Um
dos resultados políticos do processo de estabilização monetária do
Plano Real, em 1994, foi a convergência do espectro ideológico do
sistema partidário para o centro, oscilando, no entanto, nas eleições
presidenciais, entre a centro-direita, capitaneada pelo PSDB, e a
centro-esquerda, liderada pelo PT, esta mais claramente configurada,
enquanto programa eleitoral e de governo, a partir das eleições de 2002
e, principalmente, 2006. Esse bipartidarismo estruturador das eleições
para o Executivo Federal caracterizou todos os pleitos presidenciais
durante seis disputas presidenciais consecutivas, a última em 2014.
Em
tal enquadramento, a opção de coalizão eleitoral ou de governo das
forças partidárias do centro político-ideológico, nucleado pelo PMDB,
era fundamental. Porém, por um lado, a emergência da chamada nova
direita, na mídia e nas ruas, nos desdobramentos da conjuntura dos
protestos de junho de 2013 e ao longo da crise política que desaguou no
impeachment, e, por outro, o substantivo enfraquecimento do PT,
evidenciado nas eleições municipais de 2016, resultaram em uma
direitização do sistema político, com impacto no quadro partidário, nas
políticas públicas, que se tornaram ultraliberais, nas relações entre
Estado e sociedade – reformatadas à imagem e semelhança de uma concepção
mininalista de democracia e permeadas de ideias-força como a negação da
política (até por candidatos às eleições), a retórica da meritocracia, a
valorização do trabalho ininterrupto (para tentar facilitar a reforma
da Previdência), a crítica ao populismo e também, em vários casos, às
pautas comportamentais progressistas –, na cultura da intolerância e
mesmo do ódio (veja-se o caso da chacina em Campinas, por exemplo) e
assim por diante.
Essa virada na conjuntura, com a emergência de
novos atores e lideranças, nas instituições públicas (Judiciário, PGR,
MPs estaduais, PF, TCU) e privadas, apoiados em valores
liberal-conservadores, alguns deles com indumentária autoritária,
representa um imenso desafio para os setores sociais e políticos que,
até 2014, vinham se empenhando na construção de um capitalismo
democrático, pela via das tendências, ações e decisões
social-desenvolvimentistas ensejadas pela relação de forças vigente no
contexto das sucessivas vitórias eleitorais do PT e de um ambiente
latino-americano e internacional mais favorável ou bem menos
desfavorável. Mas parece ser um grande equívoco a esquerda pensar que a
alternativa ao direitismo seja o esquerdismo, caminho do isolacionismo
infrutífero e da derrota do movimento de transformação do atual status
quo elitista. Veja-se, por exemplo, a derrota das esquerdas em geral no
último pleito eleitoral. Por mais que o PT tenha cometido erros,
atribuir a ele toda a culpa – ignorando o novo perfil da sociedade
brasileira, inserida na globalização, o individualismo estimulado pelo
conjunto das relações sociais, a emergência dos evangélicos, a
precarização das relações de trabalho, enfim, o banho estrutural de
capitalismo e credo liberais que, na onda atual, pós-impeachment,
tornou-se um tsunami – pode ser um grande equívoco.
A mudança de
governo, em 2016, considerando como as coisas ocorreram, passando pelo
rearranjo das alianças entre forças dos campos civil e
político-institucional e pela redefinição liberal-radical do programa de
políticas públicas visto como caminho de solução da crise, não
significou o retorno da centro-direita ao controle do Executivo e do
Legislativo, mas uma direitização do centro. Não voltamos ao campo
ideológico que, em 1994, no plano institucional, era representado pela
coalizão PSDB-PFL-PTB, em uma situação na qual havia, na oposição, um
campo democrático-popular liderado pelo PT, então com reputação ilibada.
As quatro vitórias consecutivas do PT e o envolvimento desse partido em
esquemas ilegais de financiamento político, mesmo que em nada
diferentes dos utilizados pelas outras duas principais agremiações
partidárias ora no governo, estimularam uma reação oposicionista de
grande porte, gestada na disputa política balizada por uma série de
variáveis contextuais e estruturais, entre elas a existência de uma
mídia oligopolizada e da Operação Lava Jato.
Essa ofensiva da
oposição aos governos encabeçados pelo PT resultou, entre outros, na
metamorfose conservadora de importantes lideranças do PMDB (quando esse
partido desembarcava do apoio a Dilma) e na direitização do PSDB, que
avançava desde a década passada, transformações essas que interagiram
com a nova direita da mídia e das ruas e com o protagonismo de elites da
burocracia pública na área jurídico-policial. Há hoje no Brasil, país
com abissal concentração de renda, uma compressão da igualdade
democrática e da democracia procedimental pela avalanche do bloco
liberal-conservador, hegemonizado pelas finanças, visando retomar, com
intensidade maior, as transformações orientadas para o mercado iniciadas
nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, no sentido do Estado
mínimo, da desregulamentação dos mercados, das privatizações, da
desnacionalização do sistema produtivo e da desindustrialização.
Nesse
contexto, cabe à esquerda reerguer-se, com racionalidade e
perseverança, construindo um programa para a nação, um programa nucleado
por um projeto econômico, centrado no desenvolvimento com justiça
social, que dialogue com um leque amplo de potenciais aliados, com
setores do capital produtivo, com pequenos produtores da cidade e do
campo, com os trabalhadores, não só os do setor formal e organizado da
economia, mas também os precarizados, com os excluídos, com os
microempreendedores, com as classes médias, intelectuais, juventude,
mulheres, negros e assim por diante. Política e aliança são
inseparáveis. Governar o capitalismo sem os capitalistas está fora de
cogitação. Também está fora de cogitação conquistar o governo para
suprimir as relações de dominação fundadas na propriedade privada. A
disputa é entre modelos de capitalismo e, no exato momento, as elites
governantes e econômicas se lançaram na perspectiva oposta à do
capitalismo democrático, uma perspectiva fortemente orientada para o
mercado, visando atrair investimentos externos (conforme, por exemplo, a
postura de Temer nas reuniões internacionais em que tem participado ao
viajar para fora do país). A pauta comportamental progressista, dos
direitos e liberdades civis, também é necessária para a esquerda, mas
não suficiente. Outro ponto-chave é o comprometimento com um Estado
republicano, capacitado, a serviço da cidadania, e não da pirataria de
grupos organizados.
Há contradições entre interesses nacionais e
estrangeiros (pense-se no Brexit e em Trump, por exemplo), assim como há
contradições entre interesses produtivos e rentistas. Por mais que o
empresariado produtivo tenha apoiado o impeachment, vários deles são
críticos da macroeconomia liberal, mesmo que essa contradição dê nó na
cabeça. Recentemente, até o liberal André Lara Resende criticou a
elevada taxa básica de juro implementada no Brasil desde 1994, devido ao
seu impacto negativo sobre o equilíbrio fiscal e na própria expectativa
de inflação.
O capitalismo é cíclico, as crises são inerentes a
ele. Sem a virtù de um programa nacional amplo, a esquerda não estará à
altura de aproveitar uma maré positiva que possa surgir. As eleições de
2018 se aproximam. O país precisa de uma esquerda forte, democrática e
competitiva, enraizada em amplas bases, para contrabalançar a nova
direita ultraliberal e defender, com competência, estratégias políticas
que maximizem a possibilidade de equacionamento entre lucro,
investimento e redistribuição. O esquerdismo não é a alternativa para a
reconstrução de uma esquerda que fale para a nação. Por outro lado, essa
perspectiva nacional da esquerda de maneira nenhuma significa que as
organizações dos trabalhadores não defendam seus interesses nas relações
com os setores privado e público. A defesa dos interesses é a regra do
jogo na economia de mercado e na democracia, por mais que esta última
esteja ferida pelos últimos acontecimentos.
* Marcus Ianoni é
cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da
Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador das relações entre
Política e Economia.
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