criação de um
“comum sensível”. Em termos mais simples, a disputa no e para um campo
social novo é dada exatamente pela modulação dos afetos coletivos: onde a
crise põe ressentimento, o desamparo de “cada um por si”; a ativação
social dispõe uma repolitização, que já está aí, solidariedade e apoio
mútuos que formam laços de ação coletiva.
Repolitização que já está aí, desde a ideia de que a sociedade não se
transforma desde cima, se joga por todos os lados, não desde instâncias
privilegiadas estatais, mas no cotidiano das relações de poder que
configuram nossa maneira de entender o que é sexualidade, trabalho,
educação, saúde etc. E este tipo de transformação está ao alcance de
todos, se joga na vida cotidiana dos gestos e decisões que somos
implicados. Se, neste período obscuro pelo qual passa não somente o
Brasil, o mal estar social antissistema foi canalizado pela direita, não
se trata apenas de achar uma nova gramática, reduzir a política a uma
“comunicação eleitoral”, que faça seus votantes “despertarem” e
convencê-los a mudar. As direitas crescem não por terem uma política
comunicativa melhor – seus avatares, fake news e o esvaziamento da
linguagem lançados em larga escala são a prova disso. Elas não estão
interessadas em transmitir algo a ser refletivo, mas se apresentaram
como lugar adequado para depositar os anseios sociais. Noutros termos, o
desafio a um contrapoder radicalmente antifascista passa por produzir
subjetividades, criar sensibilidades novas, formas de ver e sentir o
mundo com crenças e valores com os quais, apenas depois, se possa
sintonizar uma mensagem eleitoral. Não se trata de abandonar a esfera
representativa, muito pelo contrário, mas de refazê-la e repensá-la como
modulação de afetos coletivos para transformar as coisas.
Finalmente, dispor um conjunto de singularidades ligadas em constelação, isto acaba por ser o desafio constante. Segundo
Antonio Negri,
será este poder cooperativo que levará a multidão em direção ao comum.
Os circuitos de medo, assim, são o elemento mais nocivo a se enfrentar.
Não ter medo é primordial para não ceder aos fascismos e avançar. É a
alegria e a força de estarmos juntos contra o medo coagulado em ódio. A
força da imaginação criativa nunca deixou de passar antes por uma enorme
dose de desamparo. Não obstante, cabe assumir a luta, pela força difusa
e múltipla que conduza à passagem para uma esquerda radicalmente
antifascista.
Augusto Jobim é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia na PUCRS