A troca de olhares, no Brasil, é como na Índia, na Etiópia, no
Peru. A gente olha, é flagrado e não se constrange. A roupa, a bunda, a
cara, a conversa da mesa ao lado
Por Maria Bitarello | Imagem: Amrita Sher-Gil, autorretrato
Semana passada meu padrasto americano estava em São Paulo e fomos
tomar uma cerveja no bar da esquina aqui de casa. Ele comentou que gosta
da maneira como as pessoas se olham em São Paulo. Que é muito diferente
da forma como as pessoas se olham no interior de Minas, onde ele mora
com minha mãe. Achei que faz total sentido. Sou uma entusiasta da
prática de people watching, gosto de observar essas sutilezas,
mas até então sempre as definia em termos culturais bem amplos.
Brasileiros olham de um jeito, franceses de outro, americanos de outro,
por aí vai. A observação dele me levou a ponderar também sobre as
diferenças regionais. E no ato, no meio daquele copo de cerveja, soube
que seria esse o mote pra minha crônica dessa semana.
Há quem fique embaraçado diante de uma encarada. Os americanos são
assim. E sim, estou generalizando americanos. De modo geral, o americano
médio vai sorrir e dizer alguma amenidade pra amaciar o desconforto e
quebrar o silêncio que envolve a troca de olhares com um desconhecido.
Dá pra ver no corpo deles a agitação. Já os franceses, também de forma
grosseiramente generalizada, reagem com mais agressividade. Uma troca de
olhares sustentada durante certo tempo pode ser percebida como uma
afronta, uma provocação. E daí pode surgir um bate-boca. O comportamento
no Brasil se aproxima mais do observado em países menos formais, muitas
vezes ditos subdesenvolvidos. Onde as pessoas não têm vergonha de se
olhar e onde isso não é, a princípio, um desrespeito. Na Índia é assim,
no Nepal; também no Benim, na Etiópia; aqui ao lado na Bolívia, no Peru.
Talvez sejamos mais cara-de-pau, porque a gente olha mesmo. Olha, é
flagrado olhando e não se constrange. Continua a olhar. A roupa, a
bunda, a cara, presta atenção na conversa da mesa ao lado. A gente
disfarça menos nossa curiosidade. Mas, seguindo a dica do meu padastro,
há, sim, distinções regionais. Tomemos São Paulo. Aqui, como em outras
megacidades cosmopolitas, convivemos com pessoas muito diversas o tempo
todo. Tem gente do Brasil todo, do mundo todo, pertencente a uma
enormidade de tribos urbanas diferentes, o que muda o guarda-roupa, o
código social, o corte de cabelo, o vocabulário, a linguagem corporal. É
difícil chocar alguém em São Paulo: aqui se vê de tudo. Talvez por isso
o olhar do outro pareça até meio desinteressado e blasé, porque afinal é
difícil competir com aquela pessoa que desce a Augusta de madrugada
vestida de Edward Mãos-de-Tesoura.
Esse anonimato que a multidão paulistana confere pode ser o
desespero de muitos recém-chegados; muitos dos quais desistem da cidade
por essa razão mesma. Outros se refestelam nessa liberdade. Porque
ninguém te conhece, pode-se estar a só, entregue ao devaneio, à
observação, lá no meio da multidão, sem patrulha. Numa cidade menor é o
contrário: há sempre alguém conhecido; essa delícia do anonimato parece
intangível. Penso que pode ser esse olhar “vigilante” do interior a que
meu padastro se referia. Ele, que é gringo no país e na cidade, embora
já esteja no Brasil faz tempo, sente esse olhar que é curioso e, ao
mesmo tempo, espia. É o que acho.
Sampa é uma cidade gigantesca e organizada em bolsões regionais e
culturais, agrupada em comunidades. Essa cidade só é possível porque
reiteramos todos um acordo tácito de conviver nesse espaço. E aqui
dentro também o olhar varia de bairro pra bairro. Na Vila Madalena, onde
morei nos últimos cinco anos, durante os dias de semana a onda é hipster/cool. Cada pessoa transmite mensagens muito específicas com suas roupas, tatuagens, piercings,
bicicletas e bigodes. Ocorre uma troca de olhares muito afirmativa de
sua identidade, muito diferente da que se nota na Av. Paulista no fim da
tarde, quando saem dos edifício comerciais batalhões de homens de terno
e mulheres de tailleurs. Esse é um olhar apressado; o spam de atenção dura um segundo.
Ambos, por sua vez, nada têm a ver com o do Bixiga, pra onde estou me
mudando essa semana. Ali ainda tem uma pegada de interior apesar de
estar bem na região central da cidade, na muvuca. Churrasquinho na
esquina, crianças em bando, pelada de rua, todo tipo de ofício e pequeno
comércio, restaurantes com comida boa e barata, casinhas operárias, e o
olhar familiar, comunitário. Lembra Minas.
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