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segunda-feira, 6 de junho de 2016

Não há dúvidas de que a democracia brasileira está sob ataque, por Naomi Klein.

Para a jornalista canadense, autora de “Doutrina do Choque”, as “elites brasileiras exploram crise para impor algo que não conseguiram com uma democracia real”
Por Rafael Tatemoto, no Brasil de Fato
naomi
A Doutrina do Choque, publicado em 2007, marcou uma geração ao apresentar como, ao contrário do que se afirmava, a implementação do neoliberalismo tinha poucas relações com o avanço da democracia liberal pelo mundo. A jornalista canadense Naomi Klein, autora da obra, afirmava: as visões da Escola de Chicago foram primeiramente postas em prática em regimes autoritários, justamente porque contrariam as necessidades da maior parte da população.
As ideias neoliberais, para Klein, se aproveitariam de momentos de crise para avançar. Ela concedeu uma entrevista exclusiva para o Brasil de Fato na qual analisou o momento vivido por nosso país à luz dos debates de seu livro.
Segundo ela, o programa defendido pelo governo interino de Michel Temer teria poucas condições políticas de ser implementado através de eleições. “Não há dúvida de que a democracia brasileira está sob ataque. É um tipo diferente de golpe”, afirma. “Eles estão explorando uma situação de caos, uma falta de democracia, para impor algo que eles não conseguiriam sem crise e com uma democracia real”, completa.
Confira a entrevista abaixo.
Brasil de Fato – Em seu livro, você denuncia o que considera a falsa relação entre neoliberalismo e democracia política. As ditaduras militares latino-americanas ocupam um papel importante no seu argumento. Você poderia explicar isso para nós?
Naomi Klein – O argumento que eu desenvolvo neste livro é o de que nos contaram um conto de fadas sobre como esta forma extrema do capitalismo colonizou o mundo. Essa versão fantasiosa é a de que ela se espalhou pacificamente através das democracias, que a teriam escolhido. Entretanto, se olharmos para a história dos primeiros lugares onde o neoliberalismo foi imposto, ele foi imposto exatamente no oposto [do que nos é dito]: foi necessária uma derrubada da democracia para que ele se desenvolvesse.
As raízes do pensamento neoliberal estão na Universidade de Chicago, que recebeu muito apoio dos industriais norte-americanos, que estavam bastante preocupados com uma virada à esquerda nos EUA. Ela recebeu apoio, por exemplo, do presidente do Citibank. Havia muita preocupação de que, nos anos 1960, o espectro ideológico estivesse se movendo muito à esquerda.
O que é muito interessante é que quando houve um presidente [norte-americano] de direita no final dos anos 1960 e início dos 1970, Richard Nixon, apesar de ele ter contratado conselheiros que vieram da Universidade de Chicago, eles não conseguiram impor essas mesmas ideias neoliberais extremas em uma democracia, porque essas ideias eram muito impopulares. É famoso o fato de que Nixon foi contra os conselhos dados pelos economistas da Escola de Chicago, como Milton Friedman. Ele introduziu uma série de regulações ambientais e medidas de controle de salários e preços, porque a inflação estava muito alta. Friedman disse que “Richard Nixon foi o presidente mais socialista dos EUA” [risos]. O que é importante é que enquanto este projeto falhou nos EUA naquele momento, esses mesmos economistas introduziram as ideias neoliberais na América Latina durante a década de 1970, mas apenas após a realização de golpes de Estado.
O exemplo mais famoso é o Chile: após a queda do [presidente Salvador] Allende, quando os militares fizeram uma parceria com os economistas da Escola de Chicago, tornando o país um laboratório para essas ideias. Friedman sempre afirmou que a implementação dessas ideias através da brutalidade não tinha relação com as ideias em si, mas pessoas como Orlando Letelier [diplomata chileno durante o governo Allende] diziam que eram dois lados da mesma moeda: nunca é possível introduzir, através da democracia, esse tipo de ideias em países com uma grande população pobre que se beneficia de políticas redistributivas.
Você demonstrava esperança sobre a resistência aos “choques”, já que as pessoas teriam aprendido com experiências anteriores. Como você vê, por exemplo, o que aconteceu na Europa após 2008, quando a crise financeira internacional estourou e políticas de austeridade foram implementadas nos países do sul daquele continente?
Esta é uma pergunta muita boa. Eu publiquei A Doutrina do Choque em 2007, pouco antes do colapso financeiro. Honestamente, eu diria que quando escrevi, eu era ingênua. No meu entendimento de como resistir a esta tática, eu acreditava que se as pessoas realmente entendessem a tática – as crises e o caos sendo aproveitados pelas elites para defender políticas inaceitáveis que as enriquecem e empobrecem a maioria – e dissessem “não”, a resistência funcionaria. Mas eu acho que o que nós vemos com a experiência do que ocorreu na Grécia e na Espanha, e, na verdade, em todo o sul da Europa, é que resistir somente dizendo “não” – “não queremos a austeridade” – é apenas o primeiro passo, não é suficiente.
O caso do Syriza é exemplar: mesmo quando governos antineoliberais ganham, há maneiras de cercá-los. É necessário haver um “não” forte à “doutrina do choque”, mas, especialmente em momento de grandes crises econômicas, também deve haver um “sim” no qual acreditar: deve haver uma articulação simultânea das alternativas à “doutrina do choque”, que devem ir além do status quo. Esses momentos de crises demandam uma reposta. As crises dizem que alguma coisa está errada com o sistema. Nós sabemos que a direita tem a tática do choque, mas também deve haver o que eu chamo de “choque popular”: uma forma alternativa de responder às crises.
Essa é a razão pela qual eu escrevi This Changes Everything [Isto Muda Tudo, sem edição em português], porque vivemos em um tempo de múltiplas crises, nas quais o sistema está falhando em várias dimensões. Está falhando economicamente, mas também ecologicamente. O que eu acredito é que nós precisamos responder a essas múltiplas crises desenvolvendo uma visão corajosa sobre como a próxima economia deva ser, que possa nos tirar dessa situação de crises em série.
A falha da centro-esquerda, em geral, foi a de não conseguir articular uma alternativa audaciosa o suficiente não só ao neoliberalismo, mas à economia extrativista de forma ampla.
Como você analisa o impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff? Alguns analistas brasileiros utilizam suas ideias para explicar o que está ocorrendo. Você concorda com eles?
Eu vi essas análises aplicando a doutrina do choque ao que está acontecendo neste momento no Brasil, e eu penso que elas são convincentes. O fato de que ela [Dilma] foi reeleita certamente frustou as elites brasileiras. Também está claro que há temores [dos políticos] em serem investigados nos escândalos [de corrupção], o que também impulsionou este desejo [de ver Dilma fora do governo]. Eu não sei qual é a grande motivação, mas há diversas coisas acontecendo: o desejo de se livrar das acusações de corrupção e o oportunismo de “nunca desperdiçar uma crise”. Esta é uma frase de Rahm Emanuel, prefeito de Chicago. Ele impôs uma série de políticas neoliberais que foram incrivelmente destrutivas, particularmente para a educação e para a habitação.
O PT, sob nenhum aspecto, foi perfeito. Entretanto, a redistribuição levou a uma redução da desigualdade e se combateu a pobreza extrema. Isso é significativo e criou as condições para a reeleição.
Eu realmente não sei qual foi a força motriz, mas a reeleição de Dilma certamente desmoralizou as elites brasileiras e as fez entender que não tinham as condições [políticas] de impôr essas políticas lucrativas para elas.
Responder a crises não é algo novo. O que eu argumento no livro A Doutrina do Choque é que o neoliberalismo foi uma maneira oportunista de fazer isso, não para resolver as causas das crises, mas apenas para impor políticas que enriquecem as elites e causam mais crises. É isso que estamos vendo no Brasil.
O FMI [Fundo Monetário Internacional] acabou de publicar um relatório há alguns dias no qual diz que o neoliberalismo falhou completamente: não produziu crescimento, produziu desigualdade massiva e instabilidade. E essas são precisamente as políticas que estão sendo impostas no Brasil como uma suposta solução à crise econômica, ainda que saibamos que não funciona. Isso não ocorre porque as elites brasileiras não leram o relatório do FMI, mas sim porque são políticas incrivelmente lucrativas para uma minoria da população. Eles estão explorando uma situação de caos, uma falta de democracia, para impor algo que eles não conseguiriam sem crise e com uma democracia real.
Você concorda com a ideia de que se trata de um golpe?
Não há dúvida que a democracia brasileira está sob ataque. O combate à corrupção foi apenas um pretexto para se livrar da presidenta eleita democraticamente. É um tipo diferente de golpe. Não se trata de um golpe militar, com tanques nas ruas – e nós não devemos dizer que são a mesma coisa -, mas, efetivamente, há um profundo ataque à democracia acontecendo.
A “história oficial” do neoliberalismo aponta os governos Reagan [EUA] e Thatcher [Reino Unido], em países tidos como democráticos, como a origem dessas políticas. Em seu livro, porém, você cita como Thatcher combateu os sindicatos. Até mesmo em democracias, o neoliberalismo é autoritário? Devemos esperar a mesma situação no Brasil?
O que eu argumento em A Doutrina do Choque é que Thatcher não foi capaz de impôr a agenda neoliberal no Reino Unido no seu primeiro mandato. Ela até escreveu uma carta a [Friedrich von] Hayek que eu cito no livro: em uma democracia, é impossível fazer o que foi feito no Chile. O que aconteceu é que a Guerra das Malvinas [da Inglaterra contra a Argentina] estourou e ela explorou o sentimento hipernacionalista e se reinventou como a “primeira-ministra para tempos de guerra”, tal como Churchill, e conseguiu ganhar sua reeleição, e então atacou os sindicatos.
Os sindicatos são sempre uma grande barreira à implementação da agenda neoliberal. Eu conto a história do que ocorreu na Bolívia nos anos 1980, quando líderes sindicais eram sequestrados para que não pudessem se organizar, enquanto o choque neoliberal era imposto.
Obviamente, haverá algum tipo de estratégia para desmobilizar. Mas eu acredito que, no Brasil, o jogo ainda não terminou. As histórias estão mudando a todo momento, as pessoas estão fazendo exatamente o que elas deveriam fazer, resistindo nas ruas. Os vazamentos das conversas revelando a trama antes do golpe continuam a criar uma crise [política]. Isso precisa ser divulgado fora do Brasil, colocando pressão sobre governos estrangeiros. Nós não precisamos aceitar a ideia de que tudo vai continuar como está.
Recentemente, tivemos um grande desastre ambiental no Brasil. Em sua última obra, This Changes Everything, você coloca que o capitalismo não só aumentou as desigualdades, mas, hoje, também representa um risco para a própria existência da humanidade. Pode nos explicar isso?
O que sabemos é que se continuarmos fazendo o que estamos fazendo, alcançaremos um nível de aquecimento insustentável. Estamos em um momento em que o capitalismo e a busca pelo crescimento perpétuo estão em guerra contra a vida na Terra. Estamos chegando a um nível em que boa parte do planeta será inabitável por humanos. Está acontecendo mais rápido do que o imaginado. O branqueamento dos corais ano passado foi em uma escala sem precedentes. A Índia e o Paquistão estão passando por ondas de calor de 51º C – algo que os humanos não conseguem aguentar. E isso representa, na média global, um aumento de apenas 1º C – e nós estamos caminhando para um aumento de 6º C, a não ser que ações governamentais diferentes das que estão sendo implementadas até agora sejam tomadas.
As crises são sinais nos dizendo que há algo errado na forma como organizamos nossa sociedade. As crises econômicas apontam para o fato de que é algo sistêmico. Quando nós pensamos nas décadas de 1920 e 1930, quando ocorreu a Grande Depressão, a esquerda respondeu com alternativas muito fortes: propostas sobre como reinventar aquele sistema. Quando nós enfrentamos um choque climático – enchentes, incêndios, grandes tempestades – nós devemos responder tentando mudar o sistema para que nós paremos de enfrentar esses choques.
O Acordo de Paris [sobre o clima] não está próximo o suficiente das nossas necessidades, ele não tem poder vinculativo – é por isso que Donald Trump disse que cancelaria [a participação dos EUA no acordo].
Isso está ocorrendo porque temos um sistema que nos encoraja a empreender uma busca pelo crescimento infinito a qualquer preço. Nós temos economias extrativistas, e vemos que governos de esquerda também falharam em confrontar essa lógica. Isso é verdade para a Venezuela, o Equador e para o Brasil também.
É por isso que digo que, nesses momentos de crise, o sistema revela a si mesmo como irrealizável. Nós devemos dizer “não” à doutrina do choque, mas também devemos ir além, propor um “sim”. Temos que elaborar uma visão que vá até a raiz, tanto da instabilidade econômica, como da ecológica. Nesse momento, esse é o verdadeiro desafio para as brasileiras e os brasileiros. O que nós sabemos de outros países é que o “não” sozinho não é suficiente, porque em crises econômicas, as pessoas querem soluções. Elas não querem a doutrina do choque, então a pergunta é: Qual a solução? Qual o plano?
Essa era minha próxima pergunta…
Eu não posso responder para o contexto brasileiro, mas eu posso dizer que no Canadá, onde vivo, estive envolvida em um processo com diversos movimentos sociais que culminou no Manifesto do Salto [Leap Manifesto]. É uma antevisão da sociedade que queremos: como passar de uma economia extrativista – que explora sem fim a Terra, os corpos e a sociedade – para um modelo que respeite o planeta e que garanta o respeito pelo outro. Nós elaboramos 15 demandas por políticas que nos fariam chegar lá. Foi um processo maravilhoso de conectar movimentos – ambientalistas; organizações contra austeridade, contra tratados de livre comércio como o TTPP; a favor dos direitos indígenas.
Nossa perspectiva se fundamentou na visão de mundo dos povos originários, aprendendo com as primeiras nações do nosso país. Defendemos, por exemplo, o uso de energia 100% renovável, mas queremos também mudar a forma de propriedade: nem o controle das grandes corporações, nem do grande poder estatal, queremos controle comunitário. Além disso, os primeiros beneficiários desse novo modelo devem ser as comunidades atingidas pela indústria suja. Assim, [no Canadá], em primeiro lugar os indígenas e, logo em seguida, os latinos e negros.
É o que chamamos de transição justa para a próxima economia. Nós tentamos elaborar isso, talvez seja útil para as pessoas no Brasil conhecerem e se inspirarem a realizar um processo semelhante: se juntar e imaginar o desenho de uma economia pós-extrativista.

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