A despeito de sua
imagem de sedutor e galã, o primeiro imperador do Brasil, Dom Pedro 1º,
não era tão garboso quanto ilustram as pinturas oficiais daquele tempo,
que estampam livros escolares e povoam o imaginário do brasileiro. Uma
inédita reconstituição facial feita em 3D a partir de fotografia do
crânio do monarca mostra um homem com o nariz com uma deformidade em
decorrência de uma suposta fratura ocorrida em vida, que não teria sido
tratada de maneira adequada e nunca descrita na literatura
especializada.
A reconstrução realista da face do imperador é
resultado de um projeto idealizado pelo advogado José Luís Lira,
professor da Universidade Estadual Vale do Aracaú, do Ceará. Ele
adquiriu os direitos sobre uma fotografia realizada em 2012, quando os
restos mortais do imperador foram exumados da cripta localizada no
bairro do Ipiranga, zona sul de São Paulo, para um estudo científico
realizado pela Universidade de São Paulo (USP). Devidamente autorizado
pela Casa Imperial do Brasil - cujos representantes, herdeiros de Dom
Pedro 1º, zelam por sua memória -, convidou o designer Cícero Moraes
para realizar o trabalho de reconstituição.
As imagens foram
encaminhadas ao perito legista Marcos Paulo Salles Machado, chefe do
Serviço de Antropologia Forense do Instituto Médico Legal (IML) do Rio
de Janeiro e ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia
Forense (ABRAF). Sem saber que se tratava do crânio de D. Pedro, ele
estimou a idade como sendo de um adulto jovem - o primeiro imperador do
Brasil morreu em 1834, pouco antes de completar 36 anos - de origem
europeia. E cravou que o mesmo havia sofrido uma fratura no nariz. "O
crânio dele tem uma deformação nos ossos nasais que sugere uma lesão,
fruto de ação contundente da esquerda para a direita. Ele pode ter
batido com o nariz e sofrido uma pequena fratura nessa região", disse o
perito, à BBC Brasil.
De acordo com o escritor e pesquisador Paulo Rezzutti, autor da biografia D. Pedro: a História Não Contada - o Homem Revelado por Cartas e Documentos Inéditos,
não há nenhum registro de que o monarca tenha quebrado o nariz em vida.
Mas quedas de cavalo eram comuns na vida atribulada do imperador. "Ele
teve uma queda feia em 1824. E, alguns anos depois, teve um acidente
ainda mais grave de carruagem na Rua do Lavradio, no Rio de Janeiro",
pontua o biógrafo.
Reconstrução
Lira
conta que tomou a iniciativa de conduzir a reconstrução facial do
imperador por admirar sua biografia, de "um liberal para sua época,
defensor do pensamento constitucional em detrimento ao absolutismo então
reinante".
Ele conta que desde 2015 vinha conversando com o
tetraneto de Pedro 1º, Bertrand de Orleans e Bragança, de quem obteve a
autorização para realizar o procedimento a partir de imagens coletadas
durante a exumação do imperador, em 2012. Lira, então, adquiriu uma
imagem realizada na época e contou com os trabalhos do designer Cicero
Moraes. "É uma alegria poder fazer com que todos os brasileiros conheçam
a verdadeira face do homem que proclamou a Independência do Brasil e
foi nosso primeiro imperador", afirmou Lira.
O processo de
reconstrução foi um pouco diferente do convencional, já que Moraes
contava com apenas uma imagem. "Entretanto, a superfície que sustenta o
crânio é reflexiva, então é como se tivéssemos duas imagens. Com duas
imagens podemos fazer triangulações tridimensionais e obter pontos
importantes do crânio", explica ele.
"O que fiz foi utilizar um
doador virtual, ou seja, um crânio tridimensional de outro indivíduo, e
adaptar a estrutura deste doador ao crânio de Dom Pedro I. Ao final do
processo consegui fazer um 'match' entre a foto e o modelo 3D."
O
designer avalia que o imperador "era um homem de aparência agradável".
Mas ressalta o "nariz assimétrico". "Essa assimetria é bastante atenuada
quando a captura da face é feita levemente pela lateral", sugere.
Gente como a gente
De
certa forma, a face realista de D. Pedro 1º pode corroborar mais ainda a
noção popular que ele era um homem muito mais próximo do povo do que da
nobreza.
Segundo seu biógrafo Paulo Rezzutti, é essa
característica popular que faz de D. Pedro um personagem tão simpático
ao imaginário brasileiro.
"Porque ele foi, como o caipira diz,
'gente como a gente, de bunda atrás e nariz na frente'", afirma. "D.
Pedro foi tão escrachado em tudo o que fez que não tem como deixar ao
menos de gostar de sua autenticidade. Ele foi criado nas ruas do Rio de
Janeiro, com o povo, gostava de música e de farra, como qualquer
adolescente até hoje. O problema é que ele foi mulherengo a vida toda e
isso deixou marcas profundas na forma como as pessoas passaram a vê-lo."
Pesquisadores
costumam concordar que o grande legado de D. Pedro 1º ao Brasil - além,
é claro, da própria independência - foi a Constituição de 1824, a
primeira do País.
"Nela, são vistos os ideais liberais de D.
Pedro 1º. E ela durou até a queda da monarquia, em 1889 - é a
Constituição mais longeva que o Brasil já teve", conta Rezzutti.
"A
Constituição de 1824 mostra, de forma explícita, o seu interesse pela
educação no Brasil, em que determinava que ela deveria ser dada para
todos, independente de cor, religião, credo ou posição social. A criação
dos cursos Jurídicos no Brasil, em 1827, foi obra de sua gestão como
imperador do Brasil."
"O maior legado de D. Pedro 1º para o Brasil foi a Constituição de 1824", concorda a historiadora Isabel Lustosa, autora de D. Pedro 1º - Um Herói Sem Nenhum Caráter.
"Apesar
de ter sido uma constituição outorgada, quer dizer, dada pelo imperador
à nação, depois dele ter dissolvido a Assembleia Constituinte em
novembro de 1823, adotar uma forma de governo constitucionalista em um
ambiente internacional dominado pela Santa Aliança foi uma atitude
revolucionária. Foi uma constitucional liberal e avançada para o tempo,
incluindo direitos e garantias individuais."
Orleans e Bragança, o tetraneto do imperador, é de
opinião semelhante. "D. Pedro 1º é o responsável pela nossa unidade
territorial - e também política, psicológica e social. Além da
Independência, também nos legou a Constituição de 1824, que não era
casuística como a atual Constituição Brasileira", diz ele.
Enquanto
fazia a imagem de D. Pedro, o designer Moraes pensava na proximidade
que um personagem de tal dimensão tem na vida do brasileiro. "É como um
amigo, um parente, alguém que conviveu com a gente em parte considerável
da vida", comenta, lembrando que imagens do imperador são mostradas na
escola e em produções da cultura pop.
Recentemente, Moraes também
reconstruiu em 3D o que se supõe ser a verdadeira face de São Valentim, o
santo padroeiro dos namorados.
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