Toda
construção expressa um conflito e uma forma – às vezes oculta – de
resolvê-lo. Para criar cidades menos alienadas é preciso um outro olhar
sobre os espaços públicos
Por Mariany Araújo
As
grandes cidades se veem na tentativa de equilibrar um complexo jogo
formado por tensões de naturezas bastante antagônicas: interesses
coletivos e individuais, públicos, privados, históricos, vanguardistas,
filosóficos e morais que, de tão constantes e aparentemente
indissolúveis, se tornaram quase premissas para a convivência – ou ao
menos a tentativa de convivência – na metrópole. Este jogo normalmente
exige uma escolha individual, uma tomada de posição que não vem
acompanhada da clareza necessária sobre qual caminho leva, de fato, à
construção de um lugar melhor para todos.
Diante
da dúvida, a virtualidade dos encontros parece um escape tangencial: o
homem moderno acreditou que a ciência e a tecnologia o libertariam da
dependência direta dos lugares pelas vivências virtuais. Distâncias
diminuídas, noção de tempo e espaço completamente alterada, neste lugar
meio não-lugar se chega tão rápido quanto se
parte, e sem necessariamente levar a cabo o motivo que te fez ir até lá.
Mas, quando até o virtual tornou-se objeto concreto de análise, o caos
ambiental é que ironicamente devolveu à questão espacial sua devida
relevância. Não houve escapatória: lidar com os lugares que ocupamos e
seus limites se coloca também como mais uma condição inerente da vida em
sociedade.
O
espaço público é palco de múltiplas manifestações, numa espécie de
descompressão coletiva do estresse cotidiano; onde da rua se assiste ao
surgimento de religiões, dietas, festas, obras de arte, apropriações e
reapropriações, saraus e manifestos políticos. A grande beleza do espaço
público se revela em, justamente, ser público; de todos, e por isso
conformado por limites um tanto, digamos, enevoados. O virtual e o
físico encontram-se e se permeiam, confundem-se. Torna-se difícil ter
certeza de onde estamos, quais são os contornos, onde eles nos cercam,
onde nos permitem e onde nos proíbem. O limite se instala entre
realidades, não pertencendo a nenhuma delas mas, ao mesmo tempo,
pertencendo às duas; é um jogo duplo que marca a ruptura mas também a
união, inícios e finais, portas e transições, como duas faces que olham
em sentidos opostos. E é muito importante não perder a dimensão de que
neste jogo existem sempre os dois lados separados-unidos pela fronteira,
e que por mais confortável que seja o lado de dentro – onde estamos -,
também tem o lado de fora, ou seja, o outro, que se colocando a
uma distância razoável de nós, se faz visível. É imprescindível para a
cidadania enxergar esse outro, mas para isso é preciso sair da
centralidade de si mesmo, é necessário olhar em volta.
Em
meio a tanto vizinhos, vêm se criando os chamados “condomínios
virtuais”, com muros quase invisíveis. Bem, os muros na arquitetura nada
mais são do que limites virtuais trazidos à materialidade e que impõem a
ruptura a um espaço antes contínuo; tal limite sempre é pensado antes
de ser construído, e justamente por ser princípio de qualquer construção
é que o pensamento rígido e intolerante pode segregar tanto e até mais
do que qualquer fronteira física.
De
qualquer maneira, a arquitetura exerce um papel social essencial
enquanto conformadora dos limites concretos e simbólicos que tratamos
aqui: ela imprime no meio físico um discurso, e levanta o questionamento
a respeito de como, e com qual intenção, estão sendo contornados nossos
espaços. Praças, condomínios, escolas e cortiços: nenhum deles existe
sem estar inserido em um amplo contexto que abarca todos nós, e como a
existência de um fato arquitetônico não confere automaticamente uma
licença ética para que ele exista, é preciso perceber o alcance destes
projetos para além de suas paredes; pois este é o alcance do espaço na
arquitetura.
Construir
é inevitável, e construir é sempre uma decisão política. Qualquer obra,
mais que decisão técnica, é sempre política, e há de se questionar a
respeito desta intervenção do espaço que, tantas vezes, é feita maneira
violenta e deixa cicatrizes não só no tecido urbano como na vida e
história das pessoas que vivenciam esse lugar, que construíram suas
vidas tendo este cenário, e neles desenvolveram uma relação de troca, de
identidade e conformação mútua.
A
busca de um outro olhar sobre nossos espaços construídos pode criar uma
cidade melhor, mais inclusiva e civilizada; que nos proporcione a
humanização das relações, que reverta esse cenário urbano de hoje, tão
cheio de coisas e vazio de significados, e que, por fim, nos ofereça
também o acolhedor conforto da estabilidade do lugar – a tão helênica stabilitas loci – na era do efêmero e da mudança.
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