A ordem executiva de Trump que proíbe a entrada de muçulmanos no país tem recebido muita atenção da oposição, de protestos a ordens judiciais. Mas as pesquisas mostram com clareza que a opinião pública é bem mais heterogênea.
Pesquisas convencionais por telefone mostram uma pequena maioria contra, enquanto pesquisas automatizadas e online estabelecem uma pequena maioria a favor da ordem executiva.
O que me surpreende nos resultados das pesquisas não é que muitos americanos apoiem a proibição — mas que tantos americanos sejam contra ela. Pessoas comuns têm de viver suas vidas e não têm tempo para investigar assuntos complexos em maiores detalhes. Em vez disso, costumam acreditar em líderes de sua confiança. De acordo com o que políticos americanos de todas as orientações políticas dizem sobre o terrorismo, a ordem executiva de Trump faz todo o sentido. Literalmente, não há nenhum político americano de alcance nacional adotando uma narrativa que ajude pessoas comuns a entender por que os objetivos de Trump são extremamente contraproducentes e moralmente baixos.
Reflitamos:
Em 13 de fevereiro de 1991, durante a primeira Guerra do Golfo, os EUA lançaram duas bombas guiadas por laser no abrigo antiaéreo público de Amiriyah, em Bagdá. Mais de 400 civis iraquianos foram incinerados ou carbonizados. Por muitos anos depois do ocorrido, visitantes de um memorial no local puderam conhecer uma mulher que perdeu oito filhos no bombardeio; ela ainda morava no abrigo destruído porque não suportava morar em outro lugar.
Bem, imagine que, imediatamente após o bombardeio, Saddam Hussein fizesse um discurso na TV iraquiana em que lamentasse: “por que eles nos odeiam?” — sem mencionar o fato de o Iraque estar ocupando o Kuwait. E até mesmo os adversários políticos de Saddam apenas murmurassem que “o assunto é complicado”. E que a maioria dos iraquianos não tivesse a menor ideia de que seu país havia invadido o Kuwait, e que existissem inúmeras resoluções das Nações Unidas e discursos de George H. W. Bush explicando as motivações da aliança liderada pelos EUA para contra-atacar o Iraque. E que os poucos iraquianos que insinuassem haver relação entre a invasão de Hussein no Kuwait e o bombardeio de Amiriyah fossem silenciados por políticos aos berros, clamando que esses radicais que odeiam iraquianos obviamente acreditavam que o massacre de 400 pessoas realizado pelos americanos havia sido justificado.
Se isso acontecesse, nós imediatamente reconheceríamos que a cultura política iraquiana estava completamente perturbada, e que isso fazia com que se comportassem de forma perigosamente louca. Mas a cultura política americana se encontra exatamente nesse mesmo estado.
Em uma entrevista em março de 2016 com Anderson Cooper, Donald Trump tentou esclarecer o que está por trás do terrorismo contra os EUA. “Eu acho que o Islã nos odeia”, opinou Trump com ar erudito. “Há muito ódio lá, precisamos ir ao fundo da questão”.
“No próprio Islã?”, perguntou Cooper. Trump respondeu: “você vai ter que descobrir por conta própria. Vai ganhar outro [prêmio] Pulitzer”.
Durante seu discurso na CIA logo após sua posse, Trump expressou a mesma perplexidade. “Terrorismo islâmico radical”, ponderou Trump. “Ninguém consegue entender isso”.
John F. Kelly, atual chefe do Departamento de Segurança Interna de Trump, também ficou perplexo,dizendo em um discurso de 2013: “não entendo por que eles nos odeiam, e, francamente, não me importa, mas eles nos odeiam e desejam nossa destruição de forma irracional”.
Fale o que quiser sobre os princípios dessa visão de mundo, mas pelo menos ela possui um caráter interno consistente. Estamos cercados de lunáticos que querem nos assassinar por motivos completamente incompreensíveis para pessoas racionais como nós, mas… isso obviamente tem algo a ver com o fato de serem muçulmanos.
Enquanto isso, em particular, os membros não enlouquecidos do establishment da política externa dos Estados Unidos não estão nem um pouco confusos. Eles entendem muito bem que o terrorismo islâmico é reação quase completamente relacionada à política externa que eles conceberam.
Richard Shultz, professor da Universidade Tufts que por grande parte de sua carreira esteve envolvido com a segurança nacional de Estado, escreveu: “um oficial sênior [das Forças de Operações Especiais] que serviu como membro do Estado-Maior nos anos 90 me contou que mais de uma vez ouviu que ataques terroristas são um ‘preço pequeno’ a ser pago por ser uma superpotência”. Esse preço pequeno, é claro, se traduz na morte de americanos comuns e, aparentemente, compensa.
A Comissão do 11 de Setembro reconheceu discretamente, depois de centenas de páginas de relatório, que as “escolhas de políticas dos EUA têm consequências”. Certo ou errado, é fato que a política americana com relação ao conflito entre Israel e Palestina e as atividades americanas no Iraque são os argumentos predominantes nos debates públicos por todo o mundo árabe e muçulmano”. Algum tempo depois, um oficial sênior do governo de George W. Bush explicou de forma mais franca para a Esquire que, sem as sanções impostas após a Guerra do Golfo, em que morreram centenas de milhares de iraquianos, e sem a permanência de tropas americanas na Arábia Saudita, “bin Laden ainda estaria redecorando mesquitas e aborrecendo seus amigos com histórias de seu tempo de combatente no Passo Khyber”.
Profissionais da comunidade de inteligência estavam perfeitamente cientes de que a invasão do Iraque agravaria as condições que levaram ao ataque de 11 de setembro. No Reino Unido, o Inquérito Chilcoc, que investigou a guerra no Iraque, publicou uma avaliação realizada pela inteligência britânica em fevereiro de 2003 sobre as consequências de uma invasão do Iraque, que viria a ocorrer um mês depois. “O grau de ameaça da al Qaeda aumentará com o início de qualquer ação militar contra o Iraque”, disse o Comitê Conjunto de Inteligência do Reino Unido ao primeiro ministro Tony Blair, e “o grau de ameaça de outros indivíduos e grupos terroristas islâmicos aumentará de forma significativa por todo o mundo”.
A CIA tinha a mesma perspectiva. Michael Scheuer, que durante anos chefiou a agência que localizou bin Laden, escreveu em 2004 que “as forças armadas e políticas americanas estão concluindo a radicalização do mundo islâmico, algo que Osama bin Laden vem tentando fazer desde o começo dos anos 90 com sucesso substancial, mas não absoluto. Portanto, acho justo concluir que os Estados Unidos da América continuam a ser o único aliado indispensável de bin Laden”.
O Conselho Científico do Departamento de Defesa, por sua vez, concluiu em um relatório de 2004 que “muçulmanos não ‘odeiam nossa liberdade’, na verdade, odeiam nossas políticas. A absoluta maioria se opõe ao que veem como um apoio unilateral a Israel, contra os direitos de palestinos, e o já antigo e cada vez maior apoio aos países que os muçulmanos consideram coletivamente seus tiranos, especialmente o Egito, Arábia Saudita, Jordânia, Paquistão e os países do Golfo Pérsico”.
Ao assumir a presidência, Barack Obama tinha duas opções.
Ele podia dizer a verdade: que os EUA agiram com extraordinária brutalidade no Oriente Médio, que essa era a principal motivação da maioria dos terroristas islâmicos e que, se continuássemos com a mesma política externa, americanos morreriam indefinidamente em ataques intermitentes. Depois, poderíamos travar um debate franco e fundamentado sobre se valorizamos o suficiente nossa política externa para morrer por ela.
Ou Obama poderia tentar continuar administrando o Oriente Médio ignorando a opinião pública, mas de forma mais razoável do que o governo Bush.
Obviamente, ele escolheu a segunda opção, que exigiu, em muitos aspectos, um comportamento politicamente correto.
O mais importante é que Obama fingia que os EUA nunca fizeram nada verdadeiramente errado e, portanto, podem desfrutar dos benefícios do poder sem maiores consequências. Essa é a forma mais comum e perniciosa do comportamento politicamente correto, mas nunca é chamada assim porque é uma tática que os poderosos nos EUA adoram adotar.
Obama também se manifestou de uma forma que geralmente é considerada politicamente correta ao sustentar que o Islã não tinha nada a ver com o terrorismo. Mas o Islã tem a ver com o terrorismo, sim — apenas não da forma que Frank Gaffney e Pamela Geller defendem.
Religião e nacionalismo sempre foram fenômenos parecidos e, por vezes, o Islã funciona como uma forma de nacionalismo. E, como em qualquer nacionalismo, existe uma direita louca e cruel que é fortalecida por ataques externos aos seus membros. A direita adora zombar Obama por ter chamado o Islã de “religião da paz” e estão certos, mas não porque o Islã não seja uma religião da paz, mas por não existir uma religião da paz, assim como não existe “nacionalismo da paz”. É verdade que religiões e nacionalismo podem salientar o que há de melhor nas pessoas, mas também salientam o que há de pior (algumas vezes, na mesma pessoa e pelos mesmos motivos).
Mas Obama nunca diria algo do gênero, porque sabe que os EUA precisam dos governos de países de maioria muçulmana, como a Arábia Saudita e o Egito, para manter o resto do Oriente Médio na linha.
Essa amálgama de politicamente correto impossibilitou que o governo Obama pudesse usar uma narrativa sobre terrorismo que fizesse sentido. Por exemplo, neste discurso de 2009 no Cairo, o ex-presidente declarou ser “mais fácil culpar os outros do que olhar para si mesmo” — e depois seguiu demonstrando essa obviedade.
Sua descrição de injustiças realizadas pelos EUA foi tão vaga que chegou a ser insignificante: “as tensões foram alimentadas pelo colonialismo que negou direitos e oportunidades a muitos muçulmanos”. Em outra passagem, disse que a guerra no “Iraque foi uma guerra que provocou fortes contestações em meu país e por todo o mundo”.
Obama então explicou que “extremistas violentos exploraram essas tensões”. Então… 19 pessoas foram motivadas a lançar aviões contra prédios por causa de “tensões”? Se essa for a única história que os americanos não muçulmanos ouvirem, naturalmente ficarão aterrorizados com o Islã.
Em 2010, o assessor para assuntos de antiterrorismo de Obama, Hohn Brennan, proferiu uma série de baboseiras insossas em uma coletiva de imprensa ao ser questionado sobre Umar Farouk Abdulmutallab, o terrorista fracassado da bomba na cueca. A conversa foi assim:
A resposta da Rússia à nossa simpática observação foi idêntica à nossa quando a própria Rússia nos disse antes da Guerra do Iraque que a invasão traria uma “nova onda de terror”.
Isso nos traz de volta ao presidente Trump e sua ordem executiva que regula a imigração.
As justificativas de Trump para a necessidade da proibição são efetivamente um lixo. Mas um ser humano normal pode ao menos compreender a moral por trás dela: esses estrangeiros incompreensíveis são todos psicopatas em potencial, portanto, temos que mantê-los fora do país. Nessas circunstâncias, quem se importa que nenhum cidadão de nenhum desses sete países matou americanos até hoje? Eles são todos parte de um enorme grupo de bombas-relógio.
Em comparação, o ponto de vista progressista democrático oferecido por Obama não faz o menor sentido. Nunca fizemos nada particularmente ruim no Oriente Médio, ainda assim, algumas pessoas de lá querem vir para cá e nos matar porque foram exploradas por extremistas violentos que desvirtuaram o Islã e, ah, desculpa, tenho que ir, não dá para explicar.
Pessoas comuns conseguem entender que quem fala esse tipo de bobagem está escondendo alguma coisa, mesmo se não perceberem que Obama tentava manter o império americano no controle, em vez de estar tentando esconder sua fé secreta pelo Islã.
Como uma narrativa coesa é sempre melhor do que a completa ausência de história, não é de surpreender que muitos americanos achem a fantasia de Trump, com seu inexplicável ódio a muçulmanos, persuasiva. A única maneira de derrotá-la de forma definitiva será por meio de uma narrativa coerente e complicada:
Isso pode ser observado, por outro lado, na propaganda do Estado Islâmico. Bin Laden costumava falar apenas de expulsar os EUA do Oriente Médio e fazia declarações como: “sua segurança está em suas mãos e todos os Estados que não ferirem nossa segurança permanecerão seguros”. A revista do Estado Islâmico Dabiq conta, cheia de entusiasmo, que “nós os odiamos, antes de mais nada, porque vocês são incrédulos; rejeitam a unicidade de Allah… mesmo se parassem de nos bombardear, encarcerar, torturar, difamar e usurpar nossas terras, continuaríamos a odiá-los porque a principal razão para os odiarmos não deixará de existir até que vocês adotem o Islã”.
Por outro lado, Donald Trump é o presidente dos Estados Unidos e Steve Bannon é seu estrategista chefe. Bannon acredita piamente, conforme declarou em conferência no Vaticano em 2014, que “estamos em uma guerra de imensas proporções” que é parte de uma “longa história de dificuldades entre o ocidente judaico-cristão e o Islã. Para vencer, diz Bannon, devemos formar a “igreja militante” — um termo arcaico para a “Igreja Cristã da terra reconhecida pela constante guerra contra seus inimigos: os poderes do mal”.
Então é perfeitamente possível que o Estado Islâmico e o governo Trump possam colaborar na obtenção do que ambos desejam: uma guerra de civilizações completamente desnecessária. Para impedi-los, precisamos acabar com nossa humilhante ambiguidade sobre o terrorismo e começar a dizer a verdade enquanto é tempo.
Pesquisas convencionais por telefone mostram uma pequena maioria contra, enquanto pesquisas automatizadas e online estabelecem uma pequena maioria a favor da ordem executiva.
O que me surpreende nos resultados das pesquisas não é que muitos americanos apoiem a proibição — mas que tantos americanos sejam contra ela. Pessoas comuns têm de viver suas vidas e não têm tempo para investigar assuntos complexos em maiores detalhes. Em vez disso, costumam acreditar em líderes de sua confiança. De acordo com o que políticos americanos de todas as orientações políticas dizem sobre o terrorismo, a ordem executiva de Trump faz todo o sentido. Literalmente, não há nenhum político americano de alcance nacional adotando uma narrativa que ajude pessoas comuns a entender por que os objetivos de Trump são extremamente contraproducentes e moralmente baixos.
Reflitamos:
Em 13 de fevereiro de 1991, durante a primeira Guerra do Golfo, os EUA lançaram duas bombas guiadas por laser no abrigo antiaéreo público de Amiriyah, em Bagdá. Mais de 400 civis iraquianos foram incinerados ou carbonizados. Por muitos anos depois do ocorrido, visitantes de um memorial no local puderam conhecer uma mulher que perdeu oito filhos no bombardeio; ela ainda morava no abrigo destruído porque não suportava morar em outro lugar.
Bem, imagine que, imediatamente após o bombardeio, Saddam Hussein fizesse um discurso na TV iraquiana em que lamentasse: “por que eles nos odeiam?” — sem mencionar o fato de o Iraque estar ocupando o Kuwait. E até mesmo os adversários políticos de Saddam apenas murmurassem que “o assunto é complicado”. E que a maioria dos iraquianos não tivesse a menor ideia de que seu país havia invadido o Kuwait, e que existissem inúmeras resoluções das Nações Unidas e discursos de George H. W. Bush explicando as motivações da aliança liderada pelos EUA para contra-atacar o Iraque. E que os poucos iraquianos que insinuassem haver relação entre a invasão de Hussein no Kuwait e o bombardeio de Amiriyah fossem silenciados por políticos aos berros, clamando que esses radicais que odeiam iraquianos obviamente acreditavam que o massacre de 400 pessoas realizado pelos americanos havia sido justificado.
Se isso acontecesse, nós imediatamente reconheceríamos que a cultura política iraquiana estava completamente perturbada, e que isso fazia com que se comportassem de forma perigosamente louca. Mas a cultura política americana se encontra exatamente nesse mesmo estado.
Em uma entrevista em março de 2016 com Anderson Cooper, Donald Trump tentou esclarecer o que está por trás do terrorismo contra os EUA. “Eu acho que o Islã nos odeia”, opinou Trump com ar erudito. “Há muito ódio lá, precisamos ir ao fundo da questão”.
“No próprio Islã?”, perguntou Cooper. Trump respondeu: “você vai ter que descobrir por conta própria. Vai ganhar outro [prêmio] Pulitzer”.
Durante seu discurso na CIA logo após sua posse, Trump expressou a mesma perplexidade. “Terrorismo islâmico radical”, ponderou Trump. “Ninguém consegue entender isso”.
John F. Kelly, atual chefe do Departamento de Segurança Interna de Trump, também ficou perplexo,dizendo em um discurso de 2013: “não entendo por que eles nos odeiam, e, francamente, não me importa, mas eles nos odeiam e desejam nossa destruição de forma irracional”.
Fale o que quiser sobre os princípios dessa visão de mundo, mas pelo menos ela possui um caráter interno consistente. Estamos cercados de lunáticos que querem nos assassinar por motivos completamente incompreensíveis para pessoas racionais como nós, mas… isso obviamente tem algo a ver com o fato de serem muçulmanos.
Enquanto isso, em particular, os membros não enlouquecidos do establishment da política externa dos Estados Unidos não estão nem um pouco confusos. Eles entendem muito bem que o terrorismo islâmico é reação quase completamente relacionada à política externa que eles conceberam.
Richard Shultz, professor da Universidade Tufts que por grande parte de sua carreira esteve envolvido com a segurança nacional de Estado, escreveu: “um oficial sênior [das Forças de Operações Especiais] que serviu como membro do Estado-Maior nos anos 90 me contou que mais de uma vez ouviu que ataques terroristas são um ‘preço pequeno’ a ser pago por ser uma superpotência”. Esse preço pequeno, é claro, se traduz na morte de americanos comuns e, aparentemente, compensa.
A Comissão do 11 de Setembro reconheceu discretamente, depois de centenas de páginas de relatório, que as “escolhas de políticas dos EUA têm consequências”. Certo ou errado, é fato que a política americana com relação ao conflito entre Israel e Palestina e as atividades americanas no Iraque são os argumentos predominantes nos debates públicos por todo o mundo árabe e muçulmano”. Algum tempo depois, um oficial sênior do governo de George W. Bush explicou de forma mais franca para a Esquire que, sem as sanções impostas após a Guerra do Golfo, em que morreram centenas de milhares de iraquianos, e sem a permanência de tropas americanas na Arábia Saudita, “bin Laden ainda estaria redecorando mesquitas e aborrecendo seus amigos com histórias de seu tempo de combatente no Passo Khyber”.
Profissionais da comunidade de inteligência estavam perfeitamente cientes de que a invasão do Iraque agravaria as condições que levaram ao ataque de 11 de setembro. No Reino Unido, o Inquérito Chilcoc, que investigou a guerra no Iraque, publicou uma avaliação realizada pela inteligência britânica em fevereiro de 2003 sobre as consequências de uma invasão do Iraque, que viria a ocorrer um mês depois. “O grau de ameaça da al Qaeda aumentará com o início de qualquer ação militar contra o Iraque”, disse o Comitê Conjunto de Inteligência do Reino Unido ao primeiro ministro Tony Blair, e “o grau de ameaça de outros indivíduos e grupos terroristas islâmicos aumentará de forma significativa por todo o mundo”.
A CIA tinha a mesma perspectiva. Michael Scheuer, que durante anos chefiou a agência que localizou bin Laden, escreveu em 2004 que “as forças armadas e políticas americanas estão concluindo a radicalização do mundo islâmico, algo que Osama bin Laden vem tentando fazer desde o começo dos anos 90 com sucesso substancial, mas não absoluto. Portanto, acho justo concluir que os Estados Unidos da América continuam a ser o único aliado indispensável de bin Laden”.
O Conselho Científico do Departamento de Defesa, por sua vez, concluiu em um relatório de 2004 que “muçulmanos não ‘odeiam nossa liberdade’, na verdade, odeiam nossas políticas. A absoluta maioria se opõe ao que veem como um apoio unilateral a Israel, contra os direitos de palestinos, e o já antigo e cada vez maior apoio aos países que os muçulmanos consideram coletivamente seus tiranos, especialmente o Egito, Arábia Saudita, Jordânia, Paquistão e os países do Golfo Pérsico”.
Ao assumir a presidência, Barack Obama tinha duas opções.
Ele podia dizer a verdade: que os EUA agiram com extraordinária brutalidade no Oriente Médio, que essa era a principal motivação da maioria dos terroristas islâmicos e que, se continuássemos com a mesma política externa, americanos morreriam indefinidamente em ataques intermitentes. Depois, poderíamos travar um debate franco e fundamentado sobre se valorizamos o suficiente nossa política externa para morrer por ela.
Ou Obama poderia tentar continuar administrando o Oriente Médio ignorando a opinião pública, mas de forma mais razoável do que o governo Bush.
Obviamente, ele escolheu a segunda opção, que exigiu, em muitos aspectos, um comportamento politicamente correto.
O mais importante é que Obama fingia que os EUA nunca fizeram nada verdadeiramente errado e, portanto, podem desfrutar dos benefícios do poder sem maiores consequências. Essa é a forma mais comum e perniciosa do comportamento politicamente correto, mas nunca é chamada assim porque é uma tática que os poderosos nos EUA adoram adotar.
Obama também se manifestou de uma forma que geralmente é considerada politicamente correta ao sustentar que o Islã não tinha nada a ver com o terrorismo. Mas o Islã tem a ver com o terrorismo, sim — apenas não da forma que Frank Gaffney e Pamela Geller defendem.
Religião e nacionalismo sempre foram fenômenos parecidos e, por vezes, o Islã funciona como uma forma de nacionalismo. E, como em qualquer nacionalismo, existe uma direita louca e cruel que é fortalecida por ataques externos aos seus membros. A direita adora zombar Obama por ter chamado o Islã de “religião da paz” e estão certos, mas não porque o Islã não seja uma religião da paz, mas por não existir uma religião da paz, assim como não existe “nacionalismo da paz”. É verdade que religiões e nacionalismo podem salientar o que há de melhor nas pessoas, mas também salientam o que há de pior (algumas vezes, na mesma pessoa e pelos mesmos motivos).
Mas Obama nunca diria algo do gênero, porque sabe que os EUA precisam dos governos de países de maioria muçulmana, como a Arábia Saudita e o Egito, para manter o resto do Oriente Médio na linha.
Essa amálgama de politicamente correto impossibilitou que o governo Obama pudesse usar uma narrativa sobre terrorismo que fizesse sentido. Por exemplo, neste discurso de 2009 no Cairo, o ex-presidente declarou ser “mais fácil culpar os outros do que olhar para si mesmo” — e depois seguiu demonstrando essa obviedade.
Sua descrição de injustiças realizadas pelos EUA foi tão vaga que chegou a ser insignificante: “as tensões foram alimentadas pelo colonialismo que negou direitos e oportunidades a muitos muçulmanos”. Em outra passagem, disse que a guerra no “Iraque foi uma guerra que provocou fortes contestações em meu país e por todo o mundo”.
Obama então explicou que “extremistas violentos exploraram essas tensões”. Então… 19 pessoas foram motivadas a lançar aviões contra prédios por causa de “tensões”? Se essa for a única história que os americanos não muçulmanos ouvirem, naturalmente ficarão aterrorizados com o Islã.
Em 2010, o assessor para assuntos de antiterrorismo de Obama, Hohn Brennan, proferiu uma série de baboseiras insossas em uma coletiva de imprensa ao ser questionado sobre Umar Farouk Abdulmutallab, o terrorista fracassado da bomba na cueca. A conversa foi assim:
THOMAS: E qual é a motivação? Nunca tomamos conhecimento do que você descobriu sobre o porquê.Em sua sentença, Abdulmutallab explicou sua motivação em menos tempo do que Brennan precisou para dizer que não havia tempo suficiente para explicar:
BRENNAN: A al Qaeda é uma organização dedicada a matar e assassinar inocentes arbitrariamente… Atraem indivíduos como o Sr. Abdulmutallab e os usam para esse tipo de ataque. Ele foi motivado por um sentimento de religiosidade. Infelizmente, a al Qaeda desvirtuou e corrompeu o conceito de Islã, para que possa atrair esses indivíduos. Mas a al Qaeda tem uma agenda de destruição e morte.
THOMAS: E você está dizendo que é por causa da religião?
BRENNAN: Estou dizendo que é porque a organização al Qaeda usa a bandeira da religião de forma perversa e corrupta.
THOMAS: Por quê?
BRENNAN: Acho que esse problema é, ummm, complicado, mas a al Qaeda está decidida a realizar ataques aqui em nosso país.
[Me comprometi a] atacar os Estados Unidos como retaliação ao apoio americano a Israel e como retaliação ao assassinato de muçulmanos civis e inocentes na Palestina, especialmente no bloqueio de Gaza, e como retaliação ao assassinato de muçulmanos civis e inocentes no Iêmen, Iraque, Somália, Afeganistão e outros, em sua maioria mulheres, crianças e não combatentes.Para ser justo, houve uma situação em que oficiais americanos perderam as papas na língua e traçaram uma relação direta entre um país matando civis no Oriente Médio e a retaliação de terroristas: no caso da Rússia. William Burns, antigo vice-secretário de Estado de Obama, declarou recentemente sem margem para dúvidas que “o papel sanguinário da Rússia na Síria aumenta em muito a ameaça terrorista”. John Kirby, porta-voz do Departamento de Estado, alertou que a violência da Rússia na Síria levaria a “ataques contra os interesses russos, talvez até contra cidades russas”.
A resposta da Rússia à nossa simpática observação foi idêntica à nossa quando a própria Rússia nos disse antes da Guerra do Iraque que a invasão traria uma “nova onda de terror”.
Isso nos traz de volta ao presidente Trump e sua ordem executiva que regula a imigração.
As justificativas de Trump para a necessidade da proibição são efetivamente um lixo. Mas um ser humano normal pode ao menos compreender a moral por trás dela: esses estrangeiros incompreensíveis são todos psicopatas em potencial, portanto, temos que mantê-los fora do país. Nessas circunstâncias, quem se importa que nenhum cidadão de nenhum desses sete países matou americanos até hoje? Eles são todos parte de um enorme grupo de bombas-relógio.
Em comparação, o ponto de vista progressista democrático oferecido por Obama não faz o menor sentido. Nunca fizemos nada particularmente ruim no Oriente Médio, ainda assim, algumas pessoas de lá querem vir para cá e nos matar porque foram exploradas por extremistas violentos que desvirtuaram o Islã e, ah, desculpa, tenho que ir, não dá para explicar.
Pessoas comuns conseguem entender que quem fala esse tipo de bobagem está escondendo alguma coisa, mesmo se não perceberem que Obama tentava manter o império americano no controle, em vez de estar tentando esconder sua fé secreta pelo Islã.
Como uma narrativa coesa é sempre melhor do que a completa ausência de história, não é de surpreender que muitos americanos achem a fantasia de Trump, com seu inexplicável ódio a muçulmanos, persuasiva. A única maneira de derrotá-la de forma definitiva será por meio de uma narrativa coerente e complicada:
Os EUA fizeram coisas terríveis em países de todo o Oriente Médio durante décadas, como bombardear um abrigo antiaéreo para civis, deixando a marca de queimado da silhueta de uma mãe segurando um bebê na parede. Era inevitável que algumas pessoas buscassem vingança. Isso não quer dizer que a violência deles é justificada, assim como não se justifica o massacre em Amiriyah quando Saddam Hussain invadiu o Kuwait. Significa apenas que seres humanos são seres humanos, violência gera violência e os americanos estarão correndo risco de vida até que mudemos nossa política externa.E é melhor começarmos a mudar isso logo porque pode não ser verdade para sempre. Israel fez um trabalho exemplar transformando uma briga por território perfeitamente solucionável em uma guerra religiosa que pode não ter mais solução. Estamos fazendo avanços semelhantes na transformação de um conflito que era 90% político, em que ainda poderia haver acordo, em um conflito religioso, em que isso não será possível.
Devemos receber imigrantes do Oriente Médio por razões morais e pragmáticas. Moralmente, a invasão do Iraque foi o que causou a catástrofe em espiral na região; apenas psicopatas tacam fogo um uma casa e trancam pessoas dentro. Já existem três milhões de cidadãos americanos muçulmanos. Se o governo continuar a bombardear o Oriente Médio deixando bem claro que realmente odeia muçulmanos, isso apenas estimulará mais excêntricos perturbados, como Omar Mateen — que nasceu no Queens, a poucos quilômetros de distância de onde cresceu Donald Trump.
Isso pode ser observado, por outro lado, na propaganda do Estado Islâmico. Bin Laden costumava falar apenas de expulsar os EUA do Oriente Médio e fazia declarações como: “sua segurança está em suas mãos e todos os Estados que não ferirem nossa segurança permanecerão seguros”. A revista do Estado Islâmico Dabiq conta, cheia de entusiasmo, que “nós os odiamos, antes de mais nada, porque vocês são incrédulos; rejeitam a unicidade de Allah… mesmo se parassem de nos bombardear, encarcerar, torturar, difamar e usurpar nossas terras, continuaríamos a odiá-los porque a principal razão para os odiarmos não deixará de existir até que vocês adotem o Islã”.
Por outro lado, Donald Trump é o presidente dos Estados Unidos e Steve Bannon é seu estrategista chefe. Bannon acredita piamente, conforme declarou em conferência no Vaticano em 2014, que “estamos em uma guerra de imensas proporções” que é parte de uma “longa história de dificuldades entre o ocidente judaico-cristão e o Islã. Para vencer, diz Bannon, devemos formar a “igreja militante” — um termo arcaico para a “Igreja Cristã da terra reconhecida pela constante guerra contra seus inimigos: os poderes do mal”.
Então é perfeitamente possível que o Estado Islâmico e o governo Trump possam colaborar na obtenção do que ambos desejam: uma guerra de civilizações completamente desnecessária. Para impedi-los, precisamos acabar com nossa humilhante ambiguidade sobre o terrorismo e começar a dizer a verdade enquanto é tempo.
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