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terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

CINZAS, por ALEXANDRE MEIRA (Conto)


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A boca amarga me persegue há pelo menos três dias. Distraio-me com o copo quente sobre a mesa, e mal consigo respirar nesse calor intenso com a cabeça baixa. Exausto. Deve ser umas dez da manhã. Um puta calor. Essa mesa de plástico não comporta mais a quantidade de cascos vazios de cerveja que rodopiam a cada despertar meu, repentinamente. Melhor dar um tempo. Estou sem dormir desde quando?

Carnaval é uma merda mesmo. Perseguir felicidades instantâneas a cada bloco barulhento que se espreme nessas ruas do centro. É isso e nada mais. Fast-food. Carnaval é prazer instantâneo e padecimento do corpo. Quase um ritual religioso às avessas. E como um beato intensamente envolvido nas atividades litúrgicas, ultrapasso nesse momento os limites do corpo em uma profunda experiência metafísica. Até me foder de vez. Quando essa merda acabar, é claro.

Que calor.

É foda pensar bêbado. Você praticamente entra em um estado de semiconsciência e parece enxergar plenamente a si próprio, sem certas amarras. Talvez a mais profunda terapia que leve ao autoconhecimento. O que não me impede de extrapolar alguns limites sociais e cair fragorosamente no ridículo. Mas se Dionísio nos deu a bebedeira é porque sabia que a gente não iria aguentar o tranco mesmo. Afinal, deus é deus né... Já a gente..., bem.... a gente é carne.

Putz... Esse é o verdadeiro pensamento de botequim. Um clássico.

Meu Deus do Céu. O que que eu tô fazendo aqui? O último rosto conhecido que apareceu na minha frente deve ter sido o do porteiro quando saí de casa. Deve achar que eu sou um pervertido que fica no carnaval se saciando com qualquer piranha em cada esquina fedida dessas. Sempre se pensa o pior não é? Ou não? É sim. Ainda mais o cara sendo crente. Aliás, foda-se. Até porque isso nunca foi uma má ideia. Não se foder... mas ser pervertido. E, em se tratando de Carnaval, não seria nada nada anacrônico. Inclusive pra ele: Crente.

Bom... Eu falei que a cangibrina levava a uma espécie de autoconhecimento. Acabei de descobrir que tenho preconceito contra crente.

Nossa. Que sol. Melhor sair dessa mesa. Tá maçarico mesmo. E preciso fechar essa conta, o garçom já tá me olhando desconfiado. Não sei de quê, exatamente. Se acha que não vou pagar...  Se acha que vou chorar minhas mágoas com ele... Se acha que vou pedir outra... Aliás! “Alô, braço! Me vê outra por favor...”. Se antes ele tava desconfiado, agora pode ter certeza. Até porque se realmente estou em uma atividade litúrgica, uma missa por exemplo, esse momento, portanto, seria a Homilia. Homilia é aquela parte em que o padre fala direto, e você pode sentar um pouco no banco pra descansar. Não, não pode beber. É... tem isso, não pode beber.

Baixo a cabeça entre os braços. Não aguento mais. Quero ir embora. Que dia é hoje? Segunda? Tinha que chover... não choveu nenhum dia. Deve ser o El-Niño... Porra nenhuma... Que barulho é esse? Tá rolando um batuque. É mesmo! Surdo, repique, caixa. Bateria! Ahhh....É por isso que eu tô aqui, disseram que passaria um bloco aqui nessa segunda. Dai-me forças, porque o dever me chama... Engraçado foi no bloco da Mem de Sá. Um sujeito com cara de gringo...

“Vai dormir é?”

Levanto a cabeça e me deparo com uma das visões mais lindas que uma “missa” poderia ter. A barulheira do bloco já estava em cima de mim, inúmeras pessoas se apertavam entre as cadeiras, aquele cheiro de vida tomava conta do botequinho fedido. E maravilhosamente parece que nada mais ficou importante.

Alguns segundos de uma imagem de lavar os olhos.

Com a batucada ao fundo cada vez mais alta, a caravana passava ritmando uma alegria inexplicável com fantasias, nudez e permissividade. No centro disso tudo, como uma aparição divina, uma mulata descia ao chão com toda sua majestade, vestida de passista, levada por um sinuoso quadril que oscilava sobre aquelas pernas maravilhosas. Acho que devia estar babando, porque ela abriu um cintilante sorriso.

“Vai dormir é?”

Caramba. Foi ela que me perguntou isso? Olhei para os lados. Pois é, foi pra mim mesmo. E agora? Continuei hipnotizado pelas curvas de sua cintura até chegar aos braços, seios e aos belos adereços dourados. Ela continuava a sorrir, e sem mais nem menos, enquanto a bateria já ensurdecia todo o ambiente, veio em minha direção e colocou a ponta do pé, delicadamente, sobre o meu joelho. Sentado como estava naquela cadeira de plástico a tinha, naquele instante, apoiada sobre mim. Estava ligado irremediavelmente àquele corpo, pernas, umbigo, busto e finalmente àquele sorriso, em um rosto divino, que por força do carnaval não parava de me olhar. Estava eu como um humilde engraxate. E foi assim que, ajeitando os adereços e passando a mão devagar nos cabelos, empinou o corpo e, covardemente, ficou alguns segundos me olhando.

“Vem pro bloco...” - li nos seus lábios essa frase...

O bloco comia solto. Alguns desavisados já paravam em volta da mesa. Outros derrubavam as garrafas e aquela mulher maravilhosa esperava alguma manifestação. Pois é. Tomado de surpresa e alimentado pela minha idiotia genética só consegui perguntar. “Qual o seu nome?”. Ela sorriu. Não sei se pra mim, ou de mim. Senhora plena da situação riu um pouco mais antes de continuar me olhando.

E nada me respondeu.

Num golpe rápido de movimento virou-se e saiu em direção ao interior do bloco. Percebi que eu tinha feito merda. Era fato. Levantei-me bruscamente para segurá-la ou pelo menos perguntar algo menos adolescente. Mas aí veio o golpe final... Eu vi a bunda. A Bunda. Meu Deus... que bunda. Mal ouvi os cascos de cerveja quebrando no chão, e completamente anestesiado deixei-a ir, de costas para mim, é claro. Ao som da bateria, iniciou passos leves numa cadência perfeita, mergulhando no ritmo, e ergueu os braços numa prece profanadora, daquelas que só as musas conseguem oferecer. Ainda teve tempo de me olhar e dizer:

“Felicidade instantânea”

Hã? Felicidade o quê?

“Acorda, parceiro. Já passou da hora, vai... Já quebrou uma porrada de cascos!”

Um zumbido no ouvido. Um calor amazônico. Luz ofuscante... Tudo ao mesmo tempo.

“Anda cumpade... vamos fechar isso aqui...”

Que merda. Todo suado e com uma boca super amarga, eu era interpelado pelo garçom que me viu quebrar provavelmente a cerveja que ele trouxe. Era isso mesmo?

"Que manguaça braba..."

Olho para os lados e vejo a rua vazia, escaldante. Aquele sol começava a me dar dor de cabeça. Desnorteado, inocentemente pergunto:

“E o bloco?”

“ Que mané bloco... Quarta de cinza, rapaz. Vai descansar”

Nem arrisquei perguntar sobre a mulata. Lembrei de suas últimas palavras, e rindo disse pra mim mesmo:

“Agora entendi.”

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