Compenetrada e
em tom de grave denúncia, um dos manifestantes que invadiram a plenária da
Câmara dos Deputados na semana da passada, pedindo “intervenção militar
institucional” no País, gravou um vídeo no qual aponta para um painel dos 100
anos da imigração japonesa dizendo: “cena nojenta, a nossa bandeira com o
símbolo vermelho...”, numa alusão a um suposto complô comunista para alterar a
bandeira nacional. Na verdade a bandeira era do Japão. E o círculo vermelho, o
simbólico Sol Nascente. O vídeo da manifestante viralizou nas redes sociais
como uma insólita gafe que, no máximo, provocaria apenas vergonha alheia.
Porém, é mais do que isso: é um sintoma de um País doente, um surto
semiótico-esquizofrênico. Patologia que, recentemente, acometeu até uma emérita
professora de Semiótica que viu nas ciclofaixas pintadas de vermelho uma cilada
subliminar do Comunismo em São Paulo. Originado no próprio cotidiano esquizoide
das classes médias (submetidas a mensagens contraditórias da sociedade de
consumo), e após ser açodada pela grande mídia para apoiar o recente golpe
político, hoje a patologia espalha-se endemicamente na sociedade expondo três
sintomas principais: paranoia, hebefrenia e catatonia.
Minha esposa
tem uma amiga com um bom cargo Sênior na área de pesquisa em Marketing. Está na
faixa dos 30 anos e vive a sua plenitude profissional, gerenciando esse setor na
empresa.
Recentemente,
tomou a importante decisão de adquirir a casa própria, um apartamento de 60 metros
quadrados no bairro nobre de Pinheiros, São Paulo. Apesar da reduzida metragem
(talvez perfeito para uma pessoa), o valor do imóvel beira a casa do milhão de
reais. Financiou em 30 anos, o que comprometerá a cada mês 5 mil reais dos seus
rendimentos.
Essa é um dos
paradoxos da classe média: ela diz que o apartamento é seu, mas terá que
pagá-lo até chegar à faixa dos 60 anos. Não importa o que ocorra em sua vida,
nos altos e baixos de toda vida profissional e pessoal, terá que pagar as
parcelas do financiamento vivendo a contradição salário versus renda – enquanto
o banco extrai renda do
financiamento, ela paga com o salário,
meio evanescente de troca.
Ela acredita
que está subindo na vida, embora a propriedade (a riqueza) seja apenas uma
promessa futura, submetida às contingências do destino.
Imagino o custo
psíquico dessa cena contraditória à qual a classe média submete-se diariamente.
Ansiedade, expectativa, angústia mesclada com esforço, força de vontade e
positividade.
É a sociedade do mérito, a Meritocracia, a qual submete seus
devotos a uma situação de “duplo vínculo”- a sociedade de consumo que oferece
lançamentos imobiliários com “pocket forest” e “varanda gourmet” em metragens
mínimas e custos máximos; imagens publicitárias que transformam de cidadãos em
máquinas desejantes. Assalariados que, através de um meio evanescente de troca,
sonham galgar a hierarquia social e ficar ao lado daqueles que vivem da exclusivamente
da renda e do lucro.
Gregory Bateson e o conceito de "Duplo Vínculo" |
O paradoxo esquizofrênico
“Duplo Vínculo” ("Double Bind") é um conceito clássico criado pelo antropólogo e psiquiatra inglês Gregory
Bateson, o mais famoso membro da chamada “Escola de Palo Alto”, instituto de
pesquisa mental na Califórnia que se tornou referência no âmbito da psiquiatria
e terapia familiar.
Trata-se de uma situação onde a pessoa se vê diante de mensagens simultâneas
e contraditórias de aceitação e rejeição (“duplo vínculo”). Esse quadro é frequente
no meio familiar, e ocorre em especial entre crianças e pais. Segundo Bateson,
adultos jovens que desenvolveram esquizofrenia muitas vezes têm história de
relação de duplo vínculo na infância. É comum crianças ouvirem dos pais
variantes de um discurso com o seguinte teor: “gostamos muito de você, mas
temos de castigá-lo porque se não o fizermos você irá se comportar mal, e não
queremos que isso aconteça porque queremos continuar gostando de você”.
Diante de tal paradoxo, a vítima vê-se presa num jogo que “não pode
ganhar”: sem entender a metacomunicação, não consegue lidar com as complexidades
do discurso (metáforas, paradoxos, etc.) desenvolvendo sintomas esquizofrênicos,
ou mesmo o quadro pleno da doença.
O duplo vínculo cria uma situação externa ameaçadora para o indivíduo
porque incompreensível. Como resultado a pessoa procura modificar a realidade
para que ela se mostre menos ameaçadora. A consequência final pode ser a
alienação mental.
Esquizofrenia e sociedade de consumo (cena do filme "Eles Vivem", 1989) |
Esquizofrenia como patologia social
É claro que
Bateson estudava quadros de terapias das relações familiares. Porém, estudiosos
como Ciro Marcondes Filho acreditam que o conceito de “Duplo Vínculo” possa ser
extrapolado para o estudo de patologias sociais dominadas por sintomas esquizoides
– leia MARCONDES Filho, A Produção Social
da Loucura. São Paulo: Paulus, 2003.
A sociedade de
consumo e meritocrática é uma “doença contemporânea” não apenas porque cria uma
cultura na qual o “ter” substitui o “ser”. O problema não é comprar, mas os significados esquizofrenicamente
contraditórios que as mensagens publicitárias comunicam aos potenciais
consumidores: de um lado, a afirmação universal de que todos têm o direito à
felicidade e à realização dos seus sonhos, e, do outro, a situação particular
de impedimento – a clivagem financeira.
Pois a publicidade e toda a sociedade de
consumo criam essa verdadeira cilada comunicativa para os indivíduos:
explicitamente, cada filme publicitário parece uma reivindicação universalista
do direito à felicidade; mas uma contra ordem não-verbal, uma espécie de
subtexto, transpassa todo o campo das mensagens publicitárias: sem dinheiro,
não há felicidade.
A ameaça comunista está em toda parte? |
Sintomas da patologia social
Vítima desse duplo vínculo, o sujeito não
consegue criar uma metacomunicação (distanciamento) e compreender a situação
paradoxal, contraditória e impossível de ser resolvida: sem compreender a cena,
o indivíduo desenvolve os três sintomas clássicos esquizofrênicos:
(a) paranoia
(sem compreender a mensagem contraditória, acredita que exista algum sentido
oculto e, por isso, hostil),
(b) hebefrenia
(padrão de pensamento concreto e infantil, incapaz de compreender metáforas,
analogias etc.) e;
(c) catatonia
(fecha-se no seu mundo interior).
Três sintomas em um contexto geral de negação e
alienação da realidade.
Invasão da Câmara dos Deputados: da Política ao sintoma
A
inacreditável invasão da plenária da Câmara
dos Deputados por um grupo de cerca de 50 manifestantes gritando
palavras de
ordem como “general aqui” e “intervenção militar institucional” contra a
corrupção foi, tomado isoladamente, um ato político de extrema direita.
Suspeita-se, incitado pelo procurador da Lava Jato, Deltan Dallagnol,
atacando congressistas por
estarem ameaçando as investigações e clamando pela ajuda “do povo” nas
redes sociais.
Mas da política passamos para o sintoma. O
impagável vídeo de uma das manifestantes denunciando o que seria “a nova
bandeira do Brasil” dominada por um “símbolo vermelho comunista” em uma “cena
nojenta no Congresso Nacional”. Diz apontando para um painel da comemoração dos
100 anos da imigração japonesa no Brasil em um saguão do Congresso - veja o vídeo no final da postagem.
Mensagem subliminar comunista na revista "Veja"? |
Sem entender a gestalt ou simbolismo da
comunicação visual (a fusão do losango da bandeira brasileira com o círculo
vermelho da bandeira do Japão), entrou em um surto paranoico-semiótico,
denunciando uma sinistra conspiração. “Preparem-se brasileiros... você que
ainda não se deu conta... a bandeira não será mais como conhecemos...”, diz
assombrada Rosangela Elisabeth Muller.
Em seu perfil do Facebook há pérolas como uma
suposta mensagem subliminar de Carlos Arthur Nuzman (presidente do Comitê Olímpico brasileiro) na abertura das Olimpíadas
no Rio de Janeiro. Ao invés do verde e amarelo, ele teria dito “yellow e
red”... na verdade cores pertencentes à bandeira olímpica.
Esse delírio semiótico no qual um
significante (a cor vermelha) se desloca do seu significado (o Sol Nascente da
bandeira japonesa/união das raças através do esporte), não é privilégio apenas
de anônimos patriotas convocados por um procurador para alguma cruzada épica.
Em 2014 a emérita professora de Semiótica da
PUC/SP, Lucia Santaella, alertou para um suposto perigo subliminar nas
ciclovias pintadas de vermelho da cidade, iniciativa do prefeito petista Fernando Haddad:
“uma descarada propaganda vermelha do PT, provavelmente encomendadas do Diabo
em pessoa”. Vermelho, PT, Comunismo e o Diabo, outro delírio semiótico onde o
significante (cor /vermelho/) se desloca do significado (convenção simbólica de
sinalização internacional das ciclovias) - sobre isso clique aqui.
Ideologias são as práticas cotidianas
Por que esse delírio semiótico? Sintoma do
quê? Do tradicional anti-comunismo atiçado pela propaganda política?
Ideologias são as práticas cotidianas. Elas
não nascem das propagandas políticas. Estas apenas reforçam predisposições existentes nas práticas mais comezinhas do dia-a-dia.
O delírio semiótico nasce das práticas
cotidianas dos duplos vínculos vividos pela classe média que equivale à
metáfora (ooopa! cuidado com metáforas) do cavalo que tenta pegar a cenoura na
ponta de uma vara enquanto empurra a corroça – preso na cilada comunicativa de
uma sociedade de consumo que ao mesmo tempo insufla desejos que serão
imaginariamente realizados pelo salário que produz renda e lucro para uma
minoria.
A
cilada esquizofrênica do duplo vínculo cria os sintomas esquizoides que
alimentam o atual anti-comunismo e o retro-fascismo: o padrão de pensamento
hebefrênico não consegue compreender, por exemplo, a metáfora ou gestalt de um
painel alusivo à imigração japonesa. Assim como vê na cor vermelha, algum
sentido oculto já que não consegue entender a alusão simbólica da cor.
O que produz a paranoia em um mundo no qual a
comunicação é reduzida à tábula-rasa, onde não há simbolismos ou alusões,
apenas indícios de causa-efeito conspiratório.
O ponto de chegada é o delírio catatônico
cujos sintomas agora tornam-se públicos e cada vez mais audaciosos depois que a
grande mídia abriu a caixa de pandora.
Foram úteis até recentemente, mas começam a se tornar incômodos porque os cidadãos acometidos pelo surto esquizoide-semiótico procuram agora uma tradução política que normatize a sua patologia.
Foram úteis até recentemente, mas começam a se tornar incômodos porque os cidadãos acometidos pelo surto esquizoide-semiótico procuram agora uma tradução política que normatize a sua patologia.
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