quarta-feira, novembro 16, 2016
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Por
um lado,
“Doutor Estranho” é uma evolução no universo Marvel: no lugar de
super-soldados
e playboys tecnológicos, a magia e a inteligência. Mas do outro, a magia
(com
referencias gnósticas e budistas) não é libertária mas destinada a
manter a
“ordem natural”: a seta do Tempo, a entropia e a morte – justamente as
falhas
cósmicas que o Gnosticismo de produções como “Matrix” ou “Sense8” e o
budismo
tibetano (uma fonte de inspiração do personagem) denunciam como prisões
na “Roda do Samsara” – ciclo vicioso da
morte/reencarnação. Em "Doutor Estranho" quem pretende romper com a
ilusão são os vilões (a “Dimensão Negra” ) e os heróis são aqueles que
punem quem pretende quebrar a
Ordem. "Doutor Estranho" explicita o clichê narrativo hollywoodiano que é
o cerne
ideológico do entretenimento comercial:
"quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem" – a luta para que a ordem seja
mantida. Mas o que realmente
fascina o público no filme é o show da possibilidade de que a ordem será
toda
mandada pelos ares. Até a magia colocar tudo no lugar.
A virtude de
Doutor Estranho é levar o universo cinemático da Marvel para uma nova direção:
das histórias sobre playboys dotados de genialidade tecnológica e
super-soldados nobres e heroicos, passamos para um mundo dominado pela magia e
inteligência. Além de uma eletrizante utilização dos efeitos digitais para
criar um universo bem diferente de qualquer outra coisa que vimos em adaptações
cinematográficas recentes sobre super-heróis – multi-universos, loop temporais,
portais interdimensionais e a desconstrução do Tempo.
Mas tudo isso é
apenas a superfície. Para além desse avanço evolutivo da Marvel, Doutor Estranho explicita clichês do
entretenimento hollywoodiano. Mas principalmente, um clichê narrativo que é, na
verdade, o cerne ideológico do entretenimento comercial:
quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem – protagonistas que lutam para que uma ordem
seja mantida, mas o que realmente fascina o espectador é o show da
possibilidade de que a ordem será toda mandada para os ares.
Até que a magia
coloque tudo no lugar.
O personagem
Doutor Estranho faz parte do desenvolvimento de um sub-zeitgeist místico,
religioso e sobrenatural formado nos EUA por toda uma literatura de HQs,
magazines, pulp ficctions e filmes B sci-fi,
horror e fantasia no Pós-Guerra. Enquanto na Europa o misticismo gnóstico e o
Fantástico sempre esteve associado à literatura e movimentos artísticos de
vanguarda (Romantismo, Gótico, Expressionismo etc.), ao contrário, nos EUA
associou-se à subliteratura e entretenimento de massas.
Essa “nova
religião americana” (na expressão de Harold Bloom) tornou-se um gnosticismo de
massas. Porém, associado a uma indústria de entretenimento no qual o místico e
o sagrado é estetizado e neutralizado, convivendo confortavelmente com hábitos
ritualizados de consumo.
Se os
quadrinhos Stan Lee ainda criavam a mitologia dos super-heróis associada à
autodivinização (o que sempre indignou os fundamentalistas religiosos), nas adaptações
cinematográficas as mitologias mística e gnóstica serão enquadradas nos clichês
hollywoodianos de entretenimento – super-heróis amorais e a neurótica quebra e
retorno à ordem: função ideológica do cinema de massas para criar resignação e
conformismo no público.
Doutor Estranho explora os elementos mais críticos do questionamento ontológico
que o Gnosticismo faz à Ordem: multi-universos, a realidade como um constructo
e, principalmente, o Tempo como a principal falha cósmica que aprisiona a
humanidade.
Mas ao
contrário do universo Matrix no qual
o protagonista luta para desligar a ilusão e quebrar a prisão do Tempo, em Doutor Estranho (e de resto, em todo
universo Marvel no cinema), os super-heróis lutam pela manutenção da Ordem –
mortais vivem na realidade ilusória prisioneiros da seta do Tempo (entropia e
morte) enquanto os heróis (magos supremos e mestres da magia) lutam para que a
ilusão seja mantida.
O Filme
Dr. Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) é
um gênio da Medicina: um rico neurocirurgião com ego tão inflado como o do
Homem de Ferro Tony Stark. Trata com desdém os profissionais aos eu redor e
escolhe a dedo apenas os casos médicos mais desafiadores para ele.
Guiando
velozmente o seu carro esporte ao som de Interestellar
Overdrive, música do primeiro disco do Pink Floyd (sutil referencia ao
psicodelismo dos anos 1960, década na qual Doutor Estranho estreou nos
quadrinhos da Marvel), simultaneamente olha para relatórios médicos (Strange
pode ser inteligente, mas seu ego o faz parecer invulnerável) quando sofre um
brutal acidente com o carro devido a uma momentânea distração no volante.
Suas mãos são
as mais atingidas no acidente, o que é fatal para um neurocirurgião: cheias de
cicatrizes e sem mais precisão e firmeza, são agora uma pálida lembrança do
profissional de sucesso que era. Mas isso não faz repensar sua vida. Após
sucessivos fracassos em cirurgias, torna-se cada vez mais agressivo e retraído,
a ponto de bater em sua ex-amante e colega de trabalho Christine Palmer
(Rachael McAdams), a única pessoa em quem poderá confiar.
Strange vê
todas as soluções da Ciência e da Medicina falharem, ao mesmo tempo que conhece um ex-paciente,
recusado por ele, chamado Jonathan Pangborn. Um paraplégico que voltou a andar
após um período sob a tutela da Anciã (Tilda Swinton) no Nepal, onde aprendeu o
controle do corpo através da mente.
Falido e
carregando no pulso o último relógio da sua cara coleção (simbolismo importante
no filme), Strange junta o pouco de dinheiro que sobrou e viaja ao Nepal para
encontrar a cura. Mas lá encontrará muito mais: um novo mundo se abrirá
(literalmente, para outras dimensões) com ajuda não só da Anciã, mas também de
Mordo (Chiwetel Ejiofor).
Acabará
aprendendo como a magia é utilizada para proteger o planeta de “fanáticos” como
Kaecilius (Mads Mikkelsen), um ex-discípulo da Anciã que abandonou o Templo
para se associar a Dormammu, Deus da Dimensão Negra cujo propósito é a de consumir
a nossa.
Tempo e Imortalidade
Toda a
narrativa gira em torno do tema do Tempo e da Imortalidade. Para a maga
suprema, a Anciã, proteger o planeta é lutar pela manutenção a ordem da
Natureza, que a Dimensão Negra pretende quebrar.
“O mundo não é
o que deveria ser. A humanidade anseia pela vida eterna. Um mundo além do
tempo, pois o tempo nos escraviza. O Tempo é um insulto. Não queremos governar
esse mundo, queremos salvá-lo”, diz a certa altura Kaecilius na primeira luta
com Doutor Estranho.
Aqui temos
nessa linha de diálogo uma síntese da crítica Gnóstica à falha fundamental da
imperfeição do nosso Cosmos – cópia imperfeita da Plenitude, o chamado
“Pleroma” para os gnósticos. A combinação dessa crítica ao Tempo com o toque
místico budista da Anciã do Nepal, converge à própria visão da
mortalidade/reencarnação como a essência da prisão em que se torna esse mundo,
capturando as almas e obrigando-as à reencarnação (a Lei da Repetição) até que
conseguam “fugir” por meio da iluminação espiritual – escapar da “Roda do
Samsara”, para o Budismo Tântrico.
O Yantra Místico
Curiosamente,
essa filosofia libertária (de filmes como Matrix
ou séries como Sense8) é o propósito
dos vilões da Dimensão Negra. Anciã, Doutor Estranho e Mordo travam batalhas
invisíveis aos humanos no Universo Espelhado (que lembram bastante as
sequências do filme A Origem - Inception, 2010) justamente para manter
a Ordem.
Ironicamente o
design dos escudos energéticos manipulados tanto pela Anciã como pelo Doutor
Estranho possuem uma gestalt
semelhante ao dos manuscritos originais do Livro
Tibetano dos Mortos, assim como do Yantra Místico, a representação
simbólica do aspecto de uma divindade, inestimável para ajudar o caminho
espiritual.
Na tradição
tibetana são símbolos para alcançar a união com Deus e escapar da Roda do Samsara,
encerrado o ciclo de mortes e renascimentos. Ao contrário, em Doutor Estranho ajudam a manter a “ordem
natural” da seta do Tempo, a falha cósmica que mantém a lei da Repetição.
E todas as
lutas serão travadas em torno do hospital no qual Stephen Strange trabalhava – nada
mais simbólico: é no hospital onde médicos travam a batalha contra a seta do
Tempo, a entropia e a morte.
Yantra: Livro Tibetano dos Mortos e no filme "Doutor Estranho" |
Quebra e retorno à Ordem
Por isso, Doutor Estranho trabalha com uma
clássica variação do clichê “quebra-da- ordem-retorno-à-ordem: quem quebra as
regras deve ser punido, inclusive os próprios super-heróis. Em repetidas linhas
de diálogo do filme repete-se o mantra: “Mas um dia é preciso pagar a conta”,
diz Mordo seguidas vezes. Anciã salva a Terra por meio da própria quebra das
regras pelas quais luta – drena a energia da Dimensão Negra para ter uma vida
longa e fugir da morte. Enquanto Doutor Estranho, através da joia chamada “Olho
de Agamotto”, manipula o Tempo – avança e retrocede os eventos de acordo com as
necessidades das batalhas contra a Dimensão Negra.
Por isso, é
simbólico o relógio quebrado no pulso de Doutor Estranho, a única coisa que
restou da antiga vida: ele também deverá quebrar as regras do Tempo, assim como
almeja a Dimensão Negra.
E por que a
ênfase na autodivinização nos HQs originais de Doutor Estranho é substituída
pelo clichê da punição à quebra da ordem na adaptação cinematográfica? Para
pesquisadores como o alemão Dieter Prokop, essa é a essência ideológica da
linguagem do entretenimento para manter todos os espectadores na linha.
Ao se divertir
e, subliminarmente, receber essa mensagem sobre as consequências e punições
sobre desobediências à Ordem (qualquer ordem), o espectador sai do cinema
disposto à enfrentar, resignado, mais um
dia seguinte de trabalho e disciplina – sobre esse conceito clique aqui.
Narrativa inverossímil
Além disso,
Doutor Estranho peca por outra velha narrativa clichê hollywoodiana que é
totalmente inverossímil: a história de um homem branco que viaja para uma terra
“exótica”, cuja cultura e pessoas não respeita, e muito menos conhece a língua.
Apesar disso, de alguma forma, descobre que tem um dom natural pela magia e
rapidamente fica bom o suficiente para bater os praticantes que têm vivido nisso
há séculos!
Na verdade, Stephen Strange não muda e o seu ego permanece tão inflado como no início: tudo deve acontecer de acordo com seus próprios termos.
Na verdade, Stephen Strange não muda e o seu ego permanece tão inflado como no início: tudo deve acontecer de acordo com seus próprios termos.
Mas, apesar de
tudo isso, Doutor Estranho tem um
virtude irônica: pelo menos os civis inocentes estão à salvo das batalhas
amorais dos super-heróis, capazes de realizar destruições em larga escala para
derrotar inimigos que também querem destruir tudo. O que deixa duas opções para
os pobres civis: ou são mortos pelos super-heróis como efeitos colaterais, ou
mortos pelos vilões como vítimas de atentados terroristas.
Em Doutor Estranho, as batalhas ocorrem no
Universo Espelhado, plano dimensional invisível para os humanos – apesar de em
alguns momentos sentirem alguns efeitos. Com exceção na batalha em Hong Kong na
qual a Dimensão Negra destrói o prédio do Sanctum Sanctorum – um dos escudos
etéricos que protegem a Terra das forças do mal.
Mas,
prontamente Doutor Estranho gira o Olho de Agamotto retrocedendo o Tempo e
reconstruindo tudo, o prédio e a vida das vítimas.
Mais do que
dinheiro, as adaptações cinematográficas do sub-zeitgeist gnóstico das HQs da
Marvel parecem cumprir uma função místico-ideológica bem clara: no lugar da
autodivinização libertária, super-heróis que lutam para que a Ordem seja
mantida sob a ameaça da punição. Afinal, sempre chega o dia de “pagar a conta”.
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