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sexta-feira, 28 de abril de 2017

Nós viemos para bagunçar os lugares da mesa., por Tainá Aparecida Silva Santos.

Por Taina Aparecida Silva Santos, publicado em Negro Belchior.
Falar sobre o atual panorama da luta por cotas nas universidades estaduais paulistas, em particular na Unicamp, me remete a pensar numa epígrafe contida no texto Racismo e sexismo na cultura brasileira, de Lélia Gonzáles. Ela diz o seguinte:
“Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente prá uma festa deles, dizendo que era pra gente também. Negócio de livro sobre a gente, a gente foi muito bem recebido e tratado com toda a consideração. Chamaram até para sentar na mesa onde eles estavam sentados, fazendo discurso bonito, dizendo que a gente era oprimido, discriminado, explorado. Eram todos gente fina, educada e viajada por esse mundo de Deus. Sabiam das coisas. E a gente foi sentar lá na mesa. Só que tava cheia de gente que não deu prá sentar junto com eles. Mas a gente se arrumou muito bem, procurando umas cadeiras e sentando bem atrás deles. Eles tavam tão ocupados, ensinando um monte de coisa pro crioléu da platéia, que nem reparam que se apertasse um pouco até que dava para abrir um espaçozinho e todo mundo sentar junto na mesa. […] A gente tinha que ser educado. E era discurso e mais discurso, tudo com muito aplauso. Foi aí que a neguinha que estava sentada com a gente deu uma de atrevida. Tinham chamado ela pra responder uma pergunta. Ela se levantou, foi lá na mesa pra falar no microfone e começou a reclamar por causa de certas coisas que tavam acontecendo na festa. Tava armada a quizumba. A negrada parecia que tava esperando por isso prá bagunçar tudo. E era um tal de falar alto, gritar, vaiar, que nem dava prá ouvir discurso nenhum. Tá na cara que os brancos ficaram brancos de raiva e com razão. […].”
Pensando na experiência que tive em participar da construção da luta por cotas, enquanto membro do  Núcleo de Consciência Negra da Unicamp me dedicarei ao longo deste texto a narrar a forma que fomos e estamos sendo recebidos nessa “festa”. Coloco isto não apenas como denúncia do racismo corriqueiro que enfrentamos cotidianamente em espaços brancos e elitistas como as universidades do estado de São Paulo, mas, também, enquanto uma proposta de fazer uma discussão sobre o lugar da luta antirracista nas agendas dos movimentos sociais. Nesse caso, daqueles que compõem a comunidade acadêmica e pouco se importam em dialogar com o movimento negro.
A resistência da Unicamp em, pelo menos, discutir a implementação do sistema de cotas no ingresso dos cursos de graduação há muito vem sendo denunciada por negras e negros que passaram por essa universidade. Numa breve conversa com antigos membros do NEN – Núcleo de Estudos Negros, que existiu há, aproximadamente, dez anos , é possível tomar conhecimento da presença desses debates e questionamentos de longa data. Depois de todo esse tempo, ocorreram novas configurações da organização negra e da luta antirracista na Unicamp, o que culminou na existência do atual Núcleo de Consciência Negra e da Frente Pró-Cotas, que, em 2015, potencializaram os acúmulos que resultaram na implementação da reserva de vagas para negros e indígenas em alguns programas de pós-graduação. A conquista da reserva de vagas em alguns programas de pós do IFCH – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas abriu os caminhos. No ano de 2016, o programa da Faculdade de Educação também implementou e, na última semana, a pós-graduação do Instituto de Economia também se somou à adoção dessa política.
Nesse percurso, a necessidade da implementação de cotas no sistema de ingresso dos cursos de graduação evidenciou-se ainda mais, pois, nenhuma política de ação afirmativa que a Unicamp utilizou, até então, foi eficaz no que se refere ao acesso de negras e negros. Ao ser colocada em cheque a credibilidade do PAAIS (Programa de Ação Afirmativa para a Inclusão Social,) a discussão causou mais impactos que trouxeram à tona muitas sutilezas do racismo presente na cultura brasileira e que orientou as maneiras que fomos recebidos nessa “festa”.
O primeiro espanto, de boa parte das pessoas atingidas pela discussão, foi a possibilidade de não estarmos loucos e a cotas serem uma saída para democratização do acesso à universidade pública. Entendo que boa parte desse desconhecimento pôde ser oriundo de ignorância, mas a experiência das federais foi praticamente ignorada por essas bandas. Isso foi e ainda é muito nítido: é incrível o número de pessoas, entre elas, professores e professoras, que não tinham noção, e muitos, nem interesse em relação ao que ocorreu nas outras universidades brasileiras. Entre trancos e barrancos seguimos num terreno um pouco menos desconfortável, mas ainda sim, nada favorável. Esse marco pode ser ilustrado pela possibilidade de, já em alguns espaços durante os debates, a ideia de qualquer pessoa poderia ser racista no Brasil não fosse tratada como loucura.


Foto de Rafael Kennedy

O avanço e ganho político nesse embate, no qual se destacou o processo de luta pelas cotas, ficaram marcados por um momento nunca visto na Unicamp até 2016: uma greve de aproximadamente cem dias, na qual as reivindicações das cotas raciais, sociais e ampliação da permanência estudantil foram o carro chefe. Claro que isso não poderia ocorrer sem ter tido uma acirrada disputa. Foram longos e desgastantes afrontes para que isso fosse possível. Nos ápices das discussões, momentos em que tivemos que falar sobre branquitude, por exemplo, fomos acusados de estarmos “atrapalhando a discussão”.
Quando passamos da fase de falarmos sozinhos ou para nós mesmos, o racismo foi reconhecido enquanto problema, porém, de maneira superficial, sem a profundidade e atenção que merece. Começamos a ser convidados para as festinhas, em que, no primeiro momento, “os brancos legais” falavam sobre todo o assunto de gente entendida, faziam “as discussões políticas” e depois nos cediam lugar na mesa para falar de “problemas específicos”, como se não tivessem responsabilidade nenhuma sobre, absolutamente, nada. Entretanto, não foram poucas as vezes que esperavam, somente, uma fala sobre nós: o lugar de negro – vítima, do oprimido – sem agência e sem resposta. A partir de então, algumas resistências passaram a fazer mais sentido para mim e foi possível perceber que mais coisas informavam os anseios de quem tinha expectativa que os negros “estivessem na universidade para sambar”.  Sutilezas que escancaram as leituras racializadas que são feitas dos nossos corpos e das nossas ações num espaço como este.
As afirmações corriqueiras passaram a ter algo a mais, inclusive uma clássica: a que as pessoas negras são invisíveis quando ocupam lugares de produção de conhecimento, de poder, ou seja, aqueles em que se naturalizou a presença de brancos. Eu não discordo, porém acho que a situação é um pouco mais complexa e o debate deve ser mais qualificado para não nos aprisionarmos no perigo de uma história única, como alertou Chimamanda Ngozi Adichie. Além disso, ficarmos atentos para o que, quem ou do que provém esse silenciamento é um bom começo.
No exercício de se isentar da discussão sobre relações raciais, aqueles que têm boa retórica usam como defesa, e até mesmo como álibi, a “questão de classe”. De maneira simplista subordinam a raça a ponto de quase apagá-la às custas de manter a integridade das questões “maiores”… de gente fina e educada. O lugar do subemprego ocupado por trabalhadoras e trabalhadores negros na universidade é volta e meia usado como um objeto para demonstrar empatia à população negra e conhecimento sobre o problema do racismo. Discurso que se acaba nele mesmo quando não se dá importância para que uma política como as cotas poderia ter na vida de famílias como as dessas pessoas que, no limite, são como as família de poucos pretos e pretas que ainda são os únicos nas suas salas. Frente a isso, quando chegamos nessa “festa” e tomamos o microfone para falar sobre isso, “está armada quizumba”, a possibilidade de passarmos despercebidos se esvai e se iniciam as tentativas de desqualificação e silenciamentos. No entanto, reconhece que nos calar não tem sido uma tarefa fácil, pois nós viemos para mudar os lugares na mesa.
O trabalho científico e acadêmico de muitas pessoas negras sobre o assunto ainda continua sob um silêncio ensurdecedor, pois mesmo nossa argumentação sendo bem fundamentada, ela não vale, simplesmente porque inclui o pensamento de pessoas que a comunidade acadêmica deixa à margem. A atuação política do movimento negro brasileiro, que pauta as cotas raciais já em termpos anteriores à redemocratização, não conta e torna-se enfeite, pois, para muitos, a política de reserva de vagas “foi um mecanismo de cooptação que o Partido dos Trabalhadores – PT utilizou para conquistar essa população”. Foi, também no sentido de sanar esse “desconhecimento” da realidade que assombra o Brasil que foram organizadas três audiências públicas durante o segundo semestre de 2016. Foi um evento proveitoso, que contou com intelectuais, ativistas de movimentos sociais, estudantes de dentro e fora da Unicamp, cursinhos populares e etc. Desse processo, resultou um material elaborado pelo Grupo de Trabalho responsável pela organização dessas audiências que contém as transcrições, resumo das falas e, ainda, uma proposta para que a Unicamp adote as cotas raciais como política de ação afirmativa.
Nas vésperas da votação do Conselho Universitário que irá decidir se a Unicamp implantará as cotas ou não, continuamos sendo ignorados por muita gente que ainda têm coragem de dizer esse não é o caminho para prosseguirmos nessa luta e até que precisamos de mais tempo para fazer esse debate, pois “a Unicamp precisa cuidar dos negros de dentro para depois incluir os de fora”. Posicionamentos que não são de se espantar e também não são inéditos- a experiência das universidades federais nos ensinaram  boas lições nesse sentido.
Após 2012, ano no qual a discussão sobre cotas tomou âmbito nacional, uma série de estudantes e professores de uma universidade “de ponta” alegam incompreensão sobre o assunto e continuamos na saga de convencer essas pessoas que direitos sociais não são privilégio para os brancos. Espero que o dia 30 de maio seja um dia mudança, pois se, até lá, não conseguirem entender que negros e negras também são cidadãos deste país, não terão motivos para mais tarde nos chamarem de radicais.
Taina Aparecida Silva Santos* – Milita no movimento negro e no movimento de mulheres negras da cidade de Campinas; graduanda em História no  IFCH/ UNICAMP.

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