O relato da figurinista que acusa o ator José Mayer de assediá-la fala com crueza sobre o que as mulheres ouvem todo dia de anônimos dentro de uma cultura covarde e desprezível
A esta altura, o Brasil inteiro já sabe que um galã da principal rede de televisão do país foi acusado publicamente por uma figurinista de tê-la assediado nos estúdios da TV Globo. Susllem Tonani, de 28 anos, relatou detalhes das insistentes investidas do ator José Mayer em um texto em primeira pessoa, publicado, em princípio, na madrugada do dia 31, no blog “Agoraéquesãoelas” do jornal Folha de São Paulo. Com o inequívoco título “José Mayer me assediou”,
trouxe de volta a eterna temática do assédio sexual à pauta nacional.
Desta vez, envolvendo um senhor que entrou na casa dos brasileiros
reiteradamente nas últimas décadas, desde quando Mayer era apenas um
jovem ator promissor.
A estampa do galã famoso e bem sucedido, no entanto, embaralha a mente de quem o imagina soltando um despretensioso (?) “fico olhando a sua bundinha e imaginando seu peitinho”,
“você nunca vai dar para mim?”, como relatou Susllem, a jovem que viveu
uma rotina contínua com ele durante o período que durou a novela “A Lei do Amor”.
Segundo ela, foram oito meses de convívio profissional em que começou a
ouvir elogios de Mayer, que passaram a cantadas e até chegar ao impulso
macho de um homem das cavernas. “Em fevereiro de 2017, dentro do camarim da empresa,
na presença de outras duas mulheres, esse ator, branco, rico, de 67
anos, que fez fama como garanhão, colocou a mão esquerda na minha
genitália.” Entende-se pelo texto de 879 palavras que depois disso ela
parou de falar com ele. Contrariado, a chamou de “vaca” na frente de
outras pessoas. Foi a gota d’água para que ela fosse ao RH da Rede Globo
e à ouvidoria contar o que aconteceu.
O relato da figurinista foi polêmico desde o início, não só pela
empresa e o personagem envolvidos, mas até pela forma como veio a
público. O duro desabafo ficou no ar por algumas horas no blog, e depois
retirado do ar. Diante de uma acusação tão forte, era preciso ouvir o
outro lado, no caso a rede Globo e o próprio acusado. No final da tarde
de sexta, o texto voltou a ser publicado, e a Folha deu a matéria
completa. Ao jornal, ele disse, por meio de nota, que respeita as
mulheres, “meus companheiros e o meu ambiente de trabalho e peço que não
misturem ficção com realidade”. “As palavras e atitudes que me
atribuíram são próprias do machismo e da misoginia do personagem Tião
Bezerra, não são minhas!”, mencionando o vilão escroque que interpretou
na novela que acaba de terminar.
Estaria ele insinuando que Sullem misturou ficção e realidade
e que assédio é coisa de personagens malvados? Seria ela tão ‘suicida’
de inventar uma calúnia e se expor dessa maneira? E se é inocente, por
que o ator não fala abertamente, em vez de escolher uma fria nota como
meio de comunicação?
A TV Globo, por sua vez,
disse à Folha que “o assunto foi apurado e as medidas necessárias estão
sendo tomadas”, lembrando que repudia toda forma de desrespeito,
violência ou preconceito. É uma saia justa e tanto para a emissora que
exporta novelas para o mundo. Mas, tudo indica que não é o primeiro
caso. Segundo a colunista de TV Keila Jimenez, do portal R7, “os casos de assédio são tantos que a emissora criou até um departamento para cuidar só disso.”
A empresa só não esperava que Sullen fosse tomada de uma coragem rara
entre as mulheres. Não só por denunciar um homem muito mais poderoso
que ela, protegido por um aparato midiático, mas pela crueza de suas
palavras no texto. “Sim, ele colocou a mão na minha buceta e ainda disse
que esse era seu desejo antigo”, reitera ela em seu relato. Na terra em
que se emprega a expressão “caralho” a três por quatro, a palavra
“buceta” é algo quase chocante. Por que ela não optou por “vagina”? Bem,
talvez porque a verdade precisa ser contada sem rodeios, na linguagem
que ela se apresenta. “sua bundinha”, “seu peitinho”... que mulher não
ouviu isso a vida inteira de estranhos na rua, no ônibus, ou até no
confessionário de uma igreja... (sim, eu ouvi de um padre numa igreja do
bairro Vila Mariana, quando tinha somente 12 anos).
A jovem figurinista tocou, ainda, em outra ferida cruel do machismo
no Brasil, ao citar a presença de duas testemunhas femininas quando
Mayer a tocou: a anuência de muitas mulheres que naturalizam esse
comportamento masculino, diferenciando o papel dos gêneros. “Elas? Elas,
que poderiam estar eu meu lugar, não ficaram constrangidas. Chegaram
até a rir de sua “piada”. Eu? Eu me vi só, desprotegida, encurralada,
ridicularizada, inferiorizada, invisível. Senti desespero, nojo,
arrependimento de estar ali. Não havia cumplicidade, sororidade.”
A continuação deste episódio, vale dizer, já tem um roteiro
conhecido. O aparente assédio de Mayer, na cabeça de muitos, será taxado
como coisa de feminista histérica.
Ele é perfilado pela mídia que cobre televisão como um homem bem
casado, filhos, que gosta de cuidar de plantas e curtir a família.
Empatia total com o público da rede Globo. Contrasta com o imaginário
sobre assédio e o machismo, que seria obra de homens maus, escondidos na
virada da esquina de uma rua escura esperando uma mulher passar de
minissaia ou decotes provocantes. Não, ele também pode vir de um ator em
posição dominante, de um parente, de um chefe, de um funcionário que
vai consertar a TV na sua casa, como contou Rita Lee em su biografia,
lembrando o episódio que a marcou na infância.
O tal assédio nosso de cada dia
é muito mais grave do que pode parecer, e precisa ser explicado
inclusive às crianças. Faz bem a mãe e o pai que alertam filhas e filhos
para o que sempre existiu e ninguém admite, ou custa a acreditar.
Felizmente, ao reconhecer essa doença social, muitas mulheres do Brasil também começam a fortalecer o caminho da cura. Não se pode naturalizar essas grosserias, não se pode deixar de denunciar, de falar, de contar, de dar nome aos bois, venha o assédio de onde vier,
inclusive da rede Globo. A maior emissora do país podia aproveitar o
ensejo e usar seu poder de comunicação para abraçar melhor a primavera feminista que varre o Brasil nos últimos tempos. Assédio não é normal, como lembra o blog AgoraéqueSãoElas. É covarde e desprezível.
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