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sexta-feira, 10 de junho de 2016

A história por trás do Golpe, por Luiz Bernardo Pericás.

No começo da década de 1920, o escritor Leonid Leonov publicou O fim de um homem mesquinho [Konets melkogo cheloveka], narrativa com tintas dostoievskianas que contava a história do professor Fedor Andreich Likharev, um paleontólogo que passara a maior parte de sua existência ausente da vida política russa. Quando estourou a revolução, ele se encontrava ocupado com seus estudos sobre a Era Mesozoica e fazia o possível para não ser perturbado pelos eventos transcendentes de sua época: estava mais envolvido com o passado remoto, com cavernas e répteis saurisquianos, do que com o seu próprio tempo. De certa forma, ele mesmo era um dinossauro, que poderia ser extinto a qualquer momento: para todos os efeitos, um homem supérfluo. Até que não conseguiu mais ignorar o que estava a seu redor e acabou por se integrar ao movimento…
Entre as distintas abordagens ao texto, é possível perceber a ênfase no papel do intelectual na luta do cotidiano. Ou seja, a importância do engajamento da intelligentsia no mundo político e social e a crítica aos estudiosos de gabinete, distantes da realidade a sua volta. 
A novela leonoviana, assim, pode servir como defesa de uma postura engajada, de homens de letras com forte intervenção no debate público, como Caio Prado Júnior e vários colegas de sua geração. Afinal, o autor de A revolução brasileira estudava com profundidade o processo histórico nacional, a partir do método dialético, como forma de entender e intervir no presente. Não apenas se limitava a análises conjunturais, mas via o país no quadro maior da longa duração. Sua prioridade, portanto, foi sempre a luta pela transformação social. 
Caio discutirá o desenvolvimento desigual e combinado de um país que irá, desde seus primórdios, se inserir na lógica do mercado internacional e, depois, do imperialismo: neste sentido, os desígnios externos vinculados a elementos de poder político-econômico endógenos permitirão a subsistência de uma dinâmica que se reproduz historicamente (com recorrentes mudanças, rupturas e expansões), mas deixando inalterados, em boa medida, traços básicos das relações sociais (como a subordinação de setores subalternos, pouco preparados cultural e ideologicamente, e muitas vezes sem organicidade política ou condição efetiva de contrapor o modelo consolidado). Por isso, a necessidade de se atuar na fratura sócio-histórica e cultural brasileira, tentando integrar as classes menos privilegiadas (com menor nível material e educacional) ao painel ampliado da construção da “nação”. 
Caio Prado Júnior fará uma crítica contundente à concentração de terras nas mãos de latifundiários e à “livre iniciativa privada”, defendendo, ao mesmo tempo, o aprofundamento de reformas democratizantes e a rejeição a todo tipo de autoritarismo. É verdade que o mundo de CPJ era outro. Ao longo da vida, ele passou por episódios históricos importantes, como a revolução de 1930, o Estado Novo, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria, a ditadura militar e o processo de luta pela redemocratização no país. Suas ideias, portanto, devem ser vistas como produto de seu tempo. Ainda assim, podemos tentar avaliar, de maneira panorâmica, elementos do contexto político e econômico de hoje à luz do ideário caiopradiano, para tentarmos aferir uma possível atualidade de seu pensamento. 
Um primeiro aspecto é o da construção das ferramentas necessárias para os câmbios sociais, que ocorreriam dentro de um processo de mudanças permanente, ininterrupto e dinâmico, que poderia ser caracterizado, para todos os efeitos, como “gradualista”. Caio Prado Júnior, nesse sentido, propõe lineamentos, indicações gerais, apontando os principais problemas e a necessidade de lidar com eles. As questões se apresentam constantemente durante o processo; à medida que são resolvidas, novos questionamentos e problemas surgem, com os quais as forças populares também deverão lidar. É ao longo desse continuum que a “revolução” se processa. 
Podemos nos perguntar que instrumentos, construídos e liderados pelos próprios trabalhadores, seriam esses nos dias de hoje. É possível sugerir que movimentos com certa autonomia, representatividade social e organicidade, como o MST e o MTST (entre vários outros), talvez sejam aqueles que simbolizem, em boa medida, o que defendia Caio: entidades ao mesmo tempo com grandes contingentes de militantes sociais e também “escolas de quadros”, que realizam a dupla tarefa de pressionar por reformas laborais essenciais enquanto, paralelamente, buscam consolidar uma “consciência” política dentro da luta de classes de larga duração. 
Os governos do PT (especialmente nos dois mandatos de Lula), por certo, tiveram importantes êxitos no campo social e fizeram avançar uma pauta progressista no país (que, por sinal, se vê ameaçada por uma onda conservadora perigosa no Congresso e em setores das classes médias). Mas a agenda lulista nunca foi socialista (nunca se propôs, de fato, a isso). Já Caio era um “comunista”. Ele se recusava, como se sabe, a propor uma “revolução socialista total” (como afirmou certa vez); ainda assim, defendia o arcabouço teórico marxiano, que não via o socialismo apenas como um movimento pela abolição da desigualdade econômica, mas tendo como objetivo precípuo a emancipação do homem, a libertação dos grilhões econômicos (mais do que apenas a transformação de objetivos materiais como principal interesse da vida) e a criação de uma sociedade em que cada pessoa pudesse participar de forma ativa e responsável nas decisões do cotidiano. 
O lulismo encarou a política como um movimento de progresso e inclusão da classe trabalhadora, mas a ênfase foi colocada nos objetivos na ascensão econômica e no consumo. O resultado foi que esta vertente se tornou o veículo pelo qual as classes baixas puderam ganhar espaço social e conquistar um lugar (mesmo que ainda coadjuvante) dentro da estrutura capitalista (e nunca para superá-la). Iriam replicar os valores e os modismos das classes mais abastadas e começariam a exigir mais das autoridades em termos essencialmente materiais e individualistas. O sonho lulista vislumbrava a transformação de fatias inteiras da população em “classe média” com amplo acesso a bens duráveis e a serviços. Se na tradição marxista do século XX, homens como Lênin, Trotsky e o Che defendiam a construção do “homem novo”, o lulismo acabaria por criar o “consumidor novo”. E ainda de forma frágil. Aqui não se quer tirar o mérito da árdua e importante tarefa de redistribuição de renda e inclusão social de milhões de brasileiros, de forma alguma. Só se aponta para os objetivos imediatistas e limitados do projeto, sem dúvida, importante, mas que poderia (e deveria) ter ido bem mais longe. Há quem diga que o lulismo, na prática, não se propunha a realizar reformas estruturais profundas (que exigiriam rupturas e confrontos agudos com setores antagônicos), mas “ganhos nas margens”, lentamente, apostando num ciclo estendido no tempo. Seria também, na acepção do sociólogo Ruy Braga, um “modo de regulação” e de “contenção” de conflitos classistas, um “sócio menor” do bloco de poder capitalista no Brasil. Para ele, o “sindicalismo lulista” se transformou não apenas em ativo administrador do Estado burguês, mas em ator-chave na arbitragem do investimento capitalista do país: de um “esboço desenvolvimentista”, acabaria por transitar para o executor de políticas de austeridade fiscal… 
Se o fortalecimento de um mercado interno era premissa fundamental defendida por Caio, este deveria vir acompanhado de outros fatores (o resultado do período recente, em última instância, foi o esgotamento de um ciclo longo de expansão do consumo das famílias e do investimento induzido pelo crescimento deste mesmo mercado interno). A aliança dos governos petistas com segmentos conservadores, sua relação com os grandes bancos e empreiteiras, assim como a implementação de receituários econômicos elaborados por representantes da elite financeira provavelmente seriam vistos de forma crítica por Caio Prado Júnior, que assinalava que não se deve confiar na burguesia, que tem uma agenda própria. Na primeira oportunidade, ela se volta contra seus apoiadores circunstanciais e trai seus supostos aliados, sem qualquer peso na consciência… 
A análise das fundações de nossa sociedade era um eixo essencial na discussão caiopradiana. O autor de URSS, um novo mundo revelou as relações, os processos e as estruturas sociais, econômicas e políticas que operavam na composição e nas transformações de nossa sociedade, indicando o fator de instabilidade, de falta de continuidade no decurso histórico do país, ou seja, uma evolução por ciclos, com fases sucessivas de progresso, seguido de decadência, resultando num sistema e num processo econômico em que a produção e o crescimento se subordinavam a contingências extrínsecas. O desenvolvimento, portanto, significaria a superação do passado colonial e a eliminação do que ainda restava dele. Só assim, o Brasil poderia deixar sua posição periférica, complementar e dependente. Para isso, ele mostrará a dinâmica das forças sociais internas e das pressões econômicas e políticas internacionais, a partir de temas como o sentido da colonização, o quadro geral do escravismo, a crise do sistema colonial e as forças que constituirão a República Velha, até os dias em que escrevia. Premente, nesse sentido, seria a consolidação de uma “estrutura política” democrática e popular, a modificação das relações trabalhistas (especialmente no campo) e o rompimento com o imperialismo, o qual, segundo ele, se integrara à economia do Brasil ao longo de vários lustros, a partir de mecanismos como financiamento de produção, comércio e exportação de produtos distintos (especialmente o café); do fortalecimento de setores vinculados a bancos, agências creditícias ou elementos ligados à especulação financeira operando por aqui; e da atuação de interesses estrangeiros em áreas como indústrias, transportes, mineração e serviços públicos. O imperialismo, em última instância, constituiria um fator ao mesmo tempo que integraria e completaria o sistema colonial, apresentando-se, além do mais, como uma “deformidade” no processo de modernização.
O painel atual do país é de desnacionalização, financeirização da economia, juros altos, inflação acima da meta, falta de democratização dos meios de comunicação, estrutura tributária perversa, crescimento nas taxas de desemprego e criminalização dos movimentos sociais.
No campo, o agronegócio dá o tom, com extrativismo predatório e o cultivo de produtos para exportação com uso intensivo de pesticidas. A agricultura brasileira se vê enredada pela aliança entre o capital financeiro e as grandes corporações: o crédito e os insumos monopolizados nas mãos de bancos e empresas multinacionais. Não é de se estranhar, portanto, que as cinquenta maiores companhias atuantes na agricultura do país tiveram ganhos significativos em 2014 (em torno de 70% do PIB agrícola). A maior parcela deste faturamento foi de empresas de capital estrangeiro, enquanto muitas nacionais estão endividadas ou dependentes de empréstimos externos. Concomitantemente, o corte de recursos orçamentários para a reforma agrária (uma premissa básica defendida por Caio Prado Júnior) e o ritmo lento de assentamentos foram outras características deste momento (o Incra, que detinha um orçamento inicial de R$ 1,65 bilhão em 2015, teve de trabalhar no ano passado com algo em torno de R$ 874,37 milhões). Dados do Atlas da Terra no Brasil 2015, preparado pela USP/CNPq e coordenado por Ariovaldo Umbelino de Oliveira, mostram que há 66 mil imóveis com 175,9 milhões de hectares improdutivos no país. É bom recordar que os latifúndios pertencem a somente 1% dos donos de terra no Brasil, mas equivalem a 43% das áreas de cultivo agrícola ou criação de gado. As grilagens por empresas e proprietários particulares continuam a ocorrer. Indicadores sobre a ocupação agrária mostram que em 2010, 238 milhões de hectares eram considerados como “grande propriedade de terra” no Brasil, enquanto que em 2014, esse número cresceu para 244,7 milhões de hectares, um incremento de 2,5% em apenas quatro anos. Isso significa um aumento de seis milhões de hectares para as mãos de latifundiários. Para completar, a violência permaneceu em um ritmo preocupante: em 2015, foram 49 assassinatos de posseiros, sem-terra e assentados em conflitos agrários. Em outras palavras, penetração do capital estrangeiro no campo, aumento na concentração da propriedade fundiária, permanência do latifúndio, repressão do Estado ou das elites locais, e produção essencialmente voltada para o mercado externo. Tudo o que CPJ atacava… Ainda que o Brasil hoje seja um país eminentemente urbano (diferente do período em que Caio escrevia), a situação no meio rural continua difícil e com vários elementos similares às críticas caiopradianas elaboradas décadas atrás.
O papel de subordinação e complementariedade em relação à economia mundial é nítida. A reprimarização e desindustrialização marcam este período. O eixo central da economia continua ligado àqueles setores direcionados à exportação de produtos sem grande valor agregado. Em outras palavras, o país mantém sua posição como fornecedor de commodities minerais e agropecuárias para o mercado internacional, o que faz com que alguns cheguem a designar este quadro de especialização produtivo-comercial de “regressão colonial”.
O que se pode perceber claramente é que se há tentativas de ajustes ou intervenções conjunturais na economia, falta uma visão de longo prazo e um “projeto de nação”. Algo que Caio Prado Júnior sempre defendeu. Com o fim do superciclo das commodities (no qual se apostaram quase todas as fichas) e a menor competitividade do setor industrial, a situação do país parece sombria.
Finalmente em relação à questão política, o autor de O mundo do socialismo seria enérgico contra as tentativas de golpe da atualidade. Caio Prado Júnior e o PCB, nos anos de 1947 e 1948, passaram por um processo de perseguição “institucional”, que levou à cassação do partido e dos mandatos de seus parlamentares. Foi uma forma de intervenção branca, a partir de leis, dispositivos regimentais e aferições do Judiciário, para tirar de cena, com toda aparência de legalidade, aquela agremiação política. E conseguiram. O resultado, no caso do historiador, foi a perda de seu mandato de deputado estadual e em seguida, a prisão. Ele sabia muito bem como se orquestravam os conluios dos setores mais conservadores do país. E se empenhou energicamente em campanhas públicas contra a ofensiva da direita. Foi duramente punido por isso.
Nos dias atuais, Caio Prado Júnior por certo se levantaria contra as manobras e articulações para levar adiante um processo arbitrário das elites brasileiras para assumir o poder e implementar uma agenda ainda mais retrógrada, entreguista e privatizante, que será altamente prejudicial às massas (é só lembrar do programa “Uma ponte para o futuro”, do PMDB). Um golpe institucional contra uma presidente legitimamente eleita que, apesar de quaisquer equívocos na condução do país, não cometeu nenhum crime de responsabilidade. Um golpe encabeçado por figuras nefastas e levado a cabo por um Congresso repleto de deputados processados ou réus na Justiça, e que, longe de ser “popular”, representa os interesses do capital financeiro, de corporações, do agronegócio e de suas entidades patronais (como Fiesp, CNI, CNA e Febraban), assim como das Igrejas e da grande mídia.
A consolidação da democracia sempre foi uma premissa fundamental para o historiador paulista. O caminho a seguir, portanto, é pela esquerda. Assim, “a crise em marcha” (numa expressão usada pelo próprio CPJ), paradoxalmente, poderá ajudar os setores progressistas a aglutinarem forças, não só para exigir a manutenção das conquistas sociais dos anos recentes, mas para pressionarem pelo aprofundamento de uma pauta mais radical e libertária, em termos políticos, econômicos e culturais, uma pauta necessária para o maior desenvolvimento autônomo do país e a verdadeira transformação da classe trabalhadora brasileira em protagonista de sua história.
* Artigo escrito originalmente para a edição de maio do Le Monde Diplomatique Brasil

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