Tuíte do general Villas Bôas excitou tropas e quem vive nas sombras da democracia. Com julgamento histórico, país testa capacidade de desmontar bomba relógio criada também por bem intencionados
São Paulo
Quando o comandante do Exército brasileiro escreve “repúdio à impunidade” e “respeito à Constituição” ao se referir a um dos julgamentos mais delicados do Brasil fica claro que o país não saiu de seu estado catatônico dos últimos anos. Uma expressão parece temperar a outra, mas ambas soaram completamente incômodas e inconvenientes para um dia realmente pesado, às vésperas de um juízo que pode levar um ex-presidente à prisão. “O Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais", tuitou o comandante General Villas Bôas, às 20h39, quando o Jornal Nacional, o principal telejornal brasileiro, ainda estava no ar.
A mensagem foi parar no final do noticiário, e fez milhões de brasileiros dormirem com uma pulga atrás da orelha nesta terça-feira. Os 11 ministros da Suprema Cortetambém. Eles podem até ter lido com mais parcimônia o recado do comandante, mas terão de lidar com a adrenalina excitada do resto da população que acompanha ansiosamente os passos do STF no julgamento do habeas corpus de Lula. Qualquer que seja o resultado, é óbvio como dois e dois são quatro que haverá mais rancor e raiva a obstruir a atmosfera do Brasil.
Combustível perigoso no país onde se assassinou a vereadora Marielle Franco há 21 dias, se atirou num ônibus da caravana de um ex-presidente que pode ser preso enquanto lidera pesquisas eleitorais, e onde um pai foi assassinado enquanto segurava o filho de 11 meses no colo, em meio a uma intervenção do próprio Exército por segurança no Rio de Janeiro. Villas Bôas já havia se mostrado descuidado com palavras em ambiente democrático quando cobrava garantias para os militares agirem no Rio “sem risco de uma nova Comissão da Verdade”, durante uma reunião de Conselho da República, em fevereiro.
Seu tuíte desta terça veio novamente como um passo de elefante na loja de cristais. Fez o microblog explodir com as reações de apoio ao comandante, inclusive com fãs sugerindo que podem pegar em armas para ajudar a caçar comunistas. Houve também as críticas diretas ao seu descuido. “Deixa o Exércitoe se candidata para poder falar de política ou então fica de boinha aí vai #ditaduranuncamais”, respondeu-lhe um civil. Foi chamado também de “golpista”, e até de Rubens Barrichello, por querer entrar no debate nacional tarde demais.
Em outros tempos, isso dava fuzilamento. Hoje, esse deboche sinaliza que o Brasil está em plena democracia, ainda que ela caminhe a passos de bêbado. Mas não tão a perigo a ponto de validar um golpe de Estado. Não há sinais de que haverá um levante militar nos moldes do que se instalou no Brasil quando o mundo estava em guerra fria e havia uma ação coordenada dos EUA com outros países da América Latina. Mas as palavras do comandante têm o poder de assanhar um grupo que detém o poder bélico, e outro mais perigoso, paramilitar, que atua nas sombras em nome da caça a comunistas, inimigo este que também não existe mais. A holografia criada pelas redes sociais é capaz de gerar os monstros mais perversos mesmo, que misturam passado e presente, algo péssimo para cabeças e governos fracos.
Se Villas Boas queria mesmo, em último caso, acalmar ânimos – como até alguns petistas leram nas entrelinhas de sua mensagem – logrou exatamente o contrário. Palavras têm poder, e na boca (ou nos dedos) de alguém que detém o poder bélico é um verdadeiro desastre.
Um dia antes do tuite do Comandante, a presidenta do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, também havia falado à nação, num texto lido e arrastado, mas com as palavras escolhidas a dedo, para chamar ao diálogo e à compreensão. Cármen Lúcia sabe que o país está intoxicado pelas redes sociais, que se tornaram dutos de bílis, e que esqueceu o exercício de dialogar ao vivo para dissolver tensões. Vai tudo no grito, na ameaça, na pressão, oculta ou escancarada, que derivam para a violência física ou institucional.
Mas diante de um país que vem ultrapassando seus próprios limites democráticos há alguns anos, inclusive com verborragia de quem deveria se manter discreto seja no Executivo ou no Judiciário, a verdade é que a frase do comandante do Exército quase não chega a surpreender. Há poucos dias um um ministro chegou a soltar um off para um jornalista sobre o risco de não haver eleições em outubro... tudo pela paz social.
É nesse clima que os ministros do Supremo entram para a votação que já se desenha histórica sobre o julgamento do habeas corpus de Lula. Quando a democracia brasileira vive de um dos seus momentos mais frágeis. Tudo em pleno ano eleitoral.
O atual Supremo Tribunal não é a Corte perfeita, e ainda que alguns de seus ministros estejam identificados com este ou aquele interesse, há nomes que sempre agiram com seriedade e clareza para imputar seus votos nos momentos mais importantes do país. São esses os que efetivamente vão determinar o peso da balança da Justiça e da nossa democracia nesta quarta. Onde todos têm um pouco de razão para defender ou atacar o pedido de habeas corpus, e num momento em que o STF ajusta limites que foram ultrapassados pela mesma Lava Jato, em nome do fim da elite corrupta impune.
Mas num país marcado pela irracionalidade, só boas intenções não bastam. É preciso reconhecer a bomba relógio que todos os bem intencionados, de esquerda e de direita, e de alto a baixo da sociedade, ajudaram a construir para não piorar o que já está péssimo. Aos trancos e barrancos, é preciso chamar o Brasil à sensatez, nos micros e nos macrocosmos, porque não é Lula quem está sendo julgado somente. É nossa postura e empatia pelo que realmente importa para evoluir enquanto país, aceitando derrotas mas vigilantes para não descambar para as soluções fáceis e ilusórias. O resultado da Corte será sem dúvida o enorme teste que nos coloca à prova para chegar ao outro lado da margem do rio, as eleições, que podem encerrar um dos ciclos mais nefastos que o país já enfrentou.
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