Num
país dividido em Casa Grande e Senzala, poucos governos ousaram elevar
salários e cobrar impostos dos ricos. Nenhum deles permaneceu de pé
Por Róber Iturriet Avila e Pedro Vellinho Corso Duval
As destituições presidenciais ocorridas em 1964 e 2016
possuem distinções em termos de método, instrumento e velocidade. Um
olhar mais cuidadoso, entretanto, é capaz de identificar nestes
epifenômenos causalidades nos interesses políticos dos respectivos
grupos sociais representados e contrários aos então presidentes. Este
breve texto, de forma simplificadora, busca quantificar e qualificar
algumas dessas causas através da variação real do salário mínimo, da incidência tributária e das políticas sociais distributivistas interrompidas ou restringidas.
No curto espaço de tempo da forma de governo presidencialista da gestão de João Goulart, houve a proposição das Reformas de Base.
Nelas, estavam incluídas as seguintes reformas: agrária, bancária,
fiscal, educacional, urbana e administrativa. Tais proposições
alterariam com profundidade o quadro de distribuição de renda no País.
A
reforma agrária previa a autorização de desapropriações, para que a
terra servisse a sua função social, ampliaria os direitos do trabalhador
rural e permitiria o fortalecimento sindical. Já a reforma bancária
tinha o intuito de ampliar a concessão de crédito. A reforma educacional
almejava a valorização da magistratura e a erradicação do
analfabetismo. A reforma urbana visava diminuir a especulação
imobiliária e o déficit habitacional.
A reforma fiscal,
entretanto, parcialmente implementada, possuía impactos redistributivos
relevantes. Além da ampliação da alíquota máxima de imposto para a faixa
de 65%, havia previsão de impostos sobre ganhos especulativos de
imóveis, implementação de tributos diferenciados de acordo com o setor
das empresas, estímulo à reinversão de lucros, etc. Aliada a esses
fatores houve uma valorização real do salário mínimo, em 18,76%. Esse
foi um dos fatores de instabilidade do governo Goulart, que encontrava
crescente resistência dos grupos econômicos dominantes (SOUZA, 2010;
MOREIRA, 2011). O governo subsequente, de Castelo Branco, reverteu
rapidamente as políticas implementadas por Goulart.
Na
destituição de 2016 é possível elencar semelhanças e diferenças.
Sabidamente, as gestões petistas tinham seu elo fundador nas políticas
sociais que visavam à redução das desigualdades do País. Seja através da
valorização real de 90,55% do salário mínimo, seja através de políticas
sociais como: minha casa minha vida, farmácia popular, cotas sociais e
étnicas nas universidades, bolsa permanência a estudantes carentes,
programas de agricultura familiar, bolsa família, etc.
Na área fiscal, o governo Lula tentou realizar uma reforma tributária
no seu primeiro ano de governo. Dentre as propostas, havia a ampliação
de impostos sobre doações, heranças e sobre a aquisições de imóveis.
Contudo, o projeto encontrou resistências no Congresso Nacional,
especificamente nos grupos empresariais e conservadores. (SALVADOR,
2014).
O
governo Dilma acenou para volta da tributação sobre os dividendos e
para o aumento das alíquotas do imposto sobre heranças e doações, além
de tentar instituir a taxação sobre grandes fortunas e retomar a CPMF.
Esses acenos nunca foram encaminhados ao Congresso Nacional, motivada
pela sinalização de que não seriam aprovados.
Ambos os governos
conviveram com a desaprovação dos grupos sociais de renda mais elevados,
não apenas por desgostarem das políticas, mas fundamentalmente porque
os ganhos sociais representam a redução relativa da apropriação de renda
das camadas superiores e, eventualmente, redução do lucro empresarial. O
Gráfico 1 (logo abaixo) explicita uma trajetória de elevação
da participação dos salários no PIB a partir de 2004 e,
consequentemente, uma queda do excedente operacional bruto sobre o
produto no mesmo período.
A
variação do salário mínimo tem relação direta com o aumento dos ganhos
sociais. O gráfico 2 indica a concomitância dos valores salariais
elevados e acentuados conflitos políticos. No governo de Castelo Branco,
posterior ao golpe, a variação real do salário foi negativa. Houve
queda de 36,03%. No governo de Michel Temer, a variação do salário
mínimo seguiu a regra previamente estabelecida, mas a reforma
trabalhista implementada rebaixa os ganhos dos trabalhadores, uma vez
que viabiliza uma jornada de trabalho menor do que 44 horas.
Adicionalmente, é uma clara precarização das relações de trabalho.
Cabe
destacar que ambas destituições tiveram aberto apoio de grupos
empresariais, dos grandes grupos midiáticos, das federações de bancos e
das agremiações ruralistas — em um termo, das elites. As políticas
regressivas adotadas nos governos sem a legitimidade das urnas, mas
apoiados pelas elites, demonstram a dificuldade desses grupos conviverem
com políticas distributivistas. Fenômeno mais intenso do que em países
desenvolvidos, os quais possuem, em sua maioria, políticas fiscais e sociais mais redistributivistas.
Além de mais conservadora, a elite brasileira parece ser mais
autoritária, dispensando a democracia em momentos que seus interesses
estão em jogo.
Gráfico 2 – Variação real do salário mínimo 1940-2018 e destituições de João Goulart e Dilma Roussef
Do
ponto de vista do método, é também possível identificar semelhanças em
meio às diferenças. Quando o retorno do capital é ameaçado, há uma
rápida articulação entre grupos empresariais, midiáticos e amplos
setores da classe média, que se mobilizam com a mesma narrativa. Dessa
forma, observa-se a técnica, bem-sucedida, de associar governos
moderados à esquerda radical, abrindo espaço à extemporânea retórica
anticomunista. O discurso anticorrupção se presta a conquistar corações e
mentes. Dessa maneira, nos termos de Santos (2017), tal método disfarça
“que as prioridades dos governos usurpadores não têm sido o combate a
corrupção, mas, isso sim, notável, a adoção de medidas estancando
políticas favoráveis aos destituídos”.
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Os
autores agradecem as contribuições de João Batista Santos Conceição,
Pedro Sofiati de Sá e Mário Lúcio Pedrosa, eximindo-os das posições aqui
firmadas
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REFERÊNCIAS
MOREIRA, Cássio da Silva. O projeto nação do governo João Goulart:
o Plano Trienal e as Reformas de Base (1961-1964). 2011. 406. Tese
(Doutorado em Economia). Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
SALVADOR, Evilasio. As implicações do sistema tributário nas desigualdades de renda. 1. Ed. Brasília, 2014.
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A Democracia Impedida: O Brasil no Século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2016.
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