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quinta-feira, 29 de setembro de 2016
quarta-feira, 28 de setembro de 2016
O Brasil no jogo de tabuleiro mundial do petróleo, por Marco Aurélio Cabral Pinto
A Petrobras se preparou para implementar ousado projeto de
expansão da produção de petróleo, no qual as exigências de conteúdo
nacional levariam à formação de nova geração de empreendedores
industriais brasileiros. O projeto, contudo, foi negado por ação de
interesses norte-americanos e da elite financeira brasileira
Conteúdo especial do projeto do Brasil Debate e SindipetroNF Diálogo Petroleiro
A aritmética do petróleo é bem simples e fácil de entender. Em 1995, o
Brasil estava fora do clube dos grandes produtores. A Petrobras era
estritamente empresa com investimentos em P&D em águas profundas.
Uma espécie de NASA brasileira, com aumento histórico de reservas
proporcional à profundidade alcançada nas explorações off-shore.
Porque a tecnologia, majoritariamente nacional, avança gradualmente, o
ritmo de incremento na produção não vinha sendo historicamente
explosivo. Por isso, a empresa (e o país) não participavam, nos anos
1990, dos jogos de poder do topo do sistema mundo.
O objetivo do presente artigo é rever muito brevemente as estratégias
adotadas pelos países que protagonizam os jogos de poder sobre o
tabuleiro do petróleo e avaliar as virtudes e os perigos da inserção
brasileira desconectada de um projeto para o país.
1.Quanto às reservas de hidrocarbonetos
A descoberta de petróleo no pré-sal foi anunciada em 2006. Desde
então, as reservas estimadas variam entre 50 e 100 bilhões de barris, o
que situa o Brasil entre os 10 maiores em reservas. Na Tabela 1
encontram-se dados sobre aumentos de reservas por país entre os últimos
vinte anos (1995-2015).
O crescimento de reservas no Brasil nos últimos 20 nos foi sem
precedentes, bastante acima de Venezuela (Bacia do Orinoco), Cazaquistão
e Angola, que aproximadamente quadruplicaram o patrimônio físico no
período. O Brasil multiplicou a riqueza em “ouro negro” por cerca de 12
vezes em vinte anos.
Enquanto o aumento no consumo próprio significa maior vigor
industrial, indica igualmente evolução no bem-estar social, na forma de
consumo mais intensivo de energia. Portanto, o crescimento no consumo
próprio de hidrocarbonetos é totalmente compatível com projeto de
universalização no consumo com inovação (resíduos e poluentes etc.).
Se o crescimento no consumo de hidrocarbonetos pelo Brasil for
gradual, ainda que possa ser acelerado, torna-se viável a formação de
nova geração de empreendedores industriais-tecnológicos no país com
competências para atender ao esforço de aumento na oferta.
O aumento acelerado nas exportações, ao contrário, imporá ao país a
necessidade de importação de sistemas, máquinas e equipamentos, o que
diminuirá os excedentes líquidos exportados. Ao mesmo tempo em que
inibirá a formação de burguesia industrial-tecnológica nacional, o
aumento de importância dos garimpeiros estrangeiros na formação do pacto
político brasileiro tenderá a aumentar com o tamanho da produção.
Neste sentido, somando-se aumento mais que proporcional da presença
chinesa no Brasil nos últimos 10 anos, é possível antecipar-se longo
período de instabilidade política. Esta instabilidade tem como causa
aumento esperado na rivalidade entre os EUA e a China no tabuleiro
internacional. Nesta perspectiva, o Golpe de 2016 apenas reflete
historicamente uma reação norte-americana a um projeto de país que viu
na China e na Rússia aliados na geopolítica internacional do petróleo.
Por estas razões, cada país apresenta estratégia distinta quanto a relação entre reservas e produção. Cumpre-se conhecê-las.
2.Quanto ao ritmo de produção (consumo próprio e exportações)
Os EUA são os principais consumidores (21 MM b/d) e fazem uso de
expressivas reservas (55 Bi barris 2015) para atender à demanda. Apesar
de elevado volume de produção (cerca de 12,7 MM b/d), os EUA importam
quase 40% das necessidades (cerca de 8 MM b/d).
As reservas no território norte-americano durariam somente oito anos
se cortado o suprimento externo, já incluso incremento de 20 bilhões de
barris disponíveis na camada de Xisto. Se consideradas as reservas do
Canadá, as reservas estratégicas norte-americanas durariam cerca de 30
anos sem qualquer suprimento externo.
A importação maciça de óleo cru, contudo, é complementada mediante
importações de derivados (refino16 MM b/d). Em síntese, para os EUA, é
crucial a manutenção de influência política sobre os territórios que lhe
garantem fornecimento, ainda que as flutuações de preços alterem a
pulsação, o ritmo de acumulação das firmas industriais-petrolíferas
norte-americanas. Perdas de curto prazo são mais que compensadas pelos
ganhos de longo prazo.
A segurança político-militar norte-americana mobilizada no Oriente
Médio faz com que o petróleo na região tenha custos ocultos acrescidos.
Portanto, considerando-se a influência norte-americana desde a
proclamação da República brasileira, pode-se concluir que as reservas no
Atlântico Sul encontram-se entre as mais seguras (e mais baratas) para
os “irmãos do norte”.
A China seguiu, até o presente momento, estratégia de busca de
autossuficiência. Apesar de detentora de reservas comparativamente
elevadas (cerca de 20 bilhões de barris), o elevado crescimento no
consumo próprio (1,8x entre 2005/15) tem mobilizado os chineses a
buscarem fontes de suprimento no exterior, o que coloca o Brasil como
uma das poucas áreas de expansão com perspectivas de longo prazo.
Em 2015, a produção, o refino e o consumo atingiram patamar de cerca
de 12 milhões de b/d na China. No entanto, a estratégia de
autossuficiência não poderá ser mantida durante muito tempo face ao
esgotamento de reservas próprias, esperadas para antes de meados do
século.
A Rússia dispõe de reservas de cerca de 100 bilhões de barris, o que
confere ao vizinho chinês recursos mais que suficientes para barganha de
alianças de longo prazo na Ásia. Tradicionalmente supridora de energia
para a Europa, a Rússia tem sofrido pressões e embargos no mercado
europeu, o que também motiva alinhamento com a China.
A Rússia possui parque de refino (~5,8 MM b/d) inferior à produção
(~11,0 MM b/d), contudo maior que o consumo (~ 3,1 MM b/d). A Rússia
recebe hidrocarbonetos do Cazaquistão em condições historicamente
favoráveis e adiciona valor industrial com a finalidade de exportação.
Complementar à Rússia, o Cazaquistão possui reservas relativamente
modestas, sendo que boa parte foi descoberta nos últimos 10 anos (5 para
30 bilhões de barris). A produção alcançou em 2015 cerca de 1,7 milhão
de b/d, porém com consumo dez vezes menor. Ou seja, com população de
cerca de 17 milhões de habitantes, metade dos quais de origem eslava, e
com um “presidente vitalício” apoiado por Moscou, na prática o
Cazaquistão é sócio minerador na cadeia produtiva de combustíveis e
derivados russos.
A Venezuela está entre os países com maior aumento de reservas nos
últimos 10 anos, com as descobertas na Bacia do Orinoco (80 para 300
bilhões de barris). A produção (2,7 MM b/d) encontra-se em patamar
bastante superior ao consumo (0,68 MM b/d), o que mostra que a Venezuela
desempenha, frente aos EUA, papel comparável ao do Cazaquistão frente à
Rússia. Ambos são funcionalmente supridores das necessidades dos
dominadores externos.
3.Quanto ao futuro do Brasil
A urgência na extração de riqueza do pré-sal não é apenas da
sociedade brasileira, mas também dos fabricantes internacionais e dos
países importadores de petróleo: EUA, China, UE e Japão. Os dois
últimos, praticamente sem produção e diante de dificuldades para
crescer, não disputam espaços apertados no tabuleiro do petróleo
internacional.
Desde 2011, os preços em dólares do barril de petróleo têm caído
dramaticamente, o que não contribui como incentivo para aumentos na
produção. A única exceção tem sido os EUA, que investem pesadamente em
ampliação da produção nos últimos cinco anos. Entende-se que os EUA
antecipam novo ciclo de aumento nos preços de óleo e derivados, fruto
possivelmente de conflitos militares antecipados no Oriente Médio para o
próximo ciclo político (2017-2021).
Não obstante quase todos os países, com exceção dos EUA, terem adiado
projetos de expansão da produção desde 2011, a Petrobras brasileira se
preparou para a implementação de ousado projeto de expansão da produção,
no qual as exigências de conteúdo nacional (SETE Brasil etc.) levariam à
formação de nova geração de empreendedores industriais brasileiros.
Mesmo na contramão dos “mercados”, que indicam excesso de oferta de
petróleo após 2008, o Brasil apostou fichas junto com os EUA no aumento
dos preços futuros. Caso implementado, o projeto brasileiro permitiria
ao país inserção superior na cadeia produtiva do “ouro negro”.
O projeto dos brasileiros foi, contudo, negado pela ação coordenada
entre interesses norte-americanos e um grupo de representantes políticos
da estreita elite financeira brasileira, conforme a história pouco a
pouco se incumbe de mostrar.
Marco Aurélio Cabral Pinto - É professor da Escola de
Engenharia da Universidade Federal Fluminense, mestre em administração
de empresas pelo COPPEAD/UFRJ, doutor em economia pelo IE/UFRJ.
Engenheiro no BNDES e Conselheiro na central sindical CNTU
sexta-feira, 23 de setembro de 2016
Big Data: O império do Grupo Globo em paraísos fiscais, por Patrícia Faerman
O GGN revela, com exclusividade, os dados da família Marinho e
de offshores da Rede Globo em Bahamas, peças-chave da negociata pelos
direitos de transmissão da Copa de 2002
Jornal GGN - Novas revelações de paraísos fiscais
foram divulgadas em mais uma série do Consórcio Internacional de
Jornalistas Investigativos (ICIJ). O jornal alemão Süddeutsche Zeitung
teve acesso a 1,3 milhão de documentos sobre mais de 175 mil offshores
entre 1990 a 2016. Apesar de receberem destaques casos relacionados a
políticos de diversos países, o GGN revela, agora, que no Brasil os dados do Grupo Globo também integram os mais de 38 gigabytes de empresas.
A publicação alemã dá sequência às investigações com base em Big
Data mundo afora, e compartilhou o material recebido com o consórcio
internacional, incluindo diários da Europa, América do Sul, Ásia e
África.
Até o momento foram reveladas holdings e empresas envolvendo o
presidente da Argentina, Maurício Macri, o secretário do interior do
Reino Unido, Amber Rudd, o filho do ex-ditador Augusto Pinochet, Marco
Antonio Pinochet, o filho do presidente da Nigéria, Sani Abacha, a
ex-comissária da União Europeia Neelie Kroes, o ex-ministro do Exterior
do Qatar, Sheikh Hamad, entre outros.
Histórico de dados restritos no Brasil
No Brasil, os jornalistas que integram a entidade que se tornou
mundialmente conhecida após a revelação do SwissLeaks e Panamá Papers
são Fernando Rodrigues, do Uol, Angelina Nunes, de O Globo, Marcelo
Soares, da Folha de S. Paulo, e Claudio Tognolli.
Em fevereiro de 2015, o consórcio restringia a apenas Fernando
Rodrigues como o único da imprensa brasileira a ter acesso às contas
secretas do HSBC na Suíça, no Swiss Leaks. Á época, o GGN foi o primeiro a alertar para o risco
da lista de mais de 100 mil correntistas ficarem sob o controle de um
único jornalista, que poderia divulgar somente as informações que
interessassem a ele ou ao jornal que representa, o Uol, do Grupo Folha.
A denúncia do GGN se espalhou em blogs e mídia alternativa, gerando uma grande pressão
por parte da imprensa brasileira de outros repórteres para terem acesso
aos dados. A iniciativa fez com que o ICIJ liberasse a grande base de
dados também ao jornal O Globo. A partir daí, o resultado foram revelações
de investigados na Lava Jato, ex-diretores do Metrô durante o contrato
suspeito com a Alstom, investigados da Máfia do INSS, envolvidos no
mensalão petista e tucano, como Paulo Roberto Grossi, entre outros,
estavam na mira das contas suspeitas do Swiss Leaks.
Também a partir dessas novas publicações, o GGN conseguiu cruzar informações para revelar
que além de o PSDB ter sido o maior beneficiado dos doadores para
campanhas eleitorais com contas secretas no HSBC suíço, em 2010, o
senador Aécio Neves foi também o candidato à presidência que mais
recebeu.
Na sequência dos dados suíços, foi a vez do Panamá Papers ser
divulgado pelo Consórcio em abril de 2016. Assim como no Bahamas, o
alemão Süddeutsche Zeitung foi o primeiro a ter acesso ao Big Data, que
ia além: trazia todas as contas, transações e contratos de offshores
ligadas à panamenha Mossack Fonseca, conhecida por ser uma grande
lavadora de dinheiro pelo mundo. No Brasil, desdobramentos deste dados,
que já estavam ao acesso não só de Rodrigues, como também do Estadão e
da emissora Rede TV!, revelaram ser clientes da Mossack políticos
principalmente do PMDB, mas também do PSDB, PDT, PP, PDT, PSB, PTB e
PSD.
Além disso, a TV Globo foi mencionada diversas vezes em
investigação de lavagem de dinheiro do banco De Nederlandsche, com
transações financeiras irregulares em paraísos fiscais, supostamente
para pagar os direitos de transmissão da Copa Libertadores. Também foi
arrolado nessa nova sequência de dados nomes como o ex-ministro do STF,
Joaquim Barbosa, e outros investigados da Lava Jato.
Apesar de o Bahamas Leaks, como está sendo chamada essa mais
recente e inédita base de dados, envolver diversos brasileiros, os
jornais acima mencionados novamente não deram destaque a um dos milhões
de dados que deve mais interessar ao Brasil. Assim como o fez nos
primeiros meses de 2015, o GGN cumpre este papel.
Cabe destacar que apesar de expor contas secretas, empresas
intermediárias e offshores, o Bahamas Leaks não traz e-mails ou
contratos relacionados a essas empresas, e tampouco indica quem são os
seus beneficiários finais. Também é necessário ressaltar que obter ou
manter uma conta em paraíso fiscal não é crime. Por outro lado, as
conexões dessas contas com outras empresas possivelmente laranjas, ou
grandes transações com a remessa dos valores a esses paraísos podem
motivar investigações sobre a existência de corrupção, evasão de divisas
ou prática de lavagem de dinheiro.
Conexões da Globo com offshores no Panamá e Bahamas
A proposta da vez do ICIJ é publicar todos os nomes de pessoas e
empresas envolvidas num banco de dados online, de livre acesso, onde é
possível pesquisar por nomes, pela fonte de dados ou pelo país de
jurisdição. Apenas relacionado ao Grupo Globo, o GGN
encontrou algumas constatações. A primeira, o registro de que o grupo
possui contas offshores não apenas no Panamá, como também em Bahamas.
Isso porque o Globo Overseas LTD foi registrado também no país
caribenho, com a intermediação do escritório Ixaza, Gonzalez-Ruiz &
Aleman. Incorporado em janeiro de 1999, os registros do Bahamas Leaks
detectam que a companhia do grupo Globo foi desligada no dia 31 de
agosto de 2002.
Para além dessas poucas informações que o ICIJ traz, verificamos
que a data coincide com o período em que a empresa da Globo na Holanda,
Globo Overseas, junto à TV Globo comprou da ISMM os direitos de
transmissão da Copa de 2002 no Brasil, em oito parcelas, em junho de
1988. Também "coincidentemente", o último desses pagamentos venceria em
2002, anos em que a empresa foi desligada no paraíso fiscal de Bahamas.
O caso do repasse desses direitos da ISMM à Globo, envolvendo ainda
a Empire Investment Group e a outra empresa criada pelo Grupo Globo
para aquirir essa negociação, a GEE Ltda, traz as suspeitas de que as
empresas foram criadas de fachada em paraísos fiscais para obter os
direitos absolutos de transmissão daquela Copa, fugindo dos impostos,
produzindo uma fraude fiscal que somava R$ 615 milhões à época, o que
hoje representaria mais de R$ 1 bilhão.
Os documentos que comprovam essa fraude foram divulgados ainda em 2014, pelo blogueiro Miguel do Rosário.
Na reportagem, é revelada a inclusão de 11 empresas com ligação direta
ao Grupo Globo para obter aqueles direitos: Empire, GEE Eventos,
Globinter, Globopar, Globo Overseas, Globo Radio, ISMM, Globosal, Porto
Esperança, Power Company e a TV Globo - cada uma com jurisdição em um
país, desde o próprio Brasil, até Holanda, Uruguai e os paraísos fiscais
das Antilhas Holandesas, Ilhas Virgens, Ilhas Cayman.
Voltando ao caso específico de Bahamas, além da já comprovada
existência de empresas de fachada do Grupo Globo para supostamente
adquirir direitos de transmissão de jogos, a Globo Overseas aparece
intermediada pelo escritório Icaza, Gonzalez, Ruiz & Aleman - o
mesmo que nos Panamá Papers trouxe a conexão da Globo com a Mossack
Fonseca.
Se nas offshores panamenhas, o escritório surgia como um dos
fundadores da Chibcha Investment Corporation, que tem os irmãos Marinho
como sócios, além de também ter criado a Blainville International Inc,
controladora da famosa Agropecuária Veine, que aparece como uma das
donas do helicóptero Augusta 109, que servia à família Marinho, o mesmo
escritório tem relação com outras 1588 empresas em Bahamas.
Ainda, como já divulgado nos dados da Mossack, a Agropecuária Veine
possui o consórcio Veine-Santa Amália, com a empresa Santa Amália, que
tem o mesmo endereço que a Brasil SA Importação e Exportação, empresa
supostamente usada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso para
enviar dinheiro à ex-amante Miriam Dutra.
Dentro da lista de milhares de offshores no Panamá divulgada pelo
ICIJ, também surge a GEE Capital LTD., que possivelmente é um dos braços
da GEE Ltda, criada no Brasil também para a obtenção dos direitos de
transmissão da Copa de 2002. Apesar de a GEE Ltda ser brasileira, a GEE
Ltda tem jurisdição panamenha e foi criada em janeiro de 2000, ano que
também coincide com as negociações, sendo inativada em novembro do ano
seguinte. A empresa brasileira também é fechada no mesmo período - o que
permitiu a detenção exclusiva dos direitos à Rede Globo.
Ainda sem comprovação de que a GEE Capital LTD tem relação com a
GEE Ltda, ela aparece registrada nas Ilhas Virgens Britânicas, assim
como a Empire, e com intermediação da Mossack Fonseca:
Por fim, na lista do Grupo Globo no Bahamas Leaks também
verifica-se o nome do próprio José Roberto Marinho, surgindo como
presidente, vice-presidente, tesoureiro e secretário da empresa New
World Real State, que assim como outras oito mil empresas no país
caribenho tem a intermediação da Trident Corporate Services (Bah) Ltda.
Curiosamente, entre essas milhares, a Trident Corporate também
criou a Canary Global LTD, offshore que aparece como dono Paulo Daudt
Marinho, filho de José Roberto Marinho:
Confira, abaixo, algumas relações da Globo Overseas no sistema da ICIJ:
Existe quarto poder no Brasil, e se chama Ministério Público.
Sem freio e contrapeso, instituição acumula instrumentos de poder que vão além do previsto na Constituição de 88
Jornal GGN – Nas ciências políticas discute-se muito a importância dos mecanismos de accountability para fortalecer o grau de auto responsabilidade de pessoas que ocupam cargos públicos, eleitos ou não. Grosso modo, accountability são estruturas de “vigilância” sobre órgãos e agentes públicos. Assim, quanto maior o grau de accountability,
que também pode ser traduzido por prestação de contas à sociedade,
menor o risco de desvios de conduta de servidores públicos, sejam de
presidentes da república a fiscais da previdência.
No Brasil os
principais órgãos de vigilância são os Ministérios Públicos estaduais e
federal que, basicamente, fiscalizam a lei e promovem a acusação
criminal. Ainda em teoria, para o perfeito equilíbrio dos poderes
democráticos, haveria a necessidade dos membros dos ministérios públicos
prestarem contas para outro poder. Porém, formalmente, não existem
regras claramente estabelecidas no país sobre o tema, o que traz um
importante problema do ponto de vista democrático: quem vigiará os
vigilantes?
Um dos principais estudiosos desse tema hoje no
Brasil, ao lado dos professores da USP, Maria Tereza Sadek e Rogério
Arantes, é o cientista político Fábio Kerche, hoje pesquisador da
Fundação Casa Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, que está atualmente nos
Estados Unidos concluindo pós-doutorado sobre o papel do Ministério
Público na política brasileira.
Em entrevista por Skype para o
programa “Na sala de visitas com Luis Nassif”, Kerche levantou
importantes características do Ministério Público brasileiro que o torna
único em relação a todos os modelos já implantados nas demais
democracias.
Nosso
MP é altamente independente, o que até certo ponto pode ser considerado
positivo, evitando, por exemplo, que um processo contra um político
sofra retaliação antes mesmo e ser instaurado. Por outro lado, ressalta
Kerche, “a desvantagem do modelo é que a sociedade, como um todo, tem
menos instrumentos de controle e de acompanhamento de fiscalização da
ação desses atores”.
O pesquisador lembra que James Medison, um
dos fundadores da democracia norte-americana já dizia que nenhum homem é
anjo, se assim fosse, não precisariam de governantes. “Ou seja, todo
poder público precisa de controle. Quando um promotor faz concurso [e se
torna membro do MP] não ganha asas, ele continua sendo um homem,
precisa prestar contas e ser passível de responsabilização dos seus
atos. Isso é próprio da essência da democracia”.
Comparação
Nos
Estados Unidos, por exemplo, há dois modelos básicos para a carreira de
promotor. Um é a dos chamados district attorney (D.A), promotores
locais que são eleitos pela população em 45 dos 50 estados daquele país.
“Ou seja, ele faz campanha eleitoral, presta contas a cada dois anos”.
No segundo modelo, o promotor federal é indicado pelo próprio presidente
da república. Nesse cargo o servidor também faz a defesa do governo e
pode ser a qualquer momento demitido pelo presidente.
Mas não pense que nos Estados Unidos o chefe de estado está livre de
sofrer investigação do MP. Kerche lembra que, no caso Bill Clinton, o
Congresso indicou um promotor independente do governo para julgar o
então presidente no escândalo envolvendo a estagiária Monica Lewinsky.
Segundo
o professor, na maioria dos países democráticos, é comum o Ministério
Público ser ligado ao poder judiciário. “Se não formalmente, pelo menos
na prática, e o chefe dessa instituição responde ao Ministro da Justiça,
portanto ao governo”.
Na Itália, porém, o formato foge também à regra, sendo um pouco mais
complexo do que o brasileiro. Lá, uma pessoa pode iniciar a carreira
como promotor de justiça e prosseguir como juiz. Esse mecanismo
propiciou, inclusive, grave distorção na famosa Operação Mãos Limpas –
utilizada aqui no Brasil como inspiração à Lava Jato –, onde alguns
procuradores que entraram com a ação, tempos depois, se tornaram juízes e
prosseguiram julgando o caso. Atualmente essa manobra não é mais
permitida naquele país, ou seja, juízes não podem receber casos que,
quando promotores, ajudaram a promover.
FHC fez certo, Lula e Dilma não
Até
1988 o formato do Ministério Público brasileiro era semelhante ao
norte-americano. Ou seja, o procurador-geral da República, chefe do
órgão, era diretamente indicando e prestava contas ao Executivo. Mas a
nova Constituição federal estabeleceu mecanismos fortalecendo o MP, o
que fazia sentindo, segundo Kerche, pois a instituição passava a ganhar
importantes responsabilidades na manutenção dos direitos sociais
estabelecidos na Carta.
Os instrumentos que a Constituição de 88
concedeu ao Ministério Púbico foram: poder de provocar ação civil, ação
penal, inquérito civil, Termo de Ajuste de Conduta (TAC) e autonomia
institucional, não só em relação a outras instituições, mas também
internamente.
Entretanto, a escolha do presidente da instituição,
o chamado procurador-geral da república, pode, segundo a Constituição,
ser realizada pelo presidente da república e validada pelo Congresso.
Essa “eleição” dá certa garantia de poder para o Executivo e foi assim
até a gestão Fernando Henrique Cardoso.
Nos
governos Lula e Dilma, porém ocorreu uma inversão no formato de escolha
do procurador-geral, aumentando ainda mais a autonomia do órgão. Os
presidentes petistas aceitaram informalmente uma lista tríplice votada
pelos próprios membros do Ministério Público Federal, indicando o mais
votado. Por isso, “quando Dilma fala que garantiu a autonomia ao
Ministério Público, ela tem razão, e ela fez isso, inclusive, sem mudar a
lei”. Em outras palavras, pode ser que Temer, caso prossiga seu
mandato, volte a adotar o padrão Fernando Henrique, não dando à mínima à
lista tríplice.
No formato de escolha do procurador-geral da
República, seguido por FHC, o grande “eleitor” era o chefe do executivo,
portanto, explica Kerche, era natural o procurador-geral exercer as
ações dentro do MP, visando não atrapalhar a presidência. Por outro
lado, a liberdade dada por Lula e Dilma à institucionalidade, permitindo
aos próprios procuradores decidirem sua liderança, abriu condições para
o procurador-geral agir correspondendo aos anseios de seus pares, e não
necessariamente ao Estado e ao conjunto de poderes.
“É uma
ilusão achar que porque a corporação vota é mais democrático. Não
necessariamente. A campanha [para o cargo de procurador-geral],
inclusive, pode ser completamente corporativa do tipo ‘vote em mim
porque vou dar mais benefícios’ ou ‘vote em mim, porque vou garantir
mais férias”, resumiu o pesquisador concluindo que numa estrutura ideal
de democracia “há um mecanismo de controle entre os poderes, onde o
chefe do Executivo e o Parlamento também participam da escolha dando
alguma oxigenação ao processo”.
Para
completar o ganho de poder do MP nos últimos anos, em agosto de 2013, a
presidente Dilma sancionou a Lei 12.850, permitindo ao órgão o uso da
delação premiada, benefício legal concedido a um criminoso que aceita
colaborar com as investigações delatando outros criminosos envolvidos no
processo. Meses antes, em dezembro de 2012, o Supremo Tribunal Federal
autorizou a condução de inquérito penal pelo Ministério Público, função
que, na interpretação de Kerche, não foi autorizada pelo Constituinte.
“Eu
estudei os debates da Constituinte. Eles não autorizaram [o MP a
conduzir um inquérito penal], não queriam que o Ministério Público
investigasse. Fizeram uma separação de tarefas: polícia investiga,
Ministério Público acusa e o poder judiciário julga”, explicou. Por
isso, o professor avalia que o Supremo, ao decidir sobre o tema, e indo
contra a vontade do Constituinte, passou por cima do poder legislativo.
O
argumento dos promotores na época do debate, lembra Kerche, é que nos
Estados Unidos e na Itália os promotores conduzem os casos de
investigação. Entretanto, ressalta o pesquisador, nesses mesmos países
os servidores prestam contas seja para eleitores, seja para outro poder,
enquanto no Brasil o Ministério Público tem poder para conduzir a
investigação sem a obrigação de prestar contas para nenhuma outra
instituição. Exemplo mais recente disso está na condução da Operação
Lava Jato, que acumula críticas de juristas brasileiros e estrangeiros
por lançar mão de mecanismos como a obtenção ilegal de provas e prisão
preventiva de suspeitos que já ultrapassa 500 dias.
Parceria
O
quadro que sustenta a força adquirida pelo Ministério Público,
espacialmente nos últimos anos, se completa com a parceria entre o órgão
e a mídia. “Há vários indícios que é parte da estratégia do Ministério
Público se utilizar da mídia para, de certa forma, gerar um julgamento
que não é só jurídico, mas também político”.
Como
exemplo, Kerche relembra campanhas levantadas por membros do Ministério
Público, e compradas pela mídia, das chamadas “Lei da Mordaça”, e “PEC
da Impunidade”, nomes negativos dados por procuradores às duas propostas
que procuravam restringir poderes da instituição. A primeira, por
exemplo, foi criada para limitar a fala de promotores e delegados antes
do fim de processos, punindo esses agentes, caso suas denúncias,
realizadas fora dos autos, não fossem procedentes. Já a segunda, PEC 37,
tirava do MP o poder de investigação, que passaria a ser restrito às
forças policiais.
“Eles [promotores de justiça] são muito bons em
comunicação, criam selos, simplificam debates que são muito complexos, e
deixam as pessoas, inclusive do ponto de vista do debate, amarradas”.
Mais recentemente, o Ministério Público Federal entregou um projeto de
lei de iniciativa popular ao Congresso, chamado “10 Medidas Contra a
Corrupção”, que em poucos meses conseguiu o número de assinaturas
necessárias a partir de campanhas midiáticas.
Acompanhe a seguir a íntegra da entrevista de Fábio Kerche
Luis Nassif - O que te levou a se interessar em estudar o Ministério Público?
Fábio Kerche - Eu, ainda na graduação da faculdade na USP, como um projeto de iniciação científica, fui trabalhar com a professora Maria Tereza Sadek e com o professor Rogério Arantes, num trabalho pioneiro estudando tanto o Judiciário quanto o Ministério Público. Tem dois polos de estudos [nesse âmbito] no Brasil: no Rio, com o pessoal do antigo Iuperj [Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro], e no IDESP [Instituto de Estudos Econômicos Sociais e Políticos de São Paulo], do qual eu fiz parte com Rogério Arantes e com a professora Maria Tereza Sadek.
Fábio Kerche - Eu, ainda na graduação da faculdade na USP, como um projeto de iniciação científica, fui trabalhar com a professora Maria Tereza Sadek e com o professor Rogério Arantes, num trabalho pioneiro estudando tanto o Judiciário quanto o Ministério Público. Tem dois polos de estudos [nesse âmbito] no Brasil: no Rio, com o pessoal do antigo Iuperj [Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro], e no IDESP [Instituto de Estudos Econômicos Sociais e Políticos de São Paulo], do qual eu fiz parte com Rogério Arantes e com a professora Maria Tereza Sadek.
Esse estudo, inclusive, ainda é uma referência. E o que chamou atenção para estudar o Ministério Público na época?
Pra
fazer justiça, uma pessoa muito importante, talvez até vale você
conversar um dia, se você já não o fez, é o professor Rogério Arantes,
professor da USP, que fez o primeiro trabalho sobre o tema, o que me
chamou atenção e nessa equipe eu comecei a ter contato com o Ministério
Público e tentar entender um pouco esse papel político que eles
desempenham, especialmente após a Constituição de 1988. Eu fiz meu
mestrado e meu doutorado sobre eles e encontrei uma dificuldade. Como o
tema era muito novo, tinha muito pouca bibliografia, então o que eu fiz
especialmente no meu doutorado? Eu usei - porque uma parte fiz também
aqui nos Estados Unidos -, a literatura sobre burocracia, sobre atores
não eleitos no Estado e, de certa forma, apliquei pra entender o
Ministério Público. Então aqui [nos Estados Unidos] me ajudou muito a
criar um instrumental teórico pra também entender a discussão que é
nova. Se você for pesquisar hoje no Brasil ainda tem poucos trabalhos
sobre o Ministério Público.
O Ministério Público que
emerge da Constituinte era o Ministério Público que vende a ideia da
defesa das minorias, defesa das liberdades democráticas. Hoje a gente vê
outro perfil de Ministério Público. O que significa? Significa que a
lógica da corporação burocrática se sobrepõe a eventuais princípios
políticos ou ideológicos?
Esse modelo de Ministério
Público é marcado, principalmente pela Constituição de 1988, ela dá três
instrumentos pro Ministério Público: da institucionalidade, quer dizer o
direito de poder fazer e como fazer, em vários assuntos; dá
instrumentos de poder, [como] ação civil, ação penal, inquérito civil e
TAC [Termo de Ajustamento de Conduta]; e da autonomia, autonomia que se
refere não só ao Ministério Público e institucionalmente em relações a
atores externos, como internamente também. O promotor e procurador tem
muita autonomia frente a uma suposta chefia do Ministério Público. Essa
combinação é consagrada em 1988, e fazia um pouco de sentido na época, a
Constituição cheia de direitos sociais na democracia criar uma
instituição que, supostamente, defenderia seus interesses. Quer dizer,
fazia um certo sentido. A questão é, primeiro, criamos realmente uma
jabuticaba. Eu estudei várias democracias no mundo, o modelo de
Ministério Público no Brasil é único.
Porque nos Estados Unidos o Ministério Público é um agente do poder executivo.
Tem
dois modelos básicos aqui nos Estados Unidos. Eles têm o que chamam de o
D.A, que é o promotor local, o district attorney. Ele é eleito em 45
estados dos 50 americanos, ele é eleito por voto direto. Ou seja, ele
faz campanha eleitoral, ele prestar contas. A cada dois anos ele fala:
'vota em mim porque eu combati a criminalidade, porque prendi tantas
pessoas' e tal. E tem o modelo federal que é indicado pelo presidente
dos Estados Unidos que é mais ou menos o modelo que a gente tinha antes
de 88, embora não tenha uma carreira estruturada. Eles são, salvo
engano, 94 procuradores que são apontados pelo governo pra exercer o
papel também de defesa do governo de Estado americano.
E podem ser demitidos a qualquer momento sem prestar satisfações?
Pode
ser demitido a qualquer momento. Tem lá os controles, com o Senado com o
Congresso, mas é um cargo do Presidente, que é o modelo mais comum.
Você pode generalizar. Se você chegar num lugar e dizer assim 'como é
que é o agente responsável pela ação penal?' Quer dizer todo o Estado
democrático tem um ator responsável pela ação penal. Se você não souber
nenhuma característica pode arriscar e falar o seguinte: 'provavelmente
esse Ministério Público é ligado ao poder Judicial, se não formalmente,
pelo menos na prática, e o chefe dessa instituição responde ao Ministro
da Justiça, portanto ao governo. Esse é modelo mais comum. As exceções
são, pelo menos nos países mais desenvolvidos do ponto de vista
democrático, o Brasil, que tem esse Ministério Público autônomo, os
Estados Unidos, onde a gente tem esse promotor local americano que é
eleito, e o Ministério Público italiano que é um modelo ainda mais
complicado que o brasileiro e as vezes muito lembrando como um grande
exemplo por causa da Operação Mãos Limpas, mas lá o judiciário e o
Ministério Público são a mesma carreira, ou seja, ao longo da carreira a
pessoa pode virar promotor em uma certa época e juiz numa outra.
Inclusive na operação Mãos Limpas - o que hoje não é mais permitido na
Itália - tem alguns casos em que o procurador entrou com a ação, depois
ele virou juiz e ele mesmo julgou a ação que promoveu.
Só
pra entender, os Estados Unidos, com o senso de pragmatismo deles de
saber que uma federação precisa ter um executivo forte, subordina o
Ministério Público ao executivo para evitar que o Ministério Público
seja um fator de instabilidade, mas, por outro lado, o procurador é o
único que pode processar o presidente. De que maneira são
compatibilizadas essas duas missões?
Nos Estados Unidos
o sistema é o seguinte, como obviamente há essa limitação, se você tem
alguém ligado ao presidente e, no caso, o presidente que precisa ser
investigado pode limitar, há o que eles chamam de promotor independente.
Você deve lembrar disso, Nassif, no caso do [Bill] Clinton
[ex-presidente dos Estados Unidos], tinha um promotor independente,
[chamado Kenneth Starr], ele foi indicado pelo Congresso, era um
professor universitário de Harward, então ele ganha poderes especiais
para investigar. É alguém de fora da estrutura da procuradoria.
Nassif,
tudo tem vantagens e desvantagens do ponto de vista institucional. É
lógico que o alto grau de autonomia do Ministério Público brasileiro,
teoricamente, tem vantagens porque dá realmente independência pros
membros do Ministério Público poderem investigar, inclusive, membros do
executivo, mas, por outro lado, a desvantagem é que a sociedade, como um
todo, tem menos instrumentos de controle e de acompanhamento de
fiscalização a ação desses atores.
O modelo americano também tem
vantagens e desvantagens. A vantagem é que o eleitor, de certa forma,
pode controlar esses atores porque vota, pode sancionar e falar 'eu
gostei da sua ação, portanto eu quero que o presidente [do Ministério
Público] continue, inclusive do ponto de vista da atuação dos seus
promotores'. Mas as desvantagens é que podem surgir esses empecilhos
quando a promotoria tenta investigar o presidente. A solução que eles
acharam aqui [nos EUA] foi a possibilidade de se indicar alguém
independente pra investigar o presidente os Estados Unidos.
No
caso brasileiro nós tivemos o Aristides Junqueira [ex- Procurador-geral
da República do Brasil na década de 1990], lá atrás, que pela primeira
vez dá uma visão mais política para o Ministério Público, depois tivemos
fases dos chamados engavetadores. Tivemos os chamados 'tuiuiús', que
tentam dar um dinamismo maior ao Ministério Público, e agora Rodrigo
Janot que era um tuiuiú que rompe com os tuiuiús. Como se deram essas
transformações? [Na gestão Geraldo Brindeiro, nomeado por quatro vezes
sucessivas pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, os
procuradores reclamavam da dificuldade de trabalhar, se autodenominaram
"turma dos tuiuiús", ave do Pantanal que demonstra grande dificuldade de
levantar voo]
Vou tentar explicar mais do ponto de
vista institucional, como é que pode surgir esse tipo de personagem. O
Fernando Henrique, na verdade, cumpriu exatamente a lei. O que ele fez?
Ele indicava quem ele queria, o Senado, onde ele tinha [apoio da]
maioria, confirmava aquele nome. Ou seja, do ponto de vista da
racionalidade do candidato à Procurador-Geral, era racional ele tentar
não desagradar o seu ganho de eleitor. O que é o ganho de eleitor
naquela época? Era o presidente da república. Então o procurador-geral
exercia o seu mandato de olho no seu grande eleitor.
O Lula e a
Dilma invertem isso de uma maneira que a gente está vendo, de certa
forma, as consequências hoje, sem mudar a lei, diga-se de passagem.
Quando a Dilma fala que garantiu a autonomia ao Ministério Público, ela
tem razão, porque ela fez isso, inclusive, sem mudar a lei. O que o Lula
começou fazendo e a Dilma continuou? Eles aceitam informalmente uma
lista tríplice votada pelos próprios membros do Ministério Público
federal e indicam o mais votado. O que isso significa do ponto de vista
institucional? É racional pra esse candidato a procurador-geral não mais
observar os desejos do presidente, mas observar os desejos dos seus
pares, ou seja, inverte totalmente a racionalidade. O pressuposto é que o
candidato quer ganhar e quer continuar no poder. Então Lula e Dilma, de
certa forma nesse aspecto, alimentaram um monstro que tenta devorá-los,
porque criaram um instrumento informal que, aliás, o Temer não é
obrigado a continuar, pode ser que o Temer mude de novo e adote o padrão
Fernando Henrique, onde ganham autonomia, e no meu ponto de vista, não
necessariamente é mais democrático. É uma ilusão achar que porque a
corporação vota é mais democrático. Não necessariamente.
Democrático é voto popular.
Claro.
O tipo de campanha, inclusive, que pode ser feito pode ser
completamente corporativo. 'Vote em mim porque vou te dar mais
benefício', 'vote em mim porque vou garantir mais férias'. Isso não tem
nada de democrático. Democrático, aliás, do meu ponto de vista, é quando
há um mecanismo de controle entre os poderes onde o chefe do Executivo e
o Parlamento também participam da escolha dando alguma oxigenação
democrática ao processo.
Dentro do Ministério Público
tem um pessoal ligado à área dos direitos humanos que tem conseguido
grandes vitórias aí, civilizatórias, e tem o pessoal da área penal que
foi o último a acertar, inclusive, as ações contra a ditadura e tudo,
teve que vir a área humana abrindo ações cíveis porque a área penal não
queria. Você chegou a tentar traçar um perfil desses diversos subgrupos
dentro do Ministério Público?
Quando a gente fala 'o
Ministério Público brasileiro', na verdade a gente não está sendo
rigoroso. É possível a gente falar em ministérios públicos, e mais do
que isso, é possível a gente falar em dez mil promotores com alta
institucionalidade e autonomia para atuarem de uma maneira um pouco
previsível e não uniforme. Então você pode ter uma cidade onde tem um
promotor mais combativo, por exemplo, na defesa de questões ambientais, e
em outra cidade um promotor mais burocrático, que não quer ter
confusão, mais acomodado e eles têm poucos instrumentos institucionais. O
procurador-geral, inclusive, tem poucos instrumentos institucionais pra
incentivar, gerar, estimular determinados comportamentos. Ou seja, é
uma instituição que dá muita liberdade.
Eu gosto de repetir
sempre uma frase do Wanderley Guilherme dos Santos que fala o seguinte:
quando as instituições falham, resta o caráter. O Ministério Público, do
ponto de vista do modelo institucional, é uma instituição que deixa
muito frouxo, molda pouco comportamentos e, portanto, garante muito
autonomia pra caráter, aí você não sabe o que faz. Se você tiver sorte,
tem um promotor comparativo, se não tiver não tem. Esse é um modelo
institucional horrível. Como é que você pode construir um modelo baseado
no acaso, na sorte? Esse é um erro do ponto de vista da constituição
institucional.
Mais um fator, que é o fato do julgamento,
da maior ou menor visibilidade do procurador, depender da mídia também.
Isso também acaba selecionando o comportamento deles.
Mas
eles são muito bons em comunicação, Nassif. Se você lembrar, tivemos
dois grandes momentos que a atuação dos promotores, do ponto de vista de
comunicação, foi muito inteligente e tem a ver com o que você está
falando. Primeiro, lembra lá atrás a chamada Lei da Mordaça? O que era
essa lei? Era regular que o promotor, inclusive delegados também, não
era só Ministério Público, tivesse certas restrições pra falar antes do
fim do processo [punindo esses agentes, caso suas denúncias, realizadas
fora dos autos, não fossem procedentes]. O que eles fizeram? Carimbaram
aquilo como mordaça. Ou seja, se você questionar aquilo, você é a favor
da mordaça. Como eles também foram também muito bons em comunicação
quando, agora na PEC 37, que regulava a questão de quem pode ou não
investigar, conduzir o inquérito penal, que na minha opinião o
Constituinte falou que Ministério Público não podia investigar. O que
eles fizeram? [Criaram o jargão] 'a PEC da impunidade'. Ou seja, eles
criam selos, simplificam debates que são muito complexos, e deixam as
pessoas, inclusive do ponto de vista do debate, muito amarradas. Por que
você é a favor da impunidade?
Os dez mandamentos,
aí....[as chamadas 10 Medidas Contra a Corrupção, criadas pelo MPF que
já coletou assinaturas suficientes para torná-las projeto de lei de
iniciativa popular encaminhada ao Congresso Nacional].
Então,
a mídia, eu lembro na época também, e tem trabalhos sobre isso, fazia
coisas que alimentavam. Um dia a mídia fazia uma manchete baseada numa
denúncia de um promotor, a suíte vinha com esse promotor comentando, e
uma alimentação. É sim, faz parte, há vários indícios que é parte da
estratégia do Ministério Público, isso desde antes de o Ministério
Público Federal ter tido protagonismo do combate à corrupção, mesmo os
Ministérios Públicos estaduais, de se utilizar da mídia pra, de certa
forma, gerar um julgamento que não é só jurídico, mas um julgamento
político. Eu lembro, por exemplo, de um caso que um promotor entrou com
uma ação pra aumentar o salário mínimo. Obviamente ele não tinha nenhuma
expectativa de ganhar isso do ponto de vista jurídico, mas ele sabia
que do ponto de vista midiático isso tem impacto. Então o Ministério
Público sabe usar muito bem a comunicação, a PEC 37, a Lei da Mordaça
são bons exemplos disso, e a atuação deles juntos, como fontes da
imprensa é uma coisa digna de nota, inclusive tem gente que estudou
isso.
E quais têm que ser os mecanismos de controle ou de prestação de contas do Ministério Público?
Eu
brinco sempre que nós cientistas políticos, principalmente dessa escola
dos institucionalistas, a gente é como um crítico de cinema: escreve
sobre o filme, mas não faz o filme. Eu estudo a instituição, mas têm
dilemas, a construção institucional não é uma coisa simples. Agora, tem
alguns pressupostos que a gente tem que respeitar. O [James] Madison,
que é um dos pais fundadores aqui da democracia americana, falava que
nenhum homem é anjo, porque se fosse anjo não precisava de governo. Ou
seja, precisa de controle. Todo ator público precisa de controle. O
Ministério Público, quando um promotor faz um concurso ele não ganha
asas. Ele continua sendo um homem, precisa prestar contas e ser passível
de responsabilização dos seus atos. Isso é próprio da essência da
democracia.
Quando eu, e outros pesquisadores, levantamos alguns
problemas institucionais no Ministério Público, ninguém está falando
aqui, obviamente acabar com o Ministério Público, ou não reconhecer que
existem iniciativas importantes, mas é que é pouco democrático, diria,
você ter uma instituição, por mais boa vontade que ela tenha, que não
preste conta, que não seja passível de descentralização. Hoje estou
citando muita frase, tem uma que até utilizo no meu livro, eu me
apropriei disso, que é do Montesquieu que falava 'até a virtude precisa
de limites'.
Fábio, a consequência normal da falta de
controles, do excesso do poder é que em breve aparecerão alguns abusos
aí... Se qualquer procurador tem poder de numa mera denúncia cometer
assassinato de reputação, e como as virtudes exigem alguma forma de
controle, é evidente que vão acontecer abusos.
O que
chama mais atenção da gente é um aprendizado institucional. Essa
decisão, nessa combinação de institucionalidade, instrumentos,
autonomia, foi de 1988. Esse modelo de ministério público, que a gente
viu nascer e se fortalecer em 88 com institucionalidade, autonomia e
instrumentos de poder, já está fazendo muitos anos. E a gente, em vez de
aprender e, de certa forma, tentar aprimorar - falo a sociedade, de
certa forma, do governo, inclusive os governos do PT -, demos mais
poderes ainda pro Ministério Público. Vou te dar exemplos: a Lei 12.850,
delação premiada, foi do governo Dilma. A indicação do
procurador-geral, que esse instrumento que a gente conversou aqui, foi
no governo Lula e tivemos outras duas novidades, uma foi iniciativa do
Lula, mas que não surtiu o efeito desejado, e outra foi uma iniciativa
do Supremo, que foi, primeiro, a criação do Conselho Nacional do
Ministério Público, que foi uma ideia, lá atrás, do comecinho do governo
Lula, primeiro governo, que era uma ideia de se criar um órgão que
limitasse, acompanhasse e fiscalizasse o Ministério Público. Mas, na
verdade, na composição dele, é formado pela maioria de membros do
próprio Ministério Público. Então efetivamente não aconteceu [o controle
desejado]. É uma corregedoria turbinada, não é um instrumento de accountability,
como a gente diz na ciência política, ou seja de um ator externo que
pode acompanhar e eventualmente responsabilizar efetivamente a atuação.
Então essa foi uma iniciativa do governo Lula.
E a outra
[iniciativa], que eu acho que foi outra jogada de comunicação muito
inteligente do ponto de vista o Ministério Público, foi a autorização
pelo Supremo da condução de inquérito penal pelo Ministério Público. Eu
estudei a Constituinte, os debates da Constituinte criaram esse modelo
de Ministério Público e os constituintes tinham clareza, eles não
autorizaram, não queriam que o Ministério Público investigasse. Eles
fizeram uma separação de tarefas: polícia investiga. Ministério Público
acusa e o poder judiciário julga. Era claro isso. O Supremo decidiu, do
meu ponto de vista legislando, o que vai contra a vontade do
Constituinte, que o Ministério Público pode também conduzir o inquérito
penal, ou seja, deu mais poder pra eles. E qual era o discurso da época
dos promotores: 'Ah, gente pode conduzir porque todos os países
conduzem. A Itália, os Estados Unidos conduzem'. É verdade, só que eles
não contam o outro lado da moeda. Se conduz a investigação, só que se
presta contas pra outros atores. Ou seja, o Ministério Público conduzir
investigações penais realmente não é estranho do ponto de vista da
perspectiva comparada, agora o que é estranho é poder conduzir
investigações e não prestar contas pra ninguém. E isso tudo foi feito
depois de 1988, ou seja, em 88 se criou uma instituição única com muita
autonomia, muito poder e ao longo desses anos o que a gente fez? Ou
invés de até aprender com erros concertando aqui e ali, não! A gente foi
construindo uma instituição cada vez mais forte, cada vez mais
autonomia, cada vez com mais poder.
Por que gritamos tanto?, por Juan Arias.
do El País
por Juan Arias
O silêncio do diálogo nos assusta porque nos obriga a desnudar nossos preconceitos para ouvir o outro
Vivemos na sociedade do grito. Falamos em voz alta. Gritam os pastores religiosos nos templos; gritam e se insultam os políticos no Congresso; gritam os juízes e promotores: gritam as pessoas nas redes sociais, e gritamos nós, os jornalistas. Apenas as vítimas permanecem em silêncio.
Um excelente artigo de Ana García Moreno sobre o silêncio,
neste jornal, me fez refletir sobre o imperativo do grito em nossa
sociedade, como se estivéssemos convencidos de que quem levanta mais a
voz, e com palavras mais grossas, é quem mais tem razão.
O insulto, tanto o falado como o escrito, é um grito que fere o
diálogo. O grito gratuito lançado contra o outro é uma ofensa que revela
mais a fraqueza que a força de nossas razões.
O silêncio do diálogo nos assusta porque nos obriga a desnudar nossos preconceitos para ouvir o outro.
A persuasão é feita mais de silêncios que de ruídos.
Um grito legítimo é o que lançamos sozinhos quando a dor nos aperta
ou quando a injustiça nos afoga. É um grito de desespero que não fere já
que costuma ser uma pergunta sem resposta.
É o grito que, de acordo com os Evangelhos, Cristo soltou na cruz ao
morrer: “Jesus exclamou em alta voz: Meu Deus, por que me desamparaste”
(Mateus 27).
Era um grito que chamava para se afogar no silêncio de Deus.
Talvez deveríamos lembrar aquele provérbio chinês, coletado pelo
genial escritor argentino Jorge Luis Borges: “Não fale, a menos que
possa melhorar o silêncio”.
Hoje falta filosofia e sobra intriga e cálculo político. E a primeira
pedra dos templos da filosofia, como já dizia Pitágoras, é o silêncio.
Não se costuma dizer que os rios mais profundos são os que fazem
menos barulho? A superficialidade é a que mais levanta a voz hoje.
Deveríamos todos lembrar nas horas em que disputamos para ver quem
grita mais, quem insulta mais, quem se destaca como campeão da única
verdade, que a razão fica humilhada no tiroteio verbal.
Afinal de contas, essa predileção pelo grito e pelo insulto contra quem pensa diferente, não seria o medo de ouvir a nós mesmos?
Não teremos, no fundo, medo de que a reflexão e a escuta das razões
do outro possam nos desnudar, enquanto o ruído, serve como escudo contra
nossa própria insegurança?
Quem está convencido de sua verdade não precisa impô-la a socos aos
outros. Pode colocá-la sobre a toalha do diálogo, como um banquete para
que todos possam desfrutar, sem pretensões de exclusividade.
O grito e o insulto são sempre fascistas. A democracia é construída
com o duro exercício do diálogo, que significa a convicção sincera de
que ninguém é dono de toda a verdade.
Os dogmas são sempre de cunho autoritário. Evocam intransigência e
caça às bruxas. A laicidade, como a ciência, é feita de incertezas, medo
de estar errado e desejos de compartilhar as razões dos outros.
Vamos deixar, se for o caso, que gritem os poetas e suas imagens, que
são eles que melhor sabem nos revelar a força de certos silêncios.
Todos os outros ruídos nos desumanizam
segunda-feira, 19 de setembro de 2016
ACORDE, por ALEXANDRE MEIRA (Poema).
Tantas vezes
as vozes
sopraram as cordas das
harpas dos deuses
de cera
sobre a mesa
Minuano de acordes sutis
desafinados
rompendo a barreira do som
breado
(breve e
mal acabado)
por um brindar de pratos
vazios
Cacos
de cera no meu mundo
ou pedaços de deuses na minha
mão,
e as harpas?
Mudas nos alardes
alarmes de
costelas nuas
Suas, sei que suas!
O calor afugenta as notas
verdes e rotas
de um infortúnio plagiado.
Abram aspas deuses!
Abram aspas deuses!
Estilhaçados bradam em vão:
São hálitos secos
arremessados a distância,
horizontes
vazios
sem éter e ânsia
Eu sei,
Eu sei,
o mal estar
dalhaço de pratos
limpos causa medo.
Mas já cedo
a fome das harpas me acordou
com notas.
PowerPoint nos torna estúpidos?, por Wilsom Ferreira Vieira Ferreira.
O programa Excel produz “cabeças de planilha”. E o PowerPoint produz o quê? Uma pequena amostra foi dada na delação-show protagonizada pelo procurador Deltan Dallagnol ao dizer: “provas são fragmentos da realidade que geram convicção”. O PowerPoint invadiu a estrutura mental, de decisão e compreensão da realidade. A princípio, qualquer coisa pode ser “bullet-izabel” (“itemizável”). É a pré-formatação da realidade, uma verdadeira estrutura de decomposição do real. Tão fragmentadas e genéricas como as supostas provas contra o “general do maior esquema de corrupção da História”. O PowerPoint se expandiu a todos os setores da sociedade, das empresas ao Estado e à escola onde alunos vão deslizando o olhar por tópicos através dos quais o efeito de conhecimento se confunde com o próprio conhecimento. Cria a linguagem powerpointiana: ilusão, simplificação, distração e anestesia.
Um fantasma assombra escolas, universidades, corporações e, agora, o Ministério Público Federal: o PowerPoint. A performance do procurador Dallagnol tentando coordenar sua fala com as dezenas de slides da sua denúncia contra “o general do maior esquema de corrupção da História” é reveladora. Não só de uma bizarra peça acusatória muito mais baseada em “convicções” do que em “provas cabais”. Mas daquilo que poderíamos chamar de “cultura PowerPoint” que assombra cada sala de aula ou auditório de apresentações.
Os procuradores federais, jovens concurseiros que, com muito esforço, traçaram seus caminhos da sala de aula dos cursos de Direito para a promoção em concursos públicos, certamente estudaram em muitos quadros sinópticos impressos em slides de PowerPoint. Moldaram seus raciocínios e matéria de estudos através de bullet-izable (itemizáveis), gráficos espaguete com muitas setas e linhas e tabelas e mais tabelas onde as letrinhas pequenas espremidas em células hifeniza as palavras tornando a leitura ainda mais irritante.
E também certamente Dallagnol demonstrou o atavismo das apresentações em grupo do seu passado de estudante na Universidade, onde o aluno, tímido e ofuscado pela luz do data show, apenas lê aquilo que já está no slide.
Mortes por PowerPoint
A cultura PowerPoint (no qual o software torna-se vício, muleta para um discurso vazio ou camisa de força intelectual) já criou sérios estragos.
Por exemplo, para o especialista em infografia Edward Tufte, slides de apresentações dos engenheiros da NASA ajudaram a esconder informações essenciais que teriam evitado a explosão do ônibus espacial Columbia em 2003 – leia “PowerPoint Makes You Dumb”, New York Times – clique aqui.
Outro artigo também do New York Times (“We Have Met the Enemy and He is PowerPoint”) apontou que até os militares norte-americanos estão questionando o uso excessivo do Power Point como instrumento de informação e treinamento. A ponto do General McBaster acusar o programa como um “inimigo interno”. Para ele, “o Power Point nos torna estúpidos porque cria a ilusão da compreensão e controle”.
O artigo não perdoa o uso abusivo do programa pelos oficiais nas campanhas do Afeganistão e Iraque e relata o livro Fiasco de Thomas Ricks que conta a pitoresca história de um slide que se tornou um meme na Internet - assim como os slides do procurador Dallagnol. Criado por um oficial para retratar a complexidade da estratégia militar americana, mais parecia um prato de espaguete. “Quando entendermos esse slide, teremos ganho a guerra”, disse o oficial fazendo a sala onde fazia a apresentação explodir em gargalhadas. O incidente tornou-se uma piada recorrente no Pentágono, Iraque e Afeganistão - veja abaixo o slide.
A questão hoje é chamada de “mortes por PowerPoint”, devido às vidas que se perdem pela falta de precisão e profundidade das informações transmitidas durante apresentações nos departamentos militares.
PowerPoint Rangers
McBaster acusa que os oficiais juniores (os quais chama de “PowerPoint Rangers”) passam mais tempo na preparação de slides para uma reunião do Estado Maior ou para um briefing do líder de pelotão no Afeganistão, do que tomando decisões. “O programa abafa a discussão, pensamento crítico e reflexivo de tomada de decisão”, alertou o general. – clique aqui.
Franck Frommer no seu livro El Pensamiento PowerPoint – indagación sobre este programaque te vuelve estúpido (Ediciones Peninsula, 2011) afirma que nele interessa mais a exibição do que a demonstração e busca hipnotizar o público e limitar a capacidade de raciocínio. Segundo Frommer, usam-se slogans e verbos no infinitivo. Muitas vezes se incorporam imagens que não têm nada a ver com o que se diz, simplesmente adorno estético. Exige-se uma sala escurecida com gente atenta, consumindo 15 slides a cada meia hora. Quando abandonam a sala, praticamente os haverá esquecido.
Frommer acredita que em si o PowerPoint não é bom e nem mal. Ele está interessado no que chama de “contaminação do discurso” pelo programa.
Mas por que esse programa contaminou de tal maneira escola, universidades, corporações e, agora, o Judiciário? – podemos imaginar em um futuro próximo advogados apresentando argumentos em slides ao invés de peças processuais.
Pré-formatação da realidade
O PowerPoint foi criado em 1987 por Robert Gaskins como um programa para ajudar a imprimir slides em transparências de retroprojetor. Logo, Bill Gates mostrou suas garras e comprou o programa. Em 29 anos de existência, o próprio Gaskins tem queixa em relação ao destino do PowerPoint – “muita gente deixa de gerar documentos completos para resumi-los em slides”.
O certo é que o PowerPoint invadiu a estrutura mental, de decisão e compreensão da realidade. A princípio, qualquer coisa pode ser bullet-izabel. É a pré-formatação da realidade, uma verdadeira estrutura de decomposição do real. E o que é pior: através de templates sempre disponíveis, pagos ou gratuitos baixados diretamente da Internet.
Na origem, o PowerPoint é útil para ilustrar ou chamar a atenção do público a determinados tópicos. Mas jamais um slide pode sintetizar um raciocínio medianamente abstrato.
Sedução pelo PowerPoint
Porém o programa se torna sedutor porque, num piscar de olhos, pode atender a quatro funções ideológicas: ilusão, simplificação, dissuasão e anestésico.
(a) Ilusão: no meio acadêmico é conhecida essa varinha de condão. Com um bom conjunto de slides pode-se falar sobre qualquer coisa. Mesmo que o professor não tenha “aderência” (ótimo eufemismo da gestão acadêmica) à disciplina, pegue o conteúdo de um livro qualquer da bibliografia básica e converta em tópicos. Se tiver sorte, pode encontrar aulas prontas em sites como slideshare... No momento da ação, basta ler os slides apenas conjugando os verbos que estão no infinitivo para dar alguma impressão de espontaneidade.
(b) Simplificação: setas, linhas e palavras realçadas por balões que mais parecem aqueles “booms!” da série Batman mascaram a inexistência de abstrações, conexões e linhas de raciocínios. O PowerPoint tende a confundir efeito de conhecimento com o próprio conhecimento. Nos cursos escolares ou universitários, o fenômeno do “apostilamento” (substituição dos livros por apostilas descartáveis) tende a piorar: a transformação dos conteúdos em slides bullets-izabels.
(c) Distração: pode ser uma boa e inofensiva ferramenta para os tímidos quebrarem o gelo ou troca de marcha em um discurso. Mas, por outro lado, pode se converter em ferramenta ideológica poderosa: desviar atenção da falta de conteúdo do emissor para os itens e imagens dos slides. E se ainda tiverem efeitos de animação, tanto melhor. Ou ainda, como aponta Franck Frommer, o conferencista passa a não se sentir responsável pelo que diz. O orador simplesmente repete o que está no slide que passa a se tornar mais do que uma muleta – o efeito de conhecimento vira a “prova” de uma “convicção”.
(d) Anestésico: Numa apresentação em uma sala escura, tudo o que devemos fazer é olhar os slides sem nos preocuparmos com a profundidade da argumentação. Os bullets itens simplificam o pensamento, mastigam informações. Resultado: anula-se o intercâmbio, não há interação. Os slides, em si, parecem a prova do conhecimento ou mesmo de uma peça processual, como nos quis mostrar o bravo procurador Dellagnol.
Um dos clichês da criatividade é “pensar fora da casinha”. Tão valorizado pelo atual ideário meritocrático (“fazer a diferença” etc.) é paradoxal que, ao mesmo tempo, o mundo fale para pessoas enredadas numa imensa tigela de espaguete mental de setas, balões, linhas e bullets de uma linguagem que foi além da orwelliana. Agora é powerpointiana.
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