Não é apenas que outras mulheres negras e que vivenciam o cotidiano das favelas e seus desafios, que se organizam e resistem nele, tivessem suas preocupações e interesses vocalizados por Marielle. A chegada à Câmara Municipal de alguém com quem compartilham características e posição social lhes permitiu ressignificar o espaço da política.
Por Flávia Biroli.
“Precisou uma mulher preta e favelada ser eleitapara abrirem as portas para a gente entrar”
As palavras destacadas acima foram ditas por Marilene Nunes, do Museu da Maré, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, no dia 13 de novembro de 2017. Foi durante o debate público “Direito da favela: a resistência ao racismo”, presidido pela vereadora Marielle Franco. Com suas palavras, Nunes retomava algo que havia sido dito, pouco antes, por Pâmela Gomes, do Setorial de Favelas do PSOL. Antes do mandato de Marielle, nunca tinha pisado na Câmara, disse Gomes, “agora venho aqui até para visitar mesmo, porque virou minha Casa também. Venho para disputar problemas. Chegou a barraqueira, é isso mesmo, a favelada”.
Naquele dia, ao abrir a sessão, a vereadora justificou seu atraso porque participava de manifestações de mulheres contra a PEC 181. Aprovada em Comissão Especial da Câmara dos Deputados poucos dias antes, por 18 votos a 1, essa PEC criminaliza o aborto em qualquer circunstância, inclusive nos casos que constituem exceção na legislação atual, como o de gestação decorrente de estupro. Esclarecido esse ponto, reforçava seu compromisso com o tema do debate, localizando seu mandato político: “nosso lugar de favelados é o nosso lugar de responsabilidade deste mandato”. E continuava:
“Quero dizer que esta é uma construção coletiva. O tripé do mandato, hoje, é formado pelo debate da favela, pelo debate da negritude e pelo debate de gênero. Esta é uma iniciativa muito impulsionada pelo coletivo do mandato, que é favelado, que é favelada e fala das lutas na favela. É fruto do seminário Direito à Favela, que ocorreu há alguns meses, lá no Museu da Maré, quando ocupamos tudo. Se ocuparmos tudo, temos que ocupar com o nosso corpo preto, com o nosso corpo favelado esta Câmara Municipal. Isso não é secundário.”
A escolha desse tripé e sua verbalização, em que se destaca a marcação do corpo preto, do corpo favelado, correspondem à reivindicação de um lugar político. Que lugar é esse e o que pode significar no contexto atual das disputas políticas? Este texto não responde, é claro, à complexidade envolvida nessas questões. Procuro, no entanto, indicar algumas pistas que entendo serem úteis para elaborá-las teórica e politicamente.
Mulher, negra e moradora da favela, Marielle Franco reunia marcadores da marginalidade política no Brasil. A seletividade de gênero, de raça e de classe do Estado brasileiro pode ser percebida nos obstáculos à participação, no histórico das disputas em torno de direitos e políticas públicas, nos padrões da violência de Estado. As falas que destaquei acima tratam dos vínculos de representação ativados e construídos dessa posição. Não é apenas que outras mulheres negras e que vivenciam o cotidiano das favelas e seus desafios, que se organizam e resistem nele, tivessem suas preocupações e interesses vocalizados por Marielle. A chegada à Câmara Municipal de alguém com quem compartilham características e posição social lhes permitiu ressignificar o espaço da política. Porque Marielle esteve ali, investida de um mandato, puderam falar politicamente de outro lugar, sem deixar de falar como moradoras da favela. E ao falar, reconheceram este como um espaço que também lhes pertence. O uso do termo “casa” por Pamela Gomes, grafado em letras maiúsculas na transcrição do debate disponível no site da Câmara, é significativo.
É preciso, no entanto, analisar com atenção o alcance da localização política de Marielle Franco. Essa localização ultrapassa a dimensão “descritiva” da representação, isto é, a dimensão da presença de alguém com características específicas e que, no sentido que a trato aqui, envolve a ativação de vínculos que se estabelecem porque há características comuns entre representante e representadas. Análises do mapa de votação das eleições municipais cariocas de 2016 mostram que Marielle obteve uma quantidade significativa de votos em bairros de classe média e alta da Zona Sul carioca (sobre isso, conferir o texto de Lucas Gelape e, neste blog, o de Luis Felipe Miguel), indicando que a dimensão das “ideias” representadas teve peso. Mas mesmo nesse caso, é preciso averiguar o que isso significa, em sociedade tão desigual.
Podemos pressupor que eleitoras e eleitores do “asfalto” da Zona Sul não enfrentam a brutalidade do Estado da mesma maneira que moradores e moradoras das favelas e da Maré especificamente, para tocar em um tema sensível na trajetória política de Marielle Franco. Um dos tripés do mandato, o gênero, por sua vez, corresponde a vivências distintas se consideramos a posição de classe e de raça das mulheres, que incide sobre seu acesso a ocupações, renda e tempo, seu usufruto de direitos constituídos. Mesmo assim, eleitoras e eleitores que não compartilhavam de sua posição social, identificaram-se no processo político-eleitoral com aquele corpo político e com as ideias às quais dava visibilidade. A reação ao assassinato político de Marielle alargou ainda mais essa identificação. Como disse Luciana Tatagiba em texto publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, os protestos amplificaram as vozes alimentadas na resistência nas favelas e o país reivindicou massivamente um corpo negro.
Para repetir palavras de Marielle que transcrevi acima, “isso não é secundário”. Há, entendo, evidências de que existe uma identificação ético-política que transborda posições e identidades geradas pelas hierarquias existentes na sociedade. Transborda, mas não despreza ou reduz seu potencial político. Pode ser um truísmo, mas acho importante deixar claro que isso ocorre no próprio processo político e não antes ou a despeito dele.
Mesmo que quem me lê concorde com o que foi dito até o momento, ainda seria preciso discutir em que medida essa identificação remete à constituição de um campo ético-político das lutas e resistências progressistas hoje. A reação conservadora e antidemocrática parece não ter qualquer dúvida. “Comunistas” e feministas, “esquerdistas” da periferia ou da Zona Sul, gays, lésbicas, transexuais, travestis são colocados em um mesmo campo. O macarthismo e a ofensiva “moral” estão articulados. Pode-se argumentar que se trata da construção instrumental do oponente político, eu mesma entendo que sim. Ao mesmo tempo, os processos de identificação que mencionei indicam alinhamentos concretos e potentes, que têm raízes históricas e se expressam na busca de alternativas políticas, na oposição e resistência ao fechamento da democracia e à escalada da violência política.
Marielle Franco mostrou o potencial de um compromisso que não perde foco por situar-se diversamente. Dou alguns exemplos. Mencionei há pouco o fato de ter participado das manifestações contra a PEC 181, que poderá criminalizar o aborto em qualquer circunstância. No debate de que falei, essa participação foi mencionada pela vereadora pouco antes de convidar para compor a mesa Ana Paula Oliveira, que assim qualificou: “companheira, mãe de Manguinhos, mãe do Jonathan e da Maria Eduarda, mãe desse lugar de moradora de favela”. Ana Paula atua juntamente com outras mães que perderam seus filhos assassinados pela polícia, reivindicando a punição dos assassinos e o reconhecimento dos crimes pelo Estado. Trata-se de ação coletiva protagonizada por mulheres moradoras de áreas periféricas das grandes cidades brasileiras, em sua maioria negras. Denunciam o caráter racista e de classe do Estado brasileiro e dão destaque ao direito à maternidade em suas reivindicações.
Durante seu mandato, Marielle apresentou projetos de lei em defesa do direito ao aborto1 e de garantias no exercício da maternidade e na proteção à infância2. Tenho argumentado (para quem tiver interesse, discuto isso longamente no capítulo 4 de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil, recém lançado pela Boitempo) que o tratamento conjunto desses temas é fundamental para que a agenda dos direitos reprodutivos faça frente à violência que atinge as mulheres em sociedades que, ao mesmo tempo, criminalizam o aborto e não apresentam condições adequadas para o exercício da maternidade. Nos dois casos, as mulheres negras são as mais atingidas. Nos dois casos, a democracia é restrita porque não existe compromisso político, expresso em leis e políticas públicas, com a cidadania das mulheres e com a proteção necessária às crianças.
Como feminista negra da favela, Marielle tinha clareza disso. Informada por sua própria experiência e por seus vínculos com moradoras e ativistas das favelas cariocas, sabia, também, que um dos gargalos para a construção de relações mais igualitárias de gênero, de classe e de raça está na ausência de equipamentos públicos de cuidado, como creches. E foi mais longe, dando visibilidade à situação de mulheres e homens que têm trabalhos noturnos e, por isso, dificuldades ainda maiores para obter cuidado acessível e qualificado para suas crianças.
Não tenho como tratar aqui de cada uma das proposições apresentadas em pouco mais de um ano de mandato de Marielle Franco, mais deixo registrados alguns de seus temas: transporte coletivo; combate à violência contra as mulheres; combate à homofobia; visibilidade da mulher negra; desenvolvimento cultural do funk tradicional carioca; habitação para famílias de baixa renda; visibilidade lésbica; cuidado na primeira infância; aborto legal e atenção humanizada às mulheres; regulamentação de manifestações culturais; encarceramento da juventude negra; proteção ao adolescente e medidas socioeducativas em meio aberto; pagamento dos salários dos servidores públicos. Trata-se de uma diversidade que tem foco, que tem eco nos processos de identificaçãode que falava.
Antecipando críticas, termino esclarecendo que não estou desprezando as divisões e diferenças que, sem dúvida, constituem o campo progressista. O que quis ressaltar é que o corpo político de Marielle é socialista, antirracista e feminista. E se expande. Expandiu-se no processo de construção de sua candidatura, em sua atuação como vereadora, nas reações à sua morte. Permitiu uma identificação que tem alcance amplo. Ela revela as formas atuais, ao mesmo tempo que colabora para a configuração, do campo ético-político que eu definiria como igualitário, humanitário, solidário, antifascista, de esquerda e democrático.
NOTAS1 Projeto de Lei n. 16/2017, que “institui o programa de atenção humanizada ao aborto legal e juridicamente autorizado no âmbito do município do Rio de Janeiro”.2 Projeto de Lei n. 17/2017, que “institui o espaço infantil noturno – atendimento à primeira infância – no âmbito do município do Rio de Janeiro”.
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“Há livros que são importantes para a discussão acadêmica e para os movimentos sociais, mas há outros que são mais do que importantes, são absolutamente essenciais, como é o caso deste.” – Céli Pinto
“As cinco dimensões analisadas nesta obra – divisão sexual do trabalho; cuidado e responsabilidades; família e maternidade; aborto, sexualidade e autonomia; feminismo e atuação política – permitem ver como, apesar de alterações significativas neste quadro, o lugar das mulheres permanece subalterno, interpelando os limites da democracia.” – Albertina de Oliveira Costa
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Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil (Boitempo, 2018), Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Escreve mensalmente para o Blog da Boitempo, às sextas.
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