do Psicanalistas pela Democracia
Editorial
Quando alguns se colocam no papel de justiceiros contra inimigos
escolhidos a dedo e insistem em permanecer nesse pedestal de barro é
evidente que, enquanto o fazem, consideram que suas ações são incólumes e
que não serão julgadas pela história. Os nazistas pensavam assim, os
generais latino americanos pensam e pensavam assim, os Botha pró
apartheid da África do Sul pensavam assim, os colonizadores
escravocratas nas américas e etc. Estavam todos fazendo o bem para as
pessoas que escolhiam defender, proteger, adular e fazendo o bem ao
matar, torturar e explorar os inimigos desde suas posições de prestígio e
poder institucional que grupos determinados e/ou uma parcela
significativa da população lhes conferia. Não estavam sozinhos. Gozavam
do apoio ou da omissão de muitos.
Difícil afirmar qual o papel que o massacre à Lula e
sua família tiveram na debilitação e morte de Dona Marisa. Ataques
contínuos, odiosos, violentos e arbitrários contra a história, filhos e
honra matam pessoas, mas é difícil aferi-los porque se misturam a muitos
outros fatores que também determinam uma morte prematura ou um
sofrimento que, pouco a pouco, conduz à debilidade psíquica e física que
desencadeia o fim de uma vida.
O ódio mata, sempre matará e continuará matando, mas
ele o faz de modo invisível, sorrateiro e poucas vezes pode ser flagrado
para ser julgado. Por isso é capaz de ceifar muitas vidas na
obscuridade e na covardia.
É claro que muitos odiosos, além do promotor público Rômulo Paiva Filho, ou do médico Richam Faissal Ellakis e
tantos outros bem formados, bem alimentados e vestidos, nesse exato
momento devem estar celebrando a morte da esposa de Lula. E desejando a
morte do próprio Lula, se possível, com requintes de crueldade.
Mas o ódio gera uma alegria imbecil para o odioso e
destrutiva para o conjunto da comunidade e a sociedade onde vivem os
odiosos, porque não se sacia com a morte de um. Ele migra para outros,
nos quais os odiosos vestem uma carapuça de ferro por eles mesmos
inventada, e neles atiram até aniquilá-los, e mais outro, gerando o
círculo de violência que quando iniciado é muito difícil estancar. Tal
prática não é episódica e eventual. Alguém imagina o que deve sentir o
médico Raicham Faissal Ellakis por pacientes que o importunam no meio de um jantar ou o que pensa o promotor Rômulo Paiva Filho por colegas de profissão que lhe são adversários? O ódio é um hábito para alguns.
Por vezes uma morte é a resultante de uma
impossibilidade de resistir e um desejo de partir. Outras vezes é efeito
da arrebentação de uma onda de injurias que destrói o sentido da vida e
corrói as esperanças no futuro.
Mas assim como surgem algozes, surgem também os que
resistem aos algozes. Não são heróis, mas revoltados, injuriados,
indignados e podem se tornar violentos diante da falta de alternativas.
Isso acontece diante de um sentido de urgência, uma ininteligibilidade
radical que orienta a reagir sempre que a sobrevivência está ameaçada.
Se pessoas forem reduzidas a bichos, reagirão como bichos.
Por mais desacreditado que esteja o sistema
judiciário e de saúde no Brasil, fato é que quando flagramos os
operadores do direito defendendo a injustiça e os médicos propugnando o
ódio e a morte é sempre incitador de profunda revolta e medo no conjunto
dos cidadãos. Os membros da sociedade letrada e rica têm defendido
impropérios, violências e instigado a truculência mas não sabem com o
que estão mexendo.
Eles que chamam de bandidos os que lutam por um
pedaço de terra; de vagabundos os que lutam por teto e abrigo e de
vândalos os que lutam por educação digna pecam por ignorância profunda e
medo rasteiro de perder privilégios de classe. Cindem os movimentos
sociais do sentido de suas lutas porque é exatamente o que têm de fazer
para odiar. Inventar categorias que não existem; cindir causa e efeito;
apartar os sujeitos de suas histórias, os homens de suas
responsabilidades e dinamitar o pensamento e a reflexão sem ter o que
pôr no lugar.
Crianças de 3 anos podem fazer isso. Empurram o irmão
da escada para destruir o que acham que seria um obstáculo à sua
alegria e felicidade. Tornam-se, por essa via, cúmplices e artífices de
violências e reações contra elas mesmas. Passarão logo a serem vítimas
de crueldades que estão incitando, proclamando e defendendo, mas não
serão capazes de cessá-las. Querem causar o desastre mas jamais se
responsabilizarão pelas consequências e jamais saberão como evitá-la.
Não é possível acusar ninguém por uma morte cuja
causa se esgota nas explicações sobre o corpo, mas é preciso ficar
atento para rastro que o ódio deixa e que promete deixar mais óbitos
atrás de si. A morte, efeito de ódios, é o caldo que faz recrudescer
desejos de vingança e por aí os círculos da revolta se fecham, porque
quando iniciados imantam a violência infinita que reduz toda disputa à
contenda física paralisando por muito tempo o pensamento. Todo argumento
perde valor e sentido e tudo se resume ao gosto ou desgosto do momento.
Amo ou odeio e ponto final.
A paz só reina duradouramente quando há senso de
justiça, igualdade e futuro, ela precisa de nossa capacidade de
imaginar, pensar e inventar. Sem isso somos bichos, predadores e presas,
que podemos conduzir a um mar de dores insuperáveis, que só quem as
viveu em outros momentos de crise pode testemunhar.
Quando isso acontece o ódio veste sua armadura,
autoriza-se e reage rompendo barreiras de decência e eliminando limites
antes construídos com lutas e dificuldades em nome de um convívio
possível e duradouro entre diferentes e divergentes. Estamos no Brasil
muito longe da paz e muito próximos da guerra. Sempre estivemos, mas
agora tudo assume ares de iminência.
Há muitas maneiras de interpretar a morte de alguém.
Pode ser mera casualidade, pode ser o destino, pode ser uma fatalidade,
mas há outras interpretações que veem na morte a resultante de um
processo de crueldades que não puderam ser cessadas pelas instituições e
pessoas investidas de representação e legitimidade para fazê-lo e que
deviam, por obrigação moral e ética, tentar evitar o pior e não
insuflá-lo. O efeito colateral de interesses que dependem de mortes para
se manterem ativos será a revolta e as ações sem previsão que elas
engendram.
Não temos mais como nos enganar, morreu Dona Marisa, o
alvo agora é Lula, a despeito dos abraços comovidos e dos cumprimentos
cínicos que povoaram o hospital Sírio e libanês. Outros, milhares de
alvos são exterminados nesse momento em muitas cidades brasileiras.
Depois outros virão.
A escória das elites brasileiras não pretende apenas
atacar pessoas. Seu plano é muito mais ambicioso. Conduzir o Brasil ao
que era: um imenso latifúndio de escravos e miseráveis com açoites em
poucas mãos. Todavia muitos que se aproveitam desse momento não estão
interessados nisso exatamente. Eles aproveitam a oportunidade para
demonizar, matar, cruelizar e praticar, sem condenação, inefáveis
maldades a céu aberto. O promotor Rômulo Paiva Filho e o médico Raicham Faissal Ellakis foram
porta vozes de muitos. Um deveria zelar pela justiça o outro pela vida.
Se formaram para isso. Porém num segundo tornaram-se boçais que
instigam outros a beberem vísceras e sangue. Hienas roendo carcaças.
Estamos no fundo do poço e o caminho só pode ser para cima.
A morte cruel não encerra nada, mas dá início a um
processo de dor e ressentimento que dificilmente poderá ser cessado com
abraços protocolares à beira do caixão.
A morte poderá nos instruir a nos levantarmos antes
que outras mortes ocorram. E diante da premência de uma onda de maldades
que não encontra termo, teremos de estancá-las de um jeito ou de outro.
Teori morto, Moraes já vestia a toga para
substituí-lo. Mal termina o sepultamento de Marisa e as armas já estão
engatilhadas para Lula. Enquanto isso corpos são empilhados em todas as
cidades brasileiras e aqueles que reclamarão seus mortos se multiplicam.
Estaremos próximos de ter de decidir entre matar ou morrer?
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