Três semanas para interromper um funeral
– on 08/10/2018
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É possível evitar a grande ameaça. A condição é corrigir os três
erros grosseiros que levaram ao desastre de ontem e abrir caminho para
uma reinvenção da esquerda
Por Antonio Martins
1.
É nas grandes derrotas que se enxergam os problemas ocultados por
“sucessos” ilusórios; e que se abre caminho para o novo. As dimensões do
retrocesso de ontem, primeiro turno das eleições gerais, dificilmente
poderiam ser mais dramáticas. O circo de horrores que já é o Congresso
Nacional será piorado por uma bancada de extrema-direita. O antes
pequenino PSL, de Bolsonaro, passará de 7 para 51 deputados. Expoentes
da arrogância desvairada, como os irmãos Bolsonaro e a advogada Janaína
Paschoal, Kim Kataguiri e Alexandre Frota receberam enxurradas de votos,
enquanto Eduardo Suplicy, Dilma Rousseff e Lindberg Farias naufragaram.
Exceto no Nordeste, a boia de salvação que evitou uma catástrofe, o que
se chama até agora de “esquerda” não governará estado algum. O PCdoB e a
Rede, ficaram abaixo da cláusula de barreira e perderão acesso à TV e
recursos do Fundo Partidário. E no entanto, o pior não se deu. Depois de
ter perdido por um tris a chance de eleger-se presidente no primeiro turno, Jair Bolsonaro estava abatido e soturno
ontem à noite, ao gravar um pronunciamento a seus eleitores. Serão 21
dias de enorme tensão, mas derrotá-lo é possível, porque os resultados
de ontem são uma aberração, fruto de três erros grosseiros que é
possível corrigir. Reparar estes equívocos – na prática, com
determinação e em curtíssimo prazo – será tarefa dificílima. Mas é a
única alternativa e, se concretizada com sucesso, permitirá trocar um
funeral pelas chances de reinvenção da esquerda.
2.
A recusa do PT a uma frente antigolpe, fruto de um hegemonismo
encruado e pueril, foi, em ordem cronológica, o primeiro dos três erros
bizarros cometidos – e que é possível agora corrigir. Há seis meses,
quando o cenário eleitoral se conformava, o governo Temer era um farrapo
político. A agenda de retrocessos deixava claro o sentido da tomada do
poder por uma coalizão conservadora, em 2016. As pesquisas de opinião
mostravam que vasta maioria da opinião pública rechaçava pontos
essenciais da agenda imposta após a derrubada do governo legítimo – como
as privatizações, a contrarreforma trabalhista e a tentativa de
desmonte do sistema da Previdência. Os dois principais símbolos do poder
ilegítimo – o presidente e o Congresso – eram apoiados por menos de 10%
da população.
Propor, como decorrência, uma frente antigolpe teria enorme poder
simbólico e mobilizador. Permitiria ampliar a repolitização que se
esboçava, transformar a campanha eleitoral numa oportunidade para
convocar as ruas, colocar na defensiva os políticos conservadores e o
poder econômico neoliberal. Mas, como ocorre com todas as frentes,
implicava não ter certeza sobre seu comando. Lula seria o candidato
natural a disputar a presidência. Mas diante de seu impedimento, a
condição era incerta. Líderes históricos do PT, como o agora senador
Jacques Wagner, propuseram que o partido cedesse o lugar Ciro Gomes, que
somava consistência política e forte apelo eleitoral.
O medo de perder o protagonismo levou o PT a sabotar a
possibilidade. Ao longo dos meses seguintes a ideia de uma frente
antigolpe (que o PCdoB enunciou, mas da qual abriu mão rapidamente) foi
não apenas esquecida, mas ativamente sabotada. O comando petista
trabalhou com empenho para impedir que Ciro se articulasse com setores
do “centrão” e, em seguida, até mesmo para que ele tivesse apoio do PSB.
Esta ação tirou-lhe tempo de TV e palanque nos Estados. Cada manobra
era celebrada por parte dos petistas, nas redes sociais, como sinal de
sabedoria política. Os pretextos apresentados são risíveis. Ciro não
teria comparecido a São Bernardo do Campo, nos dias que antecederam a
prisão de Lula… como se as decisões políticas pudessem ser guiadas pelo
cumprimento das regras de boas maneiras. Foi apenas graças à resiliência
impressionante do candidato do PDT, ao longo da campanha, que a
sabotagem não permitiu a Bolsonaro liquidar a disputa presidencial já no
primeiro turno.
3.
O segundo erro grosseiro está inteiramente articulado com o anterior.
Para inviabilizar uma frente antigolpe, que teria dado à disputa
eleitoral feição totalmente distinta, o PT tentou reduzir o pleito a um
plebiscito sobre o legado de Lula. Ao fazê-lo, esqueceu-se do próprio
sentido de ser da esquerda e voltou o debate político para a exaltação
passado, ao invés de projetá-lo para as possibilidades do futuro.
A rememoração das conquistas do passado até fazia sentido, como ponto
de partida. Milhões de eleitores se emocionaram com as imagens que
comparavam a melhora das condições de vida, na era Lula, com as portas
de aço do comércio se fechando agora, sinal da recessão. Mas o que
poderia ter durado três dias, quiçá uma semana, prolongou-se por um
longo mês, como se o candidato nada tivesse, ele mesmo, a dizer.
A recusa a assumir propostas concretas corresponde a um velho cacoete
petista: obter, via eleições, um cheque em branco da população;
acomodar-se com as deformações do sistema institucional brasileiro, sem
jamais ousar propor uma Reforma Política; negociar a governabilidade do
presidente em parceria com as maiorias parlamentares que resultam destas
deformações; e realizar, nestas condições, as “reformas fracas” (para
usar expressão de André Singer) que tais acordos permitirem. Desta vez,
porém, o primeiro efeito foi reacender e intensificar o antipetismo.
Fernando Haddad era, de fato, apenas um poste? Ao votar no
candidato, a população estaria transferindo sua vontade política a um
partido que muitos veem – correta ou incorretamente, não importa – como
uma máquina de aparelhamento do Estado?
4.
Mas a pior consequência de uma campanha Haddad voltada ao passado e à
saudade foi dar a Jair Bolsonaro condições de vestir a máscara do
antissitema. Paralisado, o candidato do PT foi incapaz de desafiar a
casta política, suas ações e suas misérias. A direita tradicional,
umbilicalmente ligada a Temer, ao Congresso e ao golpe, evidentemente
não poderia fazê-lo. Todo o imenso espaço político da contestação a uma
“democracia” que empobrece e humilha a maior pare dos brasileiros caiu
no colo do ex-capitão.
O caráter grotesco desta apropriação basta para demonstrar a
estupidez da tática que prevaleceu entre a esquerda. Jair Bolsonaro
integra o partido que seguiu de modo mais canino as orientações de
Michel Temer. Seu programa expressa a adesão mais completa ao programa
das grandes corporações. Seus vínculos com a casta política e seus
métodos odiados são tão profundos que ele não se envergonha de
reconhecer que se beneficia de verba pública para receber
auxílio-moradia superior a R$ 4 mil, possuindo imóvel próprio, e de
alardear que usou dinheiro do contribuinte para “comer gente”. A este
personagem deprimente, permitiu-se que aparecesse com o rótulo de
“antissistema”…
Foi esta a chave para sua vitória no primeiro turno. Dentre os
que votaram em Bolsonaro, há uma enorme maioria de não-fascistas. São,
porém, eleitores muito descrentes das instituições, da possibilidade de
que estas assegurem os direitos estabelecidos na Constituição, e, mais
ainda, de que estabeleçam novas garantias e conquistas. São pessoas
ressentidas com uma elite supostamente bem-pensante, mas que cuida
apenas de seus próprios interesses e não se importa com a degradação
geral do país, desde que se mantenha acima da linha da barbárie. Este
imenso contingente de eleitores, que deu vitória a Trump nos Estados
Unidos e promoveu o Brexit no Reino Unido, foi, no Brasil, entregue ao
candidato fascista quando a esquerda abriu mão da chance de encarnar ela
própria a oposição ao sistema; voltou-se apenas ao passado; e se
recusou a oferecer, no futuro, uma perspectiva de direitos e igualdade.
5.
O caminho para evitar a conquista do aparato de Estado pelo fascismo,
e para abrir espaço a uma nova esquerda, começa por enfrentar este
último erro gravíssimo. Para que tenha alguma chance, Fernando Haddad
precisa produzir, o mais rápido possível, uma virada na campanha; um fato político novo que impeça Jair Bolsonaro de continuar ostentando a máscara antissistema.
Uma forma concretíssima de fazê-lo seria apresentar, nos próximos
dias ou horas, um conjunto de dez propostas muito concretas e claras,
que dialoguem com as dificuldades concretas vividas pela população após o
golpe e que seu adversário não possa responder – devido a seus
compromissos com o poder econômico, o programa neoliberal de seu guru
Paulo Guedes ou as máfias parlamentares.
O conjunto pode incluir, por exemplo: a) a retomada da política de
valorização real do salário mínimo e da bolsa-família, interrompido por
Temer; b) a revogação da Emenda Constitucional 95 e um plano de reforço
financeiro ao SUS e de reinício da expansão das universidades federais;
c) a renegociação da dívida das dezenas de milhões de brasileiros que se
encontram negativados no SPC, como proposto por Ciro Gomes; d) os
primeiros passos de uma Reforma Tributária, com a isenção de Imposto de
Renda para salários até cinco mínimos, taxação dos lucros, dividendos e
grandes fortunas; e) a revogação dos leilões de entrega do Pré-Sal a
petroleiras estrangeiras; f) o reinício das demarcações das terras
indígenas e quilombolas e a volta de critérios sérios para licenciamento
das obras de infraestrutura, como querem Marina Silva e os
ambientalistas; g) a revisão dos privilégios odiosos de que desfrutam os
parlamentares e juízes, tais como auxílio-moradia, as férias
longuíssimas, as diárias polpudas, o subsídio a Saúde e Educação
privadas; h) uma Reforma Agrária que implique, além da concessão de
lotes aos sem-terra, a revisão do modelo agrícola com ênfase no
cooperativismo, na policultura, no orgânico e na limitação do uso de
venenos.
Medidas como estas permitem reparar o segundo erro catastrófico
cometido até agora: o de voltar a campanha para o passado. Propostas de
maneira enfática no programa eleitoral, nas ruas, nas entrevistas à
imprensa e nos debates, estas medidas são a melhor fórmula para chamar
Bolsonaro ao debate político, do qual ele tenta a todo custo se esvair.
Reproduzidas de maneira popular, difundidas nas ruas e nas redes,
criarão um constrangimento ao ex-capitão. Seu programa de
ultraliberalismo o impede de concordar com elas; sua vinculação com os
setores mais fisiológicos da casta política, também. Mas como dizê-lo,
sem despir a máscara de antissistema que tanto o beneficia?
6.
A correção dos dois primeiros erros políticos permite tocar num
terceiro: a tendência do PT ao hegemonismo. Fernando Haddad precisaria
acenar desde já, e sem rodeios, para a composição de um governo plural.
Não significa “chamar o Meirelles”, ou ventilar um ministro da Fazenda
que corteje a aristocracia financeira. Isso não traria voto algum e
permitiria a Bolsonaro identificar seu oponente com o sistema – ou, ao
menos, neutralizar o desgaste que pode sofrer ao manter a seu lado um
banqueiro neoliberal como Paulo Guedes.
Trata-se, ao contrário, de acenar com uma espécie de “geringonça
brasileira”, de coalizão firme entre os partidos de esquerda e
centro-esquerda, capaz de indicar claramente um novo rumo. Implica
convidar Ciro Gomes para que, num ministério do Planejamento
reforçado (inclusive com o BNDES), articule o enorme esforço de reflexão
necessário para desenhar e começar a aplicar um novo projeto de
desenvolvimento. Significa convocar desde já gente como Guilherme Boulos e Ermínia Maricato,
e sugerir-lhes que construam um programa pelo Direito à Cidade, contra a
ditadura do automóvel e a especulação imobiliária. Equivale a reinserir
no governo as correntes ambientalistas que Marina Silva em certo momento representou. Inclui lançar acenos ao setor democrático que ainda resta no PSDB, convocando por exemplo Bresser Pereira para a formulação macroeconômica ou Paulo Sérgio Pinheiro (que
atuou nos governos FHC) para a política de Justiça e Direitos Humanos.
Envolve desenvolver políticas de Segurança Pública, retomando um esforço
que a esquerda abandonou e restabelecendo a colaboração com
formuladores como Luiz Eduardo Soares ou Ibis Pereira.
7.
Compromissos claros com propostas de futuro. Abertura para um governo
compartilhado com outras forças democráticas. Uma postura assim criaria
um conjunto de fatos novos na eleição. Permitiria retomar as ruas,
acenando não apenas aos que já apoiam Haddad, mas aos que se mobilizaram
por Ciro, Boulos e Marina. Dialogaria, em especial, com os movimentos
(os feminismos, o antirracismo, os sindicatos, o ambientalismo e tantos
outros) e coletivos que, agindo autonomamente, tornaram possível, por
exemplo, as gigantescas manifestações #elenão, em todo o país. Mudaria o
cenário de uma eleição até agora fúnebre. Seria suficiente para a
vitória? É impossível assegurar – mas certamente prepararia e
vertebraria a resistência, em caso de vitória de Bolsonaro.
Seria uma ruptura nítida com o que o petismo significou até agora –
em especial em sua fase governista. Abriria caminho para uma renovação
da esquerda. É algo possível – como mostra, por exemplo, a transformação
que Jeremy Corbyn lidera, há dois anos, no Partido Trabalhista inglês.
Fernando Haddad estará à altura de algo semelhante? Ou sucumbirá, sem nada criar, ao destino que hoje parece o mais provável?
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