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terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

A tolerância necessária e urgente, por Leonardo Boff.



O cristianismo das origens, da Tradição do Jesus histórico – contrariamente à intolerância da inquisição e de uma visão meramente doutrinária da fé – era extremamente tolerante. Jesus ensinou que devemos tolerar que o joio cresça junto com o trigo. Só na colheita far-se-á a separação. São Pedro, já feito apóstolo, seguia os costumes judeus: não podia entrar na casa de pagãos nem comer certos alimentos, pois isso o tornaria impuro. Mas, ao ser convidado por um oficial romano, de nome Cornélio, acabou visitando-o e constatou sua profunda piedade e seu cuidado pelos pobres. Então concluiu:”Deus me mostrou que nenhum homem deve ser considerado profano  e impuro; agora reconheço deveras que não há em Deus discriminação de pessoas mas lhe é agradável quem, em qualquer nação, tiver  reverencia face a Deus e praticar a justiça”(Atos 10,28-35).
Desse relato se deduz que o diálogo e o encontro entre as pessoas que buscam uma orientação religiosa, como no caso do oficial romano, invalidam o preconceito e o tabu de coibir algum contacto com o diferente.
Do fato resulta também que Deus é encontrado infalivelmente lá onde “em qualquer nação houver reverência face ao Sagrado e se praticar a justiça”, pouco importa sua inscrição religiosa.
Ademais Jesus ensinou que a adoração a Deus vai para além dos templos, porque “os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade e são estes que o Pai deseja”(Jo,4,23). Existe, portanto, a religião do Espírito, quer dizer, todos os que vivem valores não materiais e são fiéis à verdade estão seguramente no caminho que conduz a Deus. Cada um, em sua cultura e tradição, vive à sua maneira, a vida espiritual e se orienta pela verdade. Este merece ser respeitado e positivamente tolerado.
Suspeito que não há maior tolerância do que esta atitude de Jesus, abandonada ao largo da história, pela Igreja-poder institucional (parte da Igreja-povo-de-Deus) que discriminou judeus, pagãos, a hereges e tantos  que levou à fogueira da Inquisição. No Brasil temos o caso clamoroso do Pe.Gabriel Malagrida (1689-1761) que missionou o norte do Brasil mas por razões políticas foi morto pela Inquisição em Lisboa por  “garrote, e depois de morto, seja seu corpo queimado e reduzido a pó e cinza, para que dele e de sua sepultura não haja memória alguma”.
Eis um exemplo de completa intolerância, hoje atualizada pelo Estado Islâmico (EI) que degola a quem não se converte ao islamismo fundamentalista praticado por ele.
Enfim, que é a tolerância hoje tão violada?
Há, fundamentalmente, dois tipos de tolerância, uma passiva e outra ativa.
A tolerância passiva representa a atitude de quem permite a coexistência com o outro não porque o deseje e veja algum valor nisso,  mas porque não o consegue evitar. Os diferentes se fazem, então,  indiferentes entre si.
A tolerância ativa consiste na atitude de quem positivamente convive com o outro porque tem respeito a ele e consegue ver suas  riquezas que sem o diferente jamais veria. Entrevê a possibilidades da partilha e da parceria e assim se enriquece em contato e na convivência com o outro.
Há um dado inegável: ninguém é igual ao outro, todos têm uma marca que diferencia. Por isso existe a biodiversidade, as milhões formas de vida. O mesmo e mais profundamente vale para o nível humano. Aqui as diferenças mostram a riqueza da única e mesma humanidade. Podemos ser humanos de muitas formas.
O ser humano deve ser tolerante como toda a realidade o é. A intolerância será sempre um desvio e uma patologia e assim deve ser considerada. Produz efeitos destrutivos por não acolher as diferenças.
A tolerância é fundamentalmente a virtude que subjaz à democracia. Esta só funciona quando houver tolerância com as diferenças partidárias, ideológicas ou outras, todas elas reconhecidas como tais. Junto com  tolerância está a vontade de buscar convergências através do debate e da disposição ao compromisso que constitui a forma civilizada e pacífica de equacionar conflitos e oposições. Esse é um ideal ainda  a ser buscado.
Leonardo Boff é articulista do JB on line e escreveu Convivência, Respeito e Tolerância, Vozes 2006.

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