A implosão do sistema político e os três partidos, por Aldo Fornazieri
O sistema político brasileiro implodiu. O governo legitimamente eleito em 2014 não conseguia governar e foi afastado por um golpe jurídico-parlamentar. O governo ilegítimo de Temer, fruto do golpe, não consegue governar. Se, eventualmente, o governo legítimo de Dilma fosse restabelecido pelo fracasso do impeachment, não conseguiria governar. A aparente saída para a crise consistiria em promover uma nova eleição presidencial. Ocorre que um governo que emergisse das urnas também ficaria prisioneiro de um Congresso corrupto, fisiológico e que perdeu a representatividade junto à sociedade. Embora seja um Congresso legal, é um Congresso imoral. Esse Congresso imoral não tem a grandeza para abrir mão dos mandatos dos atuais deputados para convocar eleições gerais, com o objetivo de relegitimar o sistema político-representativo. E mesmo que fossem realizadas eleições gerais é duvidoso que a crise se equacione, pois o que entrou em colapso é o sistema político-partidário, o sistema de representação, provocando aquilo que Gramsci chamaria de crise de hegemonia.
Nas crises de hegemonia, diz Gramsci, os grupos sociais se afastam dos partidos tradicionais, dos líderes tradicionais. Durante a vigência do governo Dilma, os líderes petistas eram hostilizados nas ruas, nos restaurantes e nos aeroportos. Os próprios líderes golpistas eram hostilizados na Avenida Paulista durante as manifestações em favor do impeachment e contra a corrupção. Agora, na vigência da interinidade de Temer, os líderes e políticos identificados com o governo são escorraçados e chamados de golpistas em aeroportos, nos restaurantes, nas praias e nas festas. Não conseguem falar para o público diretamente. Nas lutas contra o golpe são partidos e movimentos sociais críticos do governo petista que mais radicalizam a luta contra o governo ilegítimo.
Isto quer dizer que o PSDB, o PMDB e o PT que eram os partidos que estabeleciam a coordenação do sistema de hegemonia vigente perderam o consentimento dos diversos grupos sociais. Poder-se-ia contestar a ideia de que o PT compõe a elite dirigente. O PT, de fato, passou a integrar a elite política dirigente nos últimos 14 anos ao adquirir a confiança de vários grupos empresariais e ao articular uma série de interesses de grupos dominantes e subalternos, permitindo que houvesse um equilíbrio de forças e uma certa paz social. A crise é grave, pois nenhum outro partido conseguiu se legitimar ao ponto de firmar-se como alternativa ao atual sistema em colapso. Nessas circunstâncias, indica o próprio Gramsci, de crise orgânica do sistema vigente e de falta de alternativa confiável, a situação é perigosa, pois “abre-se o campo às soluções de força, à atividade de poderes ocultos, representados pelos homens providenciais ou carismáticos”.
Gramsci nota que nas crises de hegemonia os processos são diferentes em cada país, mas o conteúdo é o mesmo. As crises de hegemonia ocorrem porque os grupos políticos dirigentes faliram, seja porque faliu um determinado projeto, seja porque as demandas sociais não são mais atendidas ou seja porque há uma crise do Estado em seu conjunto. A rigor, na atual crise, estão presentes elementos dessas três causas ou determinações. PSDB, PMDB e PT são variações e vieses diferentes de um mesmo partido, de uma mesma visão geral do Estado, da sociedade e da economia, com inflexões nuançadas, uns mais para o mercado e o PT mais para o social e estatal. Este projeto de país faliu e o PT, que o elevou ao seu ponto mais alto por buscar um maior equilíbrio distributivo sofreu uma crise de solução de continuidade por não ter sido capaz de renovar-se e criar um outro projeto. Os escândalos de corrupção, envolvendo as cúpulas dos principais partidos, também constituíram um fator que contribuiu para erodir a confiança da sociedade nos partidos e nos políticos.
A falência do projeto representou também um represamento das demandas sociais, seja por serviços urbanos de qualidade (2013), seja por consumo e, agora, por serviços públicos e direitos e por emprego. A crise do Estado no seu conjunto se manifesta nas crises fiscais da União, dos Estados e dos municípios, entes que perderam a capacidade de garantir serviços satisfatórios e de investir. Esses vários aspectos da crise são causas e consequências da crise econômica. Nas crises de hegemonia massas que eram politicamente passivas se colocam em movimento, sem que os partidos principais as dirijam. Isto foi perceptível tanto nas manifestações contra o governo Dilma, quanto nas manifestações contra o golpe. Aliás, o PT está ausente nas manifestações das últimas semanas.
A luta entre os três partidos
A análise de Gramsci é didática, pois ela indica também que nos momentos de crise de hegemonia, o campo parlamentar e político se enfraquecem reforçando as posições relativas de poder da burocracia civil e militar e de instituições sociais como a igreja, entre outras instituições que se apresentam com independentes. Ora, no Brasil, no atual momento vemos o fortalecimento de setores da burocracia que constituem carreiras típicas de Estado, como a Polícia Federal, o Ministério Público e o judiciário. As Forças Armadas também ganham em confiabilidade, mas por circunstâncias históricas elas não desempenham protagonismo na presente crise. A crise tem um aspecto de rebelião do estamento burocrático contra a classe política. O estamento querer reformas do Estado e a reforma política, demandas que o sistema político não é capaz e se nega a oferecer.
Com a crise de hegemonia é como se o sistema partidário tradicional se dissolvesse e a luta política se reconfigurasse em torno de três partidos: o partido da ordem, organizado em torno do golpe e do governo interino; o partido do estamento, que quer uma limpeza política e a reforma do Estado; e o partido do povo, que se desenvolve nas lutas sociais e nas lutas contra o golpe. O PT está com um pé no partido da ordem e com outro no partido do povo e setores do partido namoram com o parto do estamento.
Na medida em que o estamento rebelado não tem os mecanismos legais e os meios suficientes para resolver a crise, que tem uma natureza política, o seu protagonismo e a sua força dependem da radicalização da própria luta contra a classe política dirigente através da Lava Jato e de outros escândalos de corrupção. O partido do estamento vencerá esta luta se conseguir derrubar as cúpulas dos principais partidos e se conseguir inviabilizar o governo Temer, tal como contribuiu para derrubar o governo Dilma. Neste momento, o Supremo Tribunal Federal, que vem jogando de forma ambígua na crise, compondo-se ora com o estamento e ora com o golpismo, pretende exercer um papel moderador. Enquanto o partido do estamento, através do juiz Moro, proferiu mais de 100 condenações, o STF não proferiu nenhuma.
Em sendo tanto Dilma quanto Temer não soluções para a crise, qualquer um que prevalecerá se arrastará penosamente até 2018 com a possibilidade de graves incidentes de percurso. Se ocorrerem eleições, a tendência é que vença um candidato de fora do atual sistema partidário em crise, alguém que se apresente como uma liderança providencial, messiânica até, ou um líder carismático. Dilma, Lula e o PT não foram capazes de oferecer uma saída para a crise ao longo de 2015 e no início de 2016. Com a presidente afastada, continuam não indicando uma saída ante a possibilidade de retorno se o golpe fracassar, fator que fortalece a própria persistência do golpe.
Se o golpe vencer a batalha final no Senado, a única possibilidade do governo Temer se equilibrar no poder, salvo as imponderabilidades da Lava Jato, é através da repressão. Os movimentos sociais e a as esquerdas irão lhe interpor uma dura oposição. Governos fracos e sem legitimidade recorrem invariavelmente à repressão. Assim, Temer tentará recompor o partido da ordem através de três movimentos: usando a repressão contra os movimentos sociais e a oposição; recrutando quadros técnicos preparados para que construam um novo programa político; implementando medidas duras para recuperar a capacidade do Estado. Temer terá, também, três grandes forças desafiadoras: 1) a imponderabilidade da Lava Jato e a disposição e ambição do partido do estamento de promover uma limpeza política; 2) a divisão e as ambições no interior do próprio partido da ordem (centrão, PSDB etc.); 3) a resistência dos movimentos sociais e das esquerdas que lutarão para construir um novo partido do povo. A crise ainda não teve uma inflexão definitiva para um lado ou para outro. As forças do povo se ressentem de uma bandeira unificadora para enfrentar a crise. Mas ao mesmo tempo em que lutam, se reorganizam. A desorientação e a apatia do PT favorece a vitória do golpe. Mas ainda há chão para combater.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
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