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disse:
O que levaria um não fascista a votar em um candidato fascista? (Arte Revista CULT)
Nem só de fascistas se faz o bolsonarismo
Diante de uma crítica a aspectos fascistas das ideias e práticas de
Bolsonaro, um amigo (nem sei mais) reagiu indignado: “Nem todo eleitor
de Bolsonaro é fascista”. Na hora, a única coisa que me ocorreu foi
dizer que, sim, era bem possível que nem todo bolsonarista seja
fascista, mas cabia a ele explicar por que, não sendo tal, votava em um
candidato com muitas ideias nitidamente fascistas. O que levaria um não fascista a votar em um candidato fascista?
Refletindo um pouco mais, acho que o meu amigo expressou uma posição mais complexa do que eu consegui enxergar em um primeiro instante.
Claro que há eleitores que votam em Bolsonaro por convergência
ideológica com os pontos de vistas, que aqui estamos sintetizando e
simplificando no fascismo. No fundo, tratam-se de juízos sobre ditadura
e Estado de direito, homossexuais, violência policial, mulheres,
negros, índios, quilombolas e outras minorias políticas que são
absolutamente incompatíveis com premissas liberais, humanistas e/ou
democráticas sobre respeito, tolerância, igualdade, liberdades civis e
compaixão. Tendemos a fazer uma analogia com o fascismo e o nazismo por
tratar-se de dois episódios históricos em que houve adesão massiva (quer
dizer, popular) a ideias e práticas baseadas em intolerância,
desrespeito a minorias, afirmação da superioridade de uns sobre os
outros, supressão de direitos, garantias e liberdades, militarismo,
forte sentimento antipolítica e antissistema e vínculo forte da massa
popular ao líder carismático.
Ora, muitos bolsonaristas votam em Bolsonaro por causa da sua defesa
dessas ideias. Portanto, por afinidade de valores. E, neste caso, me incomoda menos Bolsonaro que o bolsonarismo. Bolsonaro é só o poste do antipetismo e dos ultraconservadores.
É ele, mas podia ser outro. Para o bolsonarismo tanto faz se o eleito
for Bolsonaro, Mourão, Moro ou Mourinho, desde que o PT seja surrado e a
agenda ultraconservadora, que chamamos de fascista por justificada
analogia, seja a vencedora.
Mas o que meu amigo quis dizer é que há também um grande número
eleitores de Bolsonaro que não compartilha de tais premissas (ou não as
compartilha plenamente) e que, não obstante, não tem a menor hesitação
sobre em quem votará este ano. E já no primeiro turno. Este mesmo amigo
não se conforma que as filhas sequer cogitem votar no seu candidato e
fica escandalizado com as “fake news” que elas compartilham dizendo que o deputado incentiva o estupro.
Nenhuma candidatura é monolítica
Como isso pode ser possível? Meu amigo tem uma resposta na ponta da língua, que ele considera definitiva, lacradora:
Se nem todo mundo que vota no PT é corrupto, nem todo mundo que vota em
Bolsonaro é fascista. O que ele está sugerindo é que as pessoas são
capazes de sopesar, na escolha de um candidato, entre as razões de voto e
as razões para não votar e, uma vez que decide que há razões
suficientes para votar, isola e ignora as razões para não votar. É
verdade que, por anos, o voto no PT na disputa presidencial veio de
muita gente que não apreciava a baixíssima convicção republicana do
partido, ou a sua paixão pelo clientelismo e pelo patrimonialismo. E
isso tudo antes mesmo de se tornar pública e notória a dimensão da sua
entrega à corrupção. Votaram no PT por causa das suas políticas públicas
e pelo seu alinhamento com princípios progressistas e democráticos, mas
também para evitar que prosperassem as alternativas que se apresentaram
na disputa eleitoral. Mas nem por isso tais eleitores relutantes do PT
foram às urnas para referendar os maus costumes dos petistas no poder,
para sufragar os enormes esquemas de clientelismo e corrupção que eles
geriam ou de que se beneficiavam. Como sugeri muitas vezes durante uma
década, tapava-se o nariz e se votava no PT.
O que está sugerido aqui é que você pode ser petista e isolar-se da
corrupção, assim como pode ser bolsonarista e isolar-se do fascismo.
Assim, na sua representação da política, o bolsonarista pode não ser
fascista, assim como o petista pode não ser corrupto, se votar no seu
candidato ignorando a dimensão dele que não aprova. A analogia é astuta e
não pensem que não funcione, retoricamente, para atenuar a consciência
moral do bolsonarista. Sim, ele sabe que Bolsonaro pensa e diz
(provavelmente, diz sem pensar, segundo ele) coisas fascistoides, mas ao
votar no deputado ele não precisa endossar tais ideias, uma vez que
esta não é a sua principal razão de voto. Vota em Bolsonaro porque ele é
antipetista e votaria sem hesitação no diabo que fosse para evitar uma
vitória do PT. É simples assim.
Falsas simetrias
A analogia com o voto no PT é sugestiva, mas é realmente sustentável?
Primeiro, quem votou no PT tinha, de fato, alguma agenda positiva para
escolher, mesmo quando não aprovava os seus maus costumes no atinente à
condução da coisa pública. E havia sobejas evidências de que o PT
entregava efetivamente alguma coisa substantiva à sociedade, como se viu
nas duas administrações de Lula e em parte da primeira administração de
Dilma Rousseff. Quem votou no PT pode fazer escolhas materiais e
consistentes por um projeto e uma agenda. Foi quem preferia as políticas
públicas do PT que o elegeu, uma eleição após outra, e não um
presumível sentimento antitucano, um discurso de ódio ao PSDB ou a louca
vontade de destruir o seu grande adversário de duas décadas de política
nacional. Quem vota em Bolsonaro, mas não compartilha as suas ideias
fascistas, por sua vez, não vota por qualquer razão material ou
substantiva, não está preferindo qualquer política pública construtiva e
que faça sentido. Aliás, fora as bravatas, o oportunismo do Posto
Ipiranga e a pauta moral fascista, em que consistiria a alternativa bolsonarista, em termos de política pública, para o país?
Nada. Absolutamente nada. Se você não é fascista, Bolsonaro nada tem
para lhe oferecer. Bolsonaro é um vazio político, um oco recoberto por
retórica e empacotado por promessas de ações ultraconservadoras.
Resta, então, que a pessoa o está escolhendo pelo “não”. Você não
quer B, C, D ou E. Quer simplesmente o Não-A. Bolsonaro é só o não-PT e a
única esperança eleitoral real de que o PT pode ser derrotado. O que
vem depois do “não”, não importa a este ponto. Se não for o PT, então
tem que ser melhor que o PT. O raciocínio é simples e é potencialmente
louco, mas é mais eficiente do que pode imaginar a nossa vã Lógica e, a
este ponto, inútil Filosofia.
Em segundo lugar, quem votou no PT não apenas tinha algo substantivo
para escolher, mesmo em face dos defeitos do partido, como também não
tinha conhecimento do nível de comprometimento do partido com a
corrupção. Quem vota em Bolsonaro, e não é ou não se acredita fascista,
não apenas não está escolhendo substância política alguma, como tem
pleno conhecimento de quem é Bolsonaro, do que ele pensa, de quem são as
pessoas com quem anda e que o apoiam. Não há segredo. Além disso,
Bolsonaro sequer tem experiência administrativa para mostrar, sequer tem
êxito legislativo ou político para colocar no seu portfólio, não tem
absolutamente nada, então, para despistar a sua falta de substância ou
para nos distrair da nitidez fascista das suas ideias. Tudo o que
Bolsonaro é são as suas ideias, a sua retórica e os traços da sua
personalidade. Quem disser que está buscando alguma coisa além disso,
estará mentindo (e na verdade isto é exatamente o que procura) ou está
alucinado, de tal maneira envenenado pela obsessão antipetista que não
se importa com valores ou com consequências.
O dilema faustiano
Mas, enfim, aí é que está o problema do meu amigo. Ele pode não ser
fascista ou não se achar fascista, mas está, faustianamente, endossando o
fascismo para conseguir saciar a sua obsessão antipetista. O preço é
muito alto – para ele, para o país, para as filhas que tanto ama -, mas
ele não se importa de pagar. E, pelo ânimo furioso com que tem se
comportado, depreende-se que mais ainda pagaria se necessário fosse,
desde que o PT não ganhe esta eleição.
Temos, então, um pai apaixonado por suas filhas que é capaz de eleger
um candidato que despreza mulheres, que será um obstáculo confesso na
reivindicação delas por igualdade e por respeito (tenham em mente o que o
candidato pensa sobre estupro), e que faz tudo isso por estar obcecado
pelo propósito de evitar a vitória do petismo, de tal modo que nada mais
importa. Nem entregar um país que responda mais adequadamente aos
interesses das suas filhas.
Se o meu amigo bolsonarista não fascista não considera no seu voto a
responsabilidade de entregar um mundo mais justo com e mais respeitoso
para as suas meninas, não se incomodará tampouco com o que acontecerá
com negros, homossexuais e outras minorias em um eventual governo de
Bolsonaro. Para você é aterrorizante a ideia de entregar o país a um
sujeito que defende a tortura como método policial, que sustenta que os
militares que torturaram e mataram quem desafiava o regime de 1964
deveriam ser recompensados e não punidos, que dedica um voto público no
plenário da Câmara dos Deputados ao primeiro militar reconhecido pela
Justiça brasileira como torturador durante a ditadura, que admite em
entrevista a uma rede de televisão que o seu livro de cabeceira foi
escrito pelo comandante do principal órgão de repressão política durante
os anos de chumbo? Bem, você não está sozinho. Apenas uma dessas
afirmações deveria ser capaz de liquidar uma candidatura na quase
totalidade do mundo civilizado.
Pois o meu amigo bolsonarista não fascista ojeriza mesmo ele tem é do
Partido dos Trabalhadores e se o preço para isso for eleger um sujeito
que sustente tais ideias monstruosas, ele não hesitará em pagá-lo. O meu
amigo não fascista não se importa com ideias, nem com as ideias do seu
candidato e em como ideias devem se materializar em comportamentos e em
políticas. Nem com o fato de que a malta bolsonarista que tomaria posse
com o seu eleito tornaria o Brasil ainda mais perigoso para minorias
(inclusive para as suas filhas), para quem defende direitos humanos e
até para a divergência política. Tudo isso é para ele “hipótese
subjetiva”; o que ele sabe com certeza é que o PT estragou o país e tem
que pagar por isso.
Meu amigo bolsonarista que jura não ser fascista está assinando um
contrato com Mefistófeles: desde que receba o que tanto deseja, a
derrota do PT na corrida presidencial de 2018, assinará qualquer
contrato não importa com qual contrapartida. Afinal, a recompensa seria
recebida imediatamente e desfrutada com enorme prazer. Quanto ao preço a
pagar, bem, isso se verá depois, diz Fausto, não vamos pensar nisso
agora.
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