O levante das mulheres contra a cultura do estupro no país governado pelo interino Michel Temer (PMDB) e pelo Congresso mais retrógrado desde a redemocratização forma o retrato mais preciso desse momento histórico tão particular do Brasil. A oposição atual não é entre um governo chamado de “golpista” e um governo que já foi apresentado como “popular”. Ou entre a presidente afastada pelo processo de impeachment e o vice que conspirou para afastá-la. O embate é entre o Brasil que emergiu das manifestações de junho de 2013 e o Brasil que se agarra aos privilégios de classe, de raça e de gênero. É esse o confronto político mais amplo que determina o curso dos dias.
Nem Temer, PMDB e partidos aliados representam todas as forças conservadoras de um lado, nem Dilma Rousseff, Lula e o PT são capazes de representar o outro campo. Como a Operação Lava Jato já mostrou, com todas as críticas que se pode – e se deve – fazer aos seus flagrantes abusos e aos personalismos inaceitáveis de alguns servidores públicos, PMDB e PT são, em alguns aspectos cruciais, mais semelhantes do que diferentes. Em alguns aspectos, obviamente não todos, mais sócios que se desentenderam do que opositores de fato políticos, no que a política tem de mais profunda, que é a sua potência transformadora. É fundamental compreender onde de fato está a oposição hoje, para além do Impeachment x Golpe.
Esta é a parte que Temer, o PMDB e as demais forças que apoiaram o impedimento de Dilma Rousseff parecem não ter compreendido. E também por isso as primeiras semanas do Governo provisório tiveram tantos recuos e pelo menos duas baixas de ministros. Apesar da sobra de esperteza dos protagonistas, eles parecem de fato ter acreditado que o país pudesse simplesmente retroceder e as velhas forças se rearranjarem mais uma vez – sem oposição. Assim como ter acreditado que a oposição, a partir de certo momento, era o PT. Acreditaram na falsa polarização, sem perceber que o país hoje é muito mais complexo.
“Homens brancos e velhos”. A reação ao ministério de Temer mostrou de imediato de onde viria a oposição. Gênero, raça e protagonismo jovem. A política para além dos partidos, a política que em 2013 expulsou os partidos das ruas.
Duas fotografias, um abismo. Nas ruas do país, as mulheres escrevem na pele nua que seus corpos lhe pertencem ao protestar contra a cultura do estupro depois das violações coletivas de duas meninas, uma no Rio, outra no Piauí. O que Temer faz? Chama para ocupar a rebaixada secretaria de Políticas para Mulheres uma evangélica, Fátima Pelaes (PMDB), que já se declarou contra o aborto mesmo em casos de estupro. Ou o presidente interino tem uma deficiência cognitiva ou obedece a mandamentos menos declarados.
Ao extinguir justamente o ministério que contemplava as políticas de gênero, raça e direitos humanos, e ao extinguir o Ministério da Cultura, que fomenta a expressão dessas políticas, Temer já havia demonstrado que nem ele nem as forças que o apoiaram compreendem o país que tanto querem governar. Teve de correr atrás do prejuízo e de mulheres que concordassem em fazer parte do governo. Foi obrigado a recuar e a devolver o Ministério da Cultura à Esplanada.
Esses recuos são mais reveladores do que os ministros demitidos após o vazamento de gravações em que teriam conspirado contra a Lava Jato, porque apontam para as forças que demandam a ampliação da política. E que denunciam a crise de representação mais profunda. É por estas forças, estas políticas que não há como voltar ao Brasil do passado. O presente é outro, o presente é fluxo. É possível que os esquemas de corrupção se rearranjem de outra maneira, como ocorreu na Itália. Mas é bastante improvável que mulheres, negros e LGBTs parem de questionar os privilégios de gênero e de raça, assim como os crimes de gênero e de raça. Os povos da floresta são uma outra força, ainda obscurecida, que deverá ganhar mais e mais visibilidade com o avanço da crise climática.
Este Brasil que vai às ruas protestar contra a cultura do estupro, contra o genocídio da juventude negra, contra a corrosão das escolas públicas, onde estudam os mais pobres, representa a grande potência criativa deste momento. Muito se tem falado sobre a perda das conquistas da década passada, evidenciada por fatos como os mais de 11 milhões de desempregados atuais. É importante perceber, porém, que há ganhos que não retrocedem. A primeira geração de jovens negros que chegou à universidade não vai deixar de pressionar pela ampliação dos acessos. Assim como as mulheres que se empoderaram ao receber o Bolsa Família já se tornaram outras.
É fundamental identificar onde está o movimento. E onde está a paralisia. Ou mesmo o retrocesso. Descolados do Brasil que se move, nem o governo nem o Congresso têm resposta. Em parte, porque sequer entendem o que dizem as manifestantes que ocuparam as ruas.
Dilma Rousseff e o PT, empenhados na disputa do impeachment, tampouco têm possibilidade de representar essas forças. Há enorme potencial simbólico no fato de uma mulher assumir a presidência da República pela primeira vez. Mas é importante lembrar da escolha feita por Lula e pelos marqueteiros para turbinar esse simbolismo. Dilma foi apresentada como “mãe” dos pobres, “mãe” do povo, “mãe” do PAC. Nada mais arcaico hoje do que reduzir uma mulher à maternidade. E reduzir a maternidade às mulheres. Neste sentido, a oportunidade – preciosa – de ampliar a potência dos significados de uma mulher na presidência foi perdida, ao se optar por reforçar os velhos estereótipos, sempre redutores.
É fato que Dilma nunca se adaptou bem a esse modelito marqueteiro, mas também é fato que usou desse discurso sempre que lhe foi conveniente. Também vale lembrar que, como presidente, Dilma Rousseff recuou várias vezes na esfera dos direitos das mulheres e dos LGBTs para não perder o apoio primeiro dos eleitores religiosos, depois da bancada evangélica no Congresso. Na campanha eleitoral que a tornou presidente pela primeira vez, em 2010, sofreu um ataque criminoso cuja origem ainda precisa ser melhor apurada, com a difusão de que era “abortista” e “assassina de fetos”. José Serra, então candidato a presidente pelo PSDB e hoje ministro das Relações Exteriores do governo Temer, empenhou-se em aproveitar o ataque vindo das catacumbas ou de um lugar que merece ser melhor apurado, apregoando que tinha “Deus no coração”. Em seu programa eleitoral, mulheres grávidas desfilavam pela tela porque o candidato prometia cuidar dos bebês mesmo antes de nascerem.
A campanha eleitoral de 2010 marca o momento em que o debate foi rebaixado, com enormes consequências. Dilma elegeu-se a primeira mulher presidente, mas para isso escreveu uma carta pública declarando-se “pessoalmente contra o aborto”. Nela, comprometia-se a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema. Quem saiu a defendê-la pelos templos evangélicos foi, entre outros, Eduardo Cunha (PMDB). O deputado que lideraria o processo de impeachment da presidente garantiu a pastores que a então candidata merecia o voto evangélico porque era contra o aborto.
Não volto a lembrar deste fato por apego à redundância, mas porque sem compreender o que aconteceu com o país naquele momento não me parece possível compreender o cenário atual. Nem a profundidade da “primavera feminista” nas ruas. A campanha eleitoral de 2010 é um marco da ocupação do poder pelos evangélicos fundamentalistas, aliados a outras forças conservadoras, assim como de seu crescente poder de pressão. Naquele momento se estabeleceu que o corpo das mulheres seria a moeda de chantagem política dali em diante. Dilma rendeu-se primeiro em nome da vitória eleitoral, depois, da tal “governabilidade”. Conhecemos bem o resultado da “governabilidade” e a fidelidade dos aliados de ocasião.
Assim, as manifestações contra a cultura do estupro têm ainda mais ressonância do que pode parecer à primeira vista. Se as mulheres se apropriarem de seus corpos, será preciso encontrar outra moeda de barganha no Brasil atual. É de estupro que se fala, mas é ainda mais que está em jogo.
Se há este Brasil que se move ocupando as ruas, há um outro que também se move. É onde está, de certo modo, a “situação”. Também neste sentido, a reação aos estupros coletivos foi um sinalizador precioso. Como ninguém, ou pelo menos quase ninguém, pode defender um estupro, a disputa se deu em torno do ser ou não um estupro. Assim como das mulheres cujos corpos têm “valor”. Neste discurso, se os corpos têm “valor”, não poderiam ser violados. Mas, se os corpos não têm “valor”, não seria considerado um estupro mesmo quando violados. O valor é determinado principalmente pelo julgamento das escolhas morais e estéticas dessas mulheres, mas também pela sua raça e classe.
Ter valor diz respeito, em qualquer um dos casos, a um corpo convertido em objeto. Quando a palavra de uma mulher ao dizer que foi estuprada não é escutada, ou é colocada em dúvida, o que se reforça é que objetos não têm voz. É importante perceber também que os corpos das mulheres só podem virar moeda eleitoral ou moeda de chantagem política, como acontece mais explicitamente desde a campanha eleitoral de 2010, quando vistos e tratados como objetos.
A desobjetificação das mulheres é, portanto, ameaçadora à manutenção dos privilégios de quem ocupa o poder ou deseja ocupá-lo. Ou alguém acredita que deputados como Eduardo Cunha (PMDB) e o clero evangélico do Congresso estão de fato preocupados com a vida do feto quando tentam impedir as mulheres de fazer aborto legal? Ou quando determinam que família é homem com mulher?
É preciso ser mais do que ingênuo para acreditar na sinceridade dessa motivação moralista. Estão preocupados, sim, em manter o comando da Casa da Moeda. Assim, as mulheres que cantaram num show de Caetano Veloso – “eta, eta, eta, o Eduardo Cunha quer controlar a minha buceta” – têm toda razão. Cunha não só quer, como precisa.
A bancada evangélica do Congresso chegou rapidamente a conclusão que a melhor moeda, pelo menos no momento, é o corpo das mulheres. Que esse controle sobre o corpo das mulheres venha travestido de religião e justificado por uma interpretação fundamentalista da Bíblia é estratégia, não princípio. Quando nos referimos a essa estirpe de parlamentares como “conservadores”, confere-se a eles uma seriedade que não têm. Do mesmo modo, chamar de Bancada da Bíblia acaba sendo menos uma ironia – e mais um reconhecimento equivocado de que a Bíblia de fato teria importância. Na prática, a Bíblia é mais um instrumento de manipulação, o que deveria ofender os evangélicos que levam a sério os fundamentos de sua crença. Uma parte do clero evangélico no Congresso leva seus princípios religiosos tão a sério quanto levam o mandamento “não roubarás”.
O aborto é o grande tema em disputa por essa razão. Se uma mulher é tão dona do seu corpo que pode interromper uma gestação, seu corpo já não pode ser objeto de um outro. Já não pode ser moeda. É também por isso que a maternidade precisa ser tão valorizada como destino sagrado das mulheres – e nisso uma interpretação religiosa da Bíblia é feita sob medida. Assim, nem de longe a escolha de uma evangélica que já se posicionou contra o aborto em caso de estupro para comandar a secretaria das Mulheres pode ser considerada uma distração política de Temer. Que depois de ter calculado todas as variáveis ele tenha feito essa escolha, mesmo com as ruas ocupadas por ativistas, só aponta onde o presidente interino acredita estar a força.
Mas Temer, o homem que tão bem calculava, já não calcula como antes. A nomeação foi publicada no Diário Oficial de 3 de maio, mas o presidente ainda pode voltar atrás. A reação das feministas foi mais forte do que Temer e os seus acreditaram que seria. Para completar, a imprensa denunciou que Fátima Pelaes é investigada num esquema de corrupção. Se Temer voltar atrás mais uma vez, será mais um recuo de um governante que desde a nomeação do ministério demonstra não entender o país que governa, atarantado entre forças opostas.
A construção de redes de comunicação, como a Record, assim como a ocupação de redes já existentes, por certas igrejas evangélicas, é a outra ponta desta arquitetura que cada mais influencia a vida cotidiana do país. Quem grita “Globo golpista” precisa ampliar um pouco mais o seu olhar. Não dá para entender este Brasil que cada vez mais é “situação” sem compreender a brilhante estratégia de ocupação de poder por parte dos ditos evangélicos. É de poder que se trata, poder para muito além da religião. E, se observarmos a história recente, essa ocupação de poder é acelerada.
Acreditar que o atual Congresso não representa o Brasil é um equívoco. Antes fosse. Pode não representar as mulheres nas ruas, assim como outros movimentos e setores mais progressistas. Mas há um Brasil que sem dúvida representa. E esse Brasil também se move. E é forte. Quando a maioria dos parlamentares votou pela abertura do impeachment da presidente em nome de Deus e da Família, usavam a mesma linguagem que uma parte considerável da população brasileira.
Também neste sentido os protestos contra a cultura do estupro são bastante iluminadores. É significativo que as ruas de capitais brasileiras tenham sido tomadas por manifestantes reivindicando a posse do corpo. Mas é preciso prestar atenção também aos vídeos, com grande audiência na internet, e aos protestos na comunidade onde ocorreu o crime, em que homens levantaram cartazes: “Não houve estupro!” ou “Orgia não é estupro”.
Nos vídeos são apresentadas “provas” morais para defender a tese de que não foi estupro, como as roupas que a vítima vestia e sua liberdade sexual. Também apresentam como "prova" o fato de que um estupro não seria tolerado pelo tráfico, numa referência a quem ocupa o lugar de lei em parte das favelas. Há outro ponto comum importante em vários desses discursos disseminados na internet: a ideia de que defesa da menina estuprada é feita por “comunistas” – ou por “comunistas dos direitos humanos”. Aqui também há uma ligação entre corpo da mulher e política que não pode ser descartada apenas pela precariedade do discurso.
Uma organização criminosa teria decretado a morte não dos estupradores, mas da menina estuprada. Em entrevista à Ponte, site de jornalismo especializado em direitos humanos, justiça e segurança pública, a socióloga Camila Nunes Dias, que pesquisa o crime organizado no Brasil, contrapõe-se ao mito de que o estupro é condenado por criminosos: “(Estes grupos de crime organizado) são profundamente conservadores, machistas e homofóbicos, e isso muitas vezes se minimiza na análise da sua atuação nas prisões e comunidades”. E, em outro momento: “Por mais que se matem uns aos outros, policiais e bandidos têm visões de mundo muito parecidas”.
O estupro atravessa todas as classes sociais. Os casos de violência sexual contras mulheres na faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), assim como em diversas outras universidades cujos estudantes são majoritariamente de classe média e alta, são apenas um dos exemplos de que a cultura do estupro é disseminada no país. Mas sempre vale a pena compreender as particularidades pelas quais essa cultura se estabelece nas diferentes realidades. Em especial quando se situa a disputa política atual a partir do que me parece central: o questionamento dos privilégios.
Na trajetória de alguns movimentos do século 20, assim como de alguns partidos, todos os privilégios eram contestados, menos o de gênero. A história dos sindicatos no Brasil, marcada pelo machismo e pela homofobia, precisa ser enfrentada também a partir deste recorte, para que algumas relações possam ser esclarecidas. Há muitos depoimentos que ainda virão à tona. Esta, como tantas outras, é uma história muito mal contada.
É preciso lembrar ainda que, para uma grande parcela dos homens brasileiros, o único privilégio que detém é o de gênero. Como se sabe, não é fácil abrir mão dos privilégios, mais ainda se este for o único num país tão desigual. O discurso moralista sobre o corpo das mulheres encontra um terreno fértil nas camadas mais pobres da população. E este é um viés fundamental na compreensão da ascensão de algumas igrejas evangélicas. Se a manutenção do privilégio de gênero tiver uma justificativa edulcorada, referenciada pela Bíblia, nada mais atraente. Não só mantém o privilégio como ainda é um homem “de bem” por mantê-lo. Quem vai discutir com Deus, afinal?
São muitos pontos para ligar. Os Brasis se movem. As mulheres que foram às ruas nos últimos dias acertaram em muito mais do que parece.
Nem Temer, PMDB e partidos aliados representam todas as forças conservadoras de um lado, nem Dilma Rousseff, Lula e o PT são capazes de representar o outro campo. Como a Operação Lava Jato já mostrou, com todas as críticas que se pode – e se deve – fazer aos seus flagrantes abusos e aos personalismos inaceitáveis de alguns servidores públicos, PMDB e PT são, em alguns aspectos cruciais, mais semelhantes do que diferentes. Em alguns aspectos, obviamente não todos, mais sócios que se desentenderam do que opositores de fato políticos, no que a política tem de mais profunda, que é a sua potência transformadora. É fundamental compreender onde de fato está a oposição hoje, para além do Impeachment x Golpe.
Esta é a parte que Temer, o PMDB e as demais forças que apoiaram o impedimento de Dilma Rousseff parecem não ter compreendido. E também por isso as primeiras semanas do Governo provisório tiveram tantos recuos e pelo menos duas baixas de ministros. Apesar da sobra de esperteza dos protagonistas, eles parecem de fato ter acreditado que o país pudesse simplesmente retroceder e as velhas forças se rearranjarem mais uma vez – sem oposição. Assim como ter acreditado que a oposição, a partir de certo momento, era o PT. Acreditaram na falsa polarização, sem perceber que o país hoje é muito mais complexo.
“Homens brancos e velhos”. A reação ao ministério de Temer mostrou de imediato de onde viria a oposição. Gênero, raça e protagonismo jovem. A política para além dos partidos, a política que em 2013 expulsou os partidos das ruas.
Ao nomear a nova secretária das Mulheres, Temer mostrou que ou tem uma deficiência cognitiva ou obedece a mandamentos menos declarados
Ao extinguir justamente o ministério que contemplava as políticas de gênero, raça e direitos humanos, e ao extinguir o Ministério da Cultura, que fomenta a expressão dessas políticas, Temer já havia demonstrado que nem ele nem as forças que o apoiaram compreendem o país que tanto querem governar. Teve de correr atrás do prejuízo e de mulheres que concordassem em fazer parte do governo. Foi obrigado a recuar e a devolver o Ministério da Cultura à Esplanada.
Esses recuos são mais reveladores do que os ministros demitidos após o vazamento de gravações em que teriam conspirado contra a Lava Jato, porque apontam para as forças que demandam a ampliação da política. E que denunciam a crise de representação mais profunda. É por estas forças, estas políticas que não há como voltar ao Brasil do passado. O presente é outro, o presente é fluxo. É possível que os esquemas de corrupção se rearranjem de outra maneira, como ocorreu na Itália. Mas é bastante improvável que mulheres, negros e LGBTs parem de questionar os privilégios de gênero e de raça, assim como os crimes de gênero e de raça. Os povos da floresta são uma outra força, ainda obscurecida, que deverá ganhar mais e mais visibilidade com o avanço da crise climática.
Este Brasil que vai às ruas protestar contra a cultura do estupro, contra o genocídio da juventude negra, contra a corrosão das escolas públicas, onde estudam os mais pobres, representa a grande potência criativa deste momento. Muito se tem falado sobre a perda das conquistas da década passada, evidenciada por fatos como os mais de 11 milhões de desempregados atuais. É importante perceber, porém, que há ganhos que não retrocedem. A primeira geração de jovens negros que chegou à universidade não vai deixar de pressionar pela ampliação dos acessos. Assim como as mulheres que se empoderaram ao receber o Bolsa Família já se tornaram outras.
É fundamental identificar onde está o movimento. E onde está a paralisia. Ou mesmo o retrocesso. Descolados do Brasil que se move, nem o governo nem o Congresso têm resposta. Em parte, porque sequer entendem o que dizem as manifestantes que ocuparam as ruas.
Dilma Rousseff e o PT, empenhados na disputa do impeachment, tampouco têm possibilidade de representar essas forças. Há enorme potencial simbólico no fato de uma mulher assumir a presidência da República pela primeira vez. Mas é importante lembrar da escolha feita por Lula e pelos marqueteiros para turbinar esse simbolismo. Dilma foi apresentada como “mãe” dos pobres, “mãe” do povo, “mãe” do PAC. Nada mais arcaico hoje do que reduzir uma mulher à maternidade. E reduzir a maternidade às mulheres. Neste sentido, a oportunidade – preciosa – de ampliar a potência dos significados de uma mulher na presidência foi perdida, ao se optar por reforçar os velhos estereótipos, sempre redutores.
Dilma Rousseff pode até colar nos protestos contra a cultura do estupro, mas não representa o movimento
A campanha eleitoral de 2010 marca o momento em que o debate foi rebaixado, com enormes consequências. Dilma elegeu-se a primeira mulher presidente, mas para isso escreveu uma carta pública declarando-se “pessoalmente contra o aborto”. Nela, comprometia-se a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema. Quem saiu a defendê-la pelos templos evangélicos foi, entre outros, Eduardo Cunha (PMDB). O deputado que lideraria o processo de impeachment da presidente garantiu a pastores que a então candidata merecia o voto evangélico porque era contra o aborto.
Não volto a lembrar deste fato por apego à redundância, mas porque sem compreender o que aconteceu com o país naquele momento não me parece possível compreender o cenário atual. Nem a profundidade da “primavera feminista” nas ruas. A campanha eleitoral de 2010 é um marco da ocupação do poder pelos evangélicos fundamentalistas, aliados a outras forças conservadoras, assim como de seu crescente poder de pressão. Naquele momento se estabeleceu que o corpo das mulheres seria a moeda de chantagem política dali em diante. Dilma rendeu-se primeiro em nome da vitória eleitoral, depois, da tal “governabilidade”. Conhecemos bem o resultado da “governabilidade” e a fidelidade dos aliados de ocasião.
Assim, as manifestações contra a cultura do estupro têm ainda mais ressonância do que pode parecer à primeira vista. Se as mulheres se apropriarem de seus corpos, será preciso encontrar outra moeda de barganha no Brasil atual. É de estupro que se fala, mas é ainda mais que está em jogo.
Os corpos das mulheres são a moeda de chantagem do momento, por isso precisam ser mantidos como objetos
Ter valor diz respeito, em qualquer um dos casos, a um corpo convertido em objeto. Quando a palavra de uma mulher ao dizer que foi estuprada não é escutada, ou é colocada em dúvida, o que se reforça é que objetos não têm voz. É importante perceber também que os corpos das mulheres só podem virar moeda eleitoral ou moeda de chantagem política, como acontece mais explicitamente desde a campanha eleitoral de 2010, quando vistos e tratados como objetos.
A desobjetificação das mulheres é, portanto, ameaçadora à manutenção dos privilégios de quem ocupa o poder ou deseja ocupá-lo. Ou alguém acredita que deputados como Eduardo Cunha (PMDB) e o clero evangélico do Congresso estão de fato preocupados com a vida do feto quando tentam impedir as mulheres de fazer aborto legal? Ou quando determinam que família é homem com mulher?
É preciso ser mais do que ingênuo para acreditar na sinceridade dessa motivação moralista. Estão preocupados, sim, em manter o comando da Casa da Moeda. Assim, as mulheres que cantaram num show de Caetano Veloso – “eta, eta, eta, o Eduardo Cunha quer controlar a minha buceta” – têm toda razão. Cunha não só quer, como precisa.
A bancada evangélica do Congresso chegou rapidamente a conclusão que a melhor moeda, pelo menos no momento, é o corpo das mulheres. Que esse controle sobre o corpo das mulheres venha travestido de religião e justificado por uma interpretação fundamentalista da Bíblia é estratégia, não princípio. Quando nos referimos a essa estirpe de parlamentares como “conservadores”, confere-se a eles uma seriedade que não têm. Do mesmo modo, chamar de Bancada da Bíblia acaba sendo menos uma ironia – e mais um reconhecimento equivocado de que a Bíblia de fato teria importância. Na prática, a Bíblia é mais um instrumento de manipulação, o que deveria ofender os evangélicos que levam a sério os fundamentos de sua crença. Uma parte do clero evangélico no Congresso leva seus princípios religiosos tão a sério quanto levam o mandamento “não roubarás”.
A escolha de uma evangélica não demonstra uma distração política de Temer, apenas aponta onde ele acredita estar a força
Mas Temer, o homem que tão bem calculava, já não calcula como antes. A nomeação foi publicada no Diário Oficial de 3 de maio, mas o presidente ainda pode voltar atrás. A reação das feministas foi mais forte do que Temer e os seus acreditaram que seria. Para completar, a imprensa denunciou que Fátima Pelaes é investigada num esquema de corrupção. Se Temer voltar atrás mais uma vez, será mais um recuo de um governante que desde a nomeação do ministério demonstra não entender o país que governa, atarantado entre forças opostas.
A construção de redes de comunicação, como a Record, assim como a ocupação de redes já existentes, por certas igrejas evangélicas, é a outra ponta desta arquitetura que cada mais influencia a vida cotidiana do país. Quem grita “Globo golpista” precisa ampliar um pouco mais o seu olhar. Não dá para entender este Brasil que cada vez mais é “situação” sem compreender a brilhante estratégia de ocupação de poder por parte dos ditos evangélicos. É de poder que se trata, poder para muito além da religião. E, se observarmos a história recente, essa ocupação de poder é acelerada.
Acreditar que o atual Congresso não representa o Brasil é um equívoco. Antes fosse. Pode não representar as mulheres nas ruas, assim como outros movimentos e setores mais progressistas. Mas há um Brasil que sem dúvida representa. E esse Brasil também se move. E é forte. Quando a maioria dos parlamentares votou pela abertura do impeachment da presidente em nome de Deus e da Família, usavam a mesma linguagem que uma parte considerável da população brasileira.
Também neste sentido os protestos contra a cultura do estupro são bastante iluminadores. É significativo que as ruas de capitais brasileiras tenham sido tomadas por manifestantes reivindicando a posse do corpo. Mas é preciso prestar atenção também aos vídeos, com grande audiência na internet, e aos protestos na comunidade onde ocorreu o crime, em que homens levantaram cartazes: “Não houve estupro!” ou “Orgia não é estupro”.
Nos vídeos são apresentadas “provas” morais para defender a tese de que não foi estupro, como as roupas que a vítima vestia e sua liberdade sexual. Também apresentam como "prova" o fato de que um estupro não seria tolerado pelo tráfico, numa referência a quem ocupa o lugar de lei em parte das favelas. Há outro ponto comum importante em vários desses discursos disseminados na internet: a ideia de que defesa da menina estuprada é feita por “comunistas” – ou por “comunistas dos direitos humanos”. Aqui também há uma ligação entre corpo da mulher e política que não pode ser descartada apenas pela precariedade do discurso.
Uma organização criminosa teria decretado a morte não dos estupradores, mas da menina estuprada. Em entrevista à Ponte, site de jornalismo especializado em direitos humanos, justiça e segurança pública, a socióloga Camila Nunes Dias, que pesquisa o crime organizado no Brasil, contrapõe-se ao mito de que o estupro é condenado por criminosos: “(Estes grupos de crime organizado) são profundamente conservadores, machistas e homofóbicos, e isso muitas vezes se minimiza na análise da sua atuação nas prisões e comunidades”. E, em outro momento: “Por mais que se matem uns aos outros, policiais e bandidos têm visões de mundo muito parecidas”.
Para uma grande parcela dos homens brasileiros, o gênero é o único privilégio ao seu alcance
Na trajetória de alguns movimentos do século 20, assim como de alguns partidos, todos os privilégios eram contestados, menos o de gênero. A história dos sindicatos no Brasil, marcada pelo machismo e pela homofobia, precisa ser enfrentada também a partir deste recorte, para que algumas relações possam ser esclarecidas. Há muitos depoimentos que ainda virão à tona. Esta, como tantas outras, é uma história muito mal contada.
É preciso lembrar ainda que, para uma grande parcela dos homens brasileiros, o único privilégio que detém é o de gênero. Como se sabe, não é fácil abrir mão dos privilégios, mais ainda se este for o único num país tão desigual. O discurso moralista sobre o corpo das mulheres encontra um terreno fértil nas camadas mais pobres da população. E este é um viés fundamental na compreensão da ascensão de algumas igrejas evangélicas. Se a manutenção do privilégio de gênero tiver uma justificativa edulcorada, referenciada pela Bíblia, nada mais atraente. Não só mantém o privilégio como ainda é um homem “de bem” por mantê-lo. Quem vai discutir com Deus, afinal?
São muitos pontos para ligar. Os Brasis se movem. As mulheres que foram às ruas nos últimos dias acertaram em muito mais do que parece.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum
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