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quinta-feira, 29 de setembro de 2016

O Fascismo e sua imbecilidade lógica, por Mauro Santayana.

 

 

(Jornal do Brasil) - Célebre por seus estudos sobre a França de Vichy, Robert Paxton dizia que o fascismo se caracteriza por uma sucessão de cinco momentos históricos: a criação de seus movimentos; o aparelhamento do setor público; a conquista do poder legal; a conquista do Estado; e, finalmente, a radicalização dos fins e dos meios - incluída a violência política - por intermédio da guerra.     

 

O fascismo de hoje se disfarça de “liberalismo” no plano político e de neoliberalismo no plano econômico.

 

Seu discurso e suas “guerras” podem ser dirigidos contra inimigos externos ou internos.     

 

E sua verdadeira natureza não pode ser escondida por muito tempo quando multidões uniformizadas, quase sempre com cores e bandeiras nacionais, descobrem "líderes" dispostos a defender o racismo, a ditadura, o genocídio e a tortura.     

 

Que, quase sempre, são falsa e artificialmente elevados à condição de deuses vingadores.     

 

E passam a ter seus rostos exibidos em camisetas, faixas, cartazes, por uma turba tão cheirosa quanto ignara, irrascível e intolerante, que os exalta com os mesmos slogans, em todos os lugares.     

 

Repetindo sempre os mesmos mantras anticomunistas toscos, "reformistas" e "moralistas", contra a política e seus representantes - o “perigo vermelho”, a “corrupção” e os “maus costumes”. 

 

Uma diatribe que lembra as mesmas velhas promessas e “doutrina” de apoio a outros "salvadores da pátria” do passado - que curiosamente costumam aparecer em momentos de "crise" aumentados intencionalmente pela mídia, ou até mesmo, a priori, fabricados - como Hitler, Mussolini, Salazar e Pinochet, entre muitos outros.

 

Não importa que as “bandeiras”, como a do combate à corrupção - curiosamente sempre presente no discurso de todos eles - sejam artificialmente exageradas.     

 

Não importa que, hipocritamente, em outras nações, o que em alguns países se condena, seja institucionalizado, como nos EUA, por meio da regulamentação do lobby e do financiamento indireto, e bilionário, de políticos e partidos por grandes empresas.     

 

Nem importa, afinal, que a Democracia, contraditoriamente, embora imperfeita, aparentemente - por espelhar os defeitos próprios a cada sociedade - ainda seja, para os liberais clássicos, o melhor regime para conduzir o destino das nações e o da Humanidade. 

 

Como ensina Paxton, na maioria das vezes os grupos fascistas iniciais sobrevivem para uma segunda fase, quando, como movimentos ou ainda como mera tendência, discurso ou doutrina - muitas vezes ainda não oficialmente elaborada - passam a se infiltrar e impregnar setores do Estado.

 

Esse é o caso, por exemplo, de “nichos” nas forças de segurança, no Judiciário e no Ministério Público, que passam então,  também, a prestar dedicada "colaboração" ao mesmo objetivo de "limpeza" e "purificação" da Pátria.  

 

Com o decisivo apoio de uma imprensa - normalmente dominada por três ou quatro famílias conservadoras, milionárias, retrógradas, entreguistas - que atua como instrumento de "costura" e "unificação" do "todo", por meio da pregação constante dos objetivos a serem alcançados e da permanente glorificação, direta ou indireta, do "líder" maior do processo.

 

Não por acaso, Mussolini e Hitler foram capa da Revista Time, o primeiro em 1923, o segundo em 1938, e de muitas outras publicações, em seus respectivos países, quando ainda estavam em ascensão.     Não por acaso, nas capas de jornais e revistas, principalmente as locais, eles foram precedidos por manchetes sensacionalistas e apocalípticos alertas  sobre o caos, a destruição moral e o fracasso econômico.     

 

Mesmo que em alguns países, por exemplo, a dívida pública (líquida e bruta) tenham diminuído desde 2002; a economia tenha avançado da décima-quarta para a oitava posição do mundo; a safra agrícola tenha duplicado; o PIB tenha saído de 504 bilhões para mais de 2 trilhões de dólares; e, apesar disso, tenha sido reunida, entre dinheiro pago em dívidas e aplicações em títulos externos, a quantia de 414 bilhões de dólares em reservas internacionais em pouco mais de 12 anos.        

 

Da fabricação do consentimento que leva ao fascismo, e às terríveis consequências de sua imbecilidade ilógica e destrutiva, não faz parte apenas a exageração da perspectiva de crise.     

 

É preciso atacar e sabotar grandes obras e meios de produção, aumentando o desemprego e a quebra de grandes e pequenas empresas, para criar, por meio do assassinato das expectativas,  um clima de terror econômico que permita tatuar a marca da incompetência na testa daqueles que se quer derrubar e substituir no poder, no futuro.     

 

Criando, no mesmo processo, “novas” e “inéditas” lideranças, mesmo que, do ponto de vista ideológico, o seu odor lembre o de carniça e o de naftalina. 

 

Como se elas estivessem surgindo espontaneamente, do “coração do povo”,  ou dos “homens de bem”, para livrar a nação da “crise” - muitas vezes por eles mesmos fabricada e “vitaminada” - e salvar o país.     

 

Afinal, é sempre com a velha conversa de que irá “consertar” tudo, corrigindo a desagregação dos costumes e os erros da democracia, que sempre apresenta como irremediavelmente, amplamente, podre e corrompida até a raíz - como Hitler fez com a República de Weimar - que o fascismo justifica e executa seu projeto de conquista e de chegada ao poder.     

 

É com a desculpa de purificar a pátria que o fascismo promulga e muda leis - muitas vezes ainda antes de se instalar plenamente no topo - distorcendo a legislação, deslocando o poder político do parlamento para outros setores do Estado e para “lideres” a princípio sem voto.     

 

É por meio de iniciativas aparentemente “populares”, que ele desafia a Constituição e aumenta o poder jurídico-policial do Estado no sentido de eliminar, impedir, sufocar, o surgimento de qualquer tipo de oposição à sua vontade.     

 

Para manter-se depois, de forma cada vez mais absoluta, no controle, por meio de amplo e implacável aparato repressivo  dirigido contra qualquer um que a ele venha a oferecer resistência.     

 

Aprimorando um discurso hipócrita e mentiroso que irá justificar a construção, durante alguns anos, de um nefasto castelo de cartas, do qual, no final do processo, sobrarão quase sempre apenas miséria, desgraça, destruição e morte.     

 

É aí que está a imbecilidade ilógica do fascismo.     

 

Tudo que eventualmente constrói, ele mesmo destrói.     

 

Não houve sociedade fascista que tenha sobrevivido à manipulação, ao ódio e ao fanatismo de seus povos, ou ao ego, ambição, cegueira, loucura e profunda vaidade e distorção da realidade de “líderes” cujos sonhos de poder costumam transformar-se – infelizmente, depois de muito sangue derramado - no pó tóxico e envenenado que sobra das bombas, das granadas e das balas.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

O Brasil no jogo de tabuleiro mundial do petróleo, por Marco Aurélio Cabral Pinto

A Petrobras se preparou para implementar ousado projeto de expansão da produção de petróleo, no qual as exigências de conteúdo nacional levariam à formação de nova geração de empreendedores industriais brasileiros. O projeto, contudo, foi negado por ação de interesses norte-americanos e da elite financeira brasileira




Conteúdo especial do projeto do Brasil Debate e SindipetroNF Diálogo Petroleiro
A aritmética do petróleo é bem simples e fácil de entender. Em 1995, o Brasil estava fora do clube dos grandes produtores. A Petrobras era estritamente empresa com investimentos em P&D em águas profundas. Uma espécie de NASA brasileira, com aumento histórico de reservas proporcional à profundidade alcançada nas explorações off-shore. Porque a tecnologia, majoritariamente nacional, avança gradualmente, o ritmo de incremento na produção não vinha sendo historicamente explosivo. Por isso, a empresa (e o país) não participavam, nos anos 1990, dos jogos de poder do topo do sistema mundo.
O objetivo do presente artigo é rever muito brevemente as estratégias adotadas pelos países que protagonizam os jogos de poder sobre o tabuleiro do petróleo e avaliar as virtudes e os perigos da inserção brasileira desconectada de um projeto para o país.
1.Quanto às reservas de hidrocarbonetos
A descoberta de petróleo no pré-sal foi anunciada em 2006. Desde então, as reservas estimadas variam entre 50 e 100 bilhões de barris, o que situa o Brasil entre os 10 maiores em reservas. Na Tabela 1 encontram-se dados sobre aumentos de reservas por país entre os últimos vinte anos (1995-2015).
tabela hidrocarbonetos
O crescimento de reservas no Brasil nos últimos 20 nos foi sem precedentes, bastante acima de Venezuela (Bacia do Orinoco), Cazaquistão e Angola, que aproximadamente quadruplicaram o patrimônio físico no período. O Brasil multiplicou a riqueza em “ouro negro” por cerca de 12 vezes em vinte anos.
Enquanto o aumento no consumo próprio significa maior vigor industrial, indica igualmente evolução no bem-estar social, na forma de consumo mais intensivo de energia. Portanto, o crescimento no consumo próprio de hidrocarbonetos é totalmente compatível com projeto de universalização no consumo com inovação (resíduos e poluentes etc.).
Se o crescimento no consumo de hidrocarbonetos pelo Brasil for gradual, ainda que possa ser acelerado, torna-se viável a formação de nova geração de empreendedores industriais-tecnológicos no país com competências para atender ao esforço de aumento na oferta.
O aumento acelerado nas exportações, ao contrário, imporá ao país a necessidade de importação de sistemas, máquinas e equipamentos, o que diminuirá os excedentes líquidos exportados. Ao mesmo tempo em que inibirá a formação de burguesia industrial-tecnológica nacional, o aumento de importância dos garimpeiros estrangeiros na formação do pacto político brasileiro tenderá a aumentar com o tamanho da produção.
Neste sentido, somando-se aumento mais que proporcional da presença chinesa no Brasil nos últimos 10 anos, é possível antecipar-se longo período de instabilidade política. Esta instabilidade tem como causa aumento esperado na rivalidade entre os EUA e a China no tabuleiro internacional. Nesta perspectiva, o Golpe de 2016 apenas reflete historicamente uma reação norte-americana a um projeto de país que viu na China e na Rússia aliados na geopolítica internacional do petróleo.
Por estas razões, cada país apresenta estratégia distinta quanto a relação entre reservas e produção. Cumpre-se conhecê-las.
2.Quanto ao ritmo de produção (consumo próprio e exportações)
Os EUA são os principais consumidores (21 MM b/d) e fazem uso de expressivas reservas (55 Bi barris 2015) para atender à demanda. Apesar de elevado volume de produção (cerca de 12,7 MM b/d), os EUA importam quase 40% das necessidades (cerca de 8 MM b/d).
As reservas no território norte-americano durariam somente oito anos se cortado o suprimento externo, já incluso incremento de 20 bilhões de barris disponíveis na camada de Xisto. Se consideradas as reservas do Canadá, as reservas estratégicas norte-americanas durariam cerca de 30 anos sem qualquer suprimento externo.
A importação maciça de óleo cru, contudo, é complementada mediante importações de derivados (refino16 MM b/d). Em síntese, para os EUA, é crucial a manutenção de influência política sobre os territórios que lhe garantem fornecimento, ainda que as flutuações de preços alterem a pulsação, o ritmo de acumulação das firmas industriais-petrolíferas norte-americanas. Perdas de curto prazo são mais que compensadas pelos ganhos de longo prazo.
A segurança político-militar norte-americana mobilizada no Oriente Médio faz com que o petróleo na região tenha custos ocultos acrescidos. Portanto, considerando-se a influência norte-americana desde a proclamação da República brasileira, pode-se concluir que as reservas no Atlântico Sul encontram-se entre as mais seguras (e mais baratas) para os “irmãos do norte”.
A China seguiu, até o presente momento, estratégia de busca de autossuficiência. Apesar de detentora de reservas comparativamente elevadas (cerca de 20 bilhões de barris), o elevado crescimento no consumo próprio (1,8x entre 2005/15) tem mobilizado os chineses a buscarem fontes de suprimento no exterior, o que coloca o Brasil como uma das poucas áreas de expansão com perspectivas de longo prazo.
Em 2015, a produção, o refino e o consumo atingiram patamar de cerca de 12 milhões de b/d na China. No entanto, a estratégia de autossuficiência não poderá ser mantida durante muito tempo face ao esgotamento de reservas próprias, esperadas para antes de meados do século.
A Rússia dispõe de reservas de cerca de 100 bilhões de barris, o que confere ao vizinho chinês recursos mais que suficientes para barganha de alianças de longo prazo na Ásia. Tradicionalmente supridora de energia para a Europa, a Rússia tem sofrido pressões e embargos no mercado europeu, o que também motiva alinhamento com a China.
A Rússia possui parque de refino (~5,8 MM b/d) inferior à produção (~11,0 MM b/d), contudo maior que o consumo (~ 3,1 MM b/d). A Rússia recebe hidrocarbonetos do Cazaquistão em condições historicamente favoráveis e adiciona valor industrial com a finalidade de exportação.
Complementar à Rússia, o Cazaquistão possui reservas relativamente modestas, sendo que boa parte foi descoberta nos últimos 10 anos (5 para 30 bilhões de barris). A produção alcançou em 2015 cerca de 1,7 milhão de b/d, porém com consumo dez vezes menor. Ou seja, com população de cerca de 17 milhões de habitantes, metade dos quais de origem eslava, e com um “presidente vitalício” apoiado por Moscou, na prática o Cazaquistão é sócio minerador na cadeia produtiva de combustíveis e derivados russos.
A Venezuela está entre os países com maior aumento de reservas nos últimos 10 anos, com as descobertas na Bacia do Orinoco (80 para 300 bilhões de barris). A produção (2,7 MM b/d) encontra-se em patamar bastante superior ao consumo (0,68 MM b/d), o que mostra que a Venezuela desempenha, frente aos EUA, papel comparável ao do Cazaquistão frente à Rússia. Ambos são funcionalmente supridores das necessidades dos dominadores externos.
3.Quanto ao futuro do Brasil
A urgência na extração de riqueza do pré-sal não é apenas da sociedade brasileira, mas também dos fabricantes internacionais e dos países importadores de petróleo: EUA, China, UE e Japão. Os dois últimos, praticamente sem produção e diante de dificuldades para crescer, não disputam espaços apertados no tabuleiro do petróleo internacional.
Desde 2011, os preços em dólares do barril de petróleo têm caído dramaticamente, o que não contribui como incentivo para aumentos na produção. A única exceção tem sido os EUA, que investem pesadamente em ampliação da produção nos últimos cinco anos. Entende-se que os EUA antecipam novo ciclo de aumento nos preços de óleo e derivados, fruto possivelmente de conflitos militares antecipados no Oriente Médio para o próximo ciclo político (2017-2021).
Não obstante quase todos os países, com exceção dos EUA, terem adiado projetos de expansão da produção desde 2011, a Petrobras brasileira se preparou para a implementação de ousado projeto de expansão da produção, no qual as exigências de conteúdo nacional (SETE Brasil etc.) levariam à formação de nova geração de empreendedores industriais brasileiros.
Mesmo na contramão dos “mercados”, que indicam excesso de oferta de petróleo após 2008, o Brasil apostou fichas junto com os EUA no aumento dos preços futuros. Caso implementado, o projeto brasileiro permitiria ao país inserção superior na cadeia produtiva do “ouro negro”.
O projeto dos brasileiros foi, contudo, negado pela ação coordenada entre interesses norte-americanos e um grupo de representantes políticos da estreita elite financeira brasileira, conforme a história pouco a pouco se incumbe de mostrar.
Marco Aurélio Cabral Pinto - É professor da Escola de Engenharia da Universidade Federal Fluminense, mestre em administração de empresas pelo COPPEAD/UFRJ, doutor em economia pelo IE/UFRJ. Engenheiro no BNDES e Conselheiro na central sindical CNTU

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Big Data: O império do Grupo Globo em paraísos fiscais, por Patrícia Faerman








O GGN revela, com exclusividade, os dados da família Marinho e de offshores da Rede Globo em Bahamas, peças-chave da negociata pelos direitos de transmissão da Copa de 2002
Jornal GGN - Novas revelações de paraísos fiscais foram divulgadas em mais uma série do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ). O jornal alemão Süddeutsche Zeitung teve acesso a 1,3 milhão de documentos sobre mais de 175 mil offshores entre 1990 a 2016. Apesar de receberem destaques casos relacionados a políticos de diversos países, o GGN revela, agora, que no Brasil os dados do Grupo Globo também integram os mais de 38 gigabytes de empresas.
A publicação alemã dá sequência às investigações com base em Big Data mundo afora, e compartilhou o material recebido com o consórcio internacional, incluindo diários da Europa, América do Sul, Ásia e África. 
Até o momento foram reveladas holdings e empresas envolvendo o presidente da Argentina, Maurício Macri, o secretário do interior do Reino Unido, Amber Rudd, o filho do ex-ditador Augusto Pinochet, Marco Antonio Pinochet, o filho do presidente da Nigéria, Sani Abacha, a ex-comissária da União Europeia Neelie Kroes, o ex-ministro do Exterior do Qatar, Sheikh Hamad, entre outros.
Histórico de dados restritos no Brasil
No Brasil, os jornalistas que integram a entidade que se tornou mundialmente conhecida após a revelação do SwissLeaks e Panamá Papers são Fernando Rodrigues, do Uol, Angelina Nunes, de O Globo, Marcelo Soares, da Folha de S. Paulo, e Claudio Tognolli.
Em fevereiro de 2015, o consórcio restringia a apenas Fernando Rodrigues como o único da imprensa brasileira a ter acesso às contas secretas do HSBC na Suíça, no Swiss Leaks. Á época, o GGN foi o primeiro a alertar para o risco da lista de mais de 100 mil correntistas ficarem sob o controle de um único jornalista, que poderia divulgar somente as informações que interessassem a ele ou ao jornal que representa, o Uol, do Grupo Folha.
A denúncia do GGN se espalhou em blogs e mídia alternativa, gerando uma grande pressão por parte da imprensa brasileira de outros repórteres para terem acesso aos dados. A iniciativa fez com que o ICIJ liberasse a grande base de dados também ao jornal O Globo. A partir daí, o resultado foram revelações de investigados na Lava Jato, ex-diretores do Metrô durante o contrato suspeito com a Alstom, investigados da Máfia do INSS, envolvidos no mensalão petista e tucano, como Paulo Roberto Grossi, entre outros, estavam na mira das contas suspeitas do Swiss Leaks.
Também a partir dessas novas publicações, o GGN conseguiu cruzar informações para revelar que além de o PSDB ter sido o maior beneficiado dos doadores para campanhas eleitorais com contas secretas no HSBC suíço, em 2010, o senador Aécio Neves foi também o candidato à presidência que mais recebeu. 
Na sequência dos dados suíços, foi a vez do Panamá Papers ser divulgado pelo Consórcio em abril de 2016. Assim como no Bahamas, o alemão Süddeutsche Zeitung foi o primeiro a ter acesso ao Big Data, que ia além: trazia todas as contas, transações e contratos de offshores ligadas à panamenha Mossack Fonseca, conhecida por ser uma grande lavadora de dinheiro pelo mundo. No Brasil, desdobramentos deste dados, que já estavam ao acesso não só de Rodrigues, como também do Estadão e da emissora Rede TV!, revelaram ser clientes da Mossack políticos principalmente do PMDB, mas também do PSDB, PDT, PP, PDT, PSB, PTB e PSD.
Além disso, a TV Globo foi mencionada diversas vezes em investigação de lavagem de dinheiro do banco De Nederlandsche, com transações financeiras irregulares em paraísos fiscais, supostamente para pagar os direitos de transmissão da Copa Libertadores. Também foi arrolado nessa nova sequência de dados nomes como o ex-ministro do STF, Joaquim Barbosa, e outros investigados da Lava Jato.
Apesar de o Bahamas Leaks, como está sendo chamada essa mais recente e inédita base de dados, envolver diversos brasileiros, os jornais acima mencionados novamente não deram destaque a um dos milhões de dados que deve mais interessar ao Brasil. Assim como o fez nos primeiros meses de 2015, o GGN cumpre este papel.
Cabe destacar que apesar de expor contas secretas, empresas intermediárias e offshores, o Bahamas Leaks não traz e-mails ou contratos relacionados a essas empresas, e tampouco indica quem são os seus beneficiários finais. Também é necessário ressaltar que obter ou manter uma conta em paraíso fiscal não é crime. Por outro lado, as conexões dessas contas com outras empresas possivelmente laranjas, ou grandes transações com a remessa dos valores a esses paraísos podem motivar investigações sobre a existência de corrupção, evasão de divisas ou prática de lavagem de dinheiro. 
Conexões da Globo com offshores no Panamá e Bahamas
A proposta da vez do ICIJ é publicar todos os nomes de pessoas e empresas envolvidas num banco de dados online, de livre acesso, onde é possível pesquisar por nomes, pela fonte de dados ou pelo país de jurisdição. Apenas relacionado ao Grupo Globo, o GGN encontrou algumas constatações. A primeira, o registro de que o grupo possui contas offshores não apenas no Panamá, como também em Bahamas.
Isso porque o Globo Overseas LTD foi registrado também no país caribenho, com a intermediação do escritório Ixaza, Gonzalez-Ruiz & Aleman. Incorporado em janeiro de 1999, os registros do Bahamas Leaks detectam que a companhia do grupo Globo foi desligada no dia 31 de agosto de 2002.
Para além dessas poucas informações que o ICIJ traz, verificamos que a data coincide com o período em que a empresa da Globo na Holanda, Globo Overseas, junto à TV Globo comprou da ISMM os direitos de transmissão da Copa de 2002 no Brasil, em oito parcelas, em junho de 1988. Também "coincidentemente", o último desses pagamentos venceria em 2002, anos em que a empresa foi desligada no paraíso fiscal de Bahamas.
O caso do repasse desses direitos da ISMM à Globo, envolvendo ainda a Empire Investment Group e a outra empresa criada pelo Grupo Globo para aquirir essa negociação, a GEE Ltda, traz as suspeitas de que as empresas foram criadas de fachada em paraísos fiscais para obter os direitos absolutos de transmissão daquela Copa, fugindo dos impostos, produzindo uma fraude fiscal que somava R$ 615 milhões à época, o que hoje representaria mais de R$ 1 bilhão.
Os documentos que comprovam essa fraude foram divulgados ainda em 2014, pelo blogueiro Miguel do Rosário. Na reportagem, é revelada a inclusão de 11 empresas com ligação direta ao Grupo Globo para obter aqueles direitos: Empire, GEE Eventos, Globinter, Globopar, Globo Overseas, Globo Radio, ISMM, Globosal, Porto Esperança, Power Company e a TV Globo - cada uma com jurisdição em um país, desde o próprio Brasil, até Holanda, Uruguai e os paraísos fiscais das Antilhas Holandesas, Ilhas Virgens, Ilhas Cayman.
Voltando ao caso específico de Bahamas, além da já comprovada existência de empresas de fachada do Grupo Globo para supostamente adquirir direitos de transmissão de jogos, a Globo Overseas aparece intermediada pelo escritório Icaza, Gonzalez, Ruiz & Aleman - o mesmo que nos Panamá Papers trouxe a conexão da Globo com a Mossack Fonseca.
Se nas offshores panamenhas, o escritório surgia como um dos fundadores da Chibcha Investment Corporation, que tem os irmãos Marinho como sócios, além de também ter criado a Blainville International Inc, controladora da famosa Agropecuária Veine, que aparece como uma das donas do helicóptero Augusta 109, que servia à família Marinho, o mesmo escritório tem relação com outras 1588 empresas em Bahamas.
Ainda, como já divulgado nos dados da Mossack, a Agropecuária Veine possui o consórcio Veine-Santa Amália, com a empresa Santa Amália, que tem o mesmo endereço que a Brasil SA Importação e Exportação, empresa supostamente usada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso para enviar dinheiro à ex-amante Miriam Dutra.
Dentro da lista de milhares de offshores no Panamá divulgada pelo ICIJ, também surge a GEE Capital LTD., que possivelmente é um dos braços da GEE Ltda, criada no Brasil também para a obtenção dos direitos de transmissão da Copa de 2002. Apesar de a GEE Ltda ser brasileira, a GEE Ltda tem jurisdição panamenha e foi criada em janeiro de 2000, ano que também coincide com as negociações, sendo inativada em novembro do ano seguinte. A empresa brasileira também é fechada no mesmo período - o que permitiu a detenção exclusiva dos direitos à Rede Globo.
Ainda sem comprovação de que a GEE Capital LTD tem relação com a GEE Ltda, ela aparece registrada nas Ilhas Virgens Britânicas, assim como a Empire, e com intermediação da Mossack Fonseca:

Por fim, na lista do Grupo Globo no Bahamas Leaks também verifica-se o nome do próprio José Roberto Marinho, surgindo como presidente, vice-presidente, tesoureiro e secretário da empresa New World Real State, que assim como outras oito mil empresas no país caribenho tem a intermediação da Trident Corporate Services (Bah) Ltda. 

Curiosamente, entre essas milhares, a Trident Corporate também criou a Canary Global LTD, offshore que aparece como dono Paulo Daudt Marinho, filho de José Roberto Marinho:
Confira, abaixo, algumas relações da Globo Overseas no sistema da ICIJ:

Existe quarto poder no Brasil, e se chama Ministério Público.


Sem freio e contrapeso, instituição acumula instrumentos de poder que vão além do previsto na Constituição de 88

Como Ministério Público se tornou o poder mais forte na democracia brasileira


Jornal GGN – Nas ciências políticas discute-se muito a importância dos mecanismos de accountability para fortalecer o grau de auto responsabilidade de pessoas que ocupam cargos públicos, eleitos ou não. Grosso modo, accountability são estruturas de “vigilância” sobre órgãos e agentes públicos. Assim, quanto maior o grau de accountability, que também pode ser traduzido por prestação de contas à sociedade, menor o risco de desvios de conduta de servidores públicos, sejam de presidentes da república a fiscais da previdência.

No Brasil os principais órgãos de vigilância são os Ministérios Públicos estaduais e federal que, basicamente, fiscalizam a lei e promovem a acusação criminal. Ainda em teoria, para o perfeito equilíbrio dos poderes democráticos, haveria a necessidade dos membros dos ministérios públicos prestarem contas para outro poder. Porém, formalmente, não existem regras claramente estabelecidas no país sobre o tema, o que traz um importante problema do ponto de vista democrático: quem vigiará os vigilantes?

Um dos principais estudiosos desse tema hoje no Brasil, ao lado dos professores da USP, Maria Tereza Sadek e Rogério Arantes, é o cientista político Fábio Kerche, hoje pesquisador da Fundação Casa Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, que está atualmente nos Estados Unidos concluindo pós-doutorado sobre o papel do Ministério Público na política brasileira.

Em entrevista por Skype para o programa “Na sala de visitas com Luis Nassif”, Kerche levantou importantes características do Ministério Público brasileiro que o torna único em relação a todos os modelos já implantados nas demais democracias.
Fábio Kerche, cientista político da USP e pesquisador da Fundação Casa Rui BarbosaNosso MP é altamente independente, o que até certo ponto pode ser considerado positivo, evitando, por exemplo, que um processo contra um político sofra retaliação antes mesmo e ser instaurado. Por outro lado, ressalta Kerche, “a desvantagem do modelo é que a sociedade, como um todo, tem menos instrumentos de controle e de acompanhamento de fiscalização da ação desses atores”.

O pesquisador lembra que James Medison, um dos fundadores da democracia norte-americana já dizia que nenhum homem é anjo, se assim fosse, não precisariam de governantes. “Ou seja, todo poder público precisa de controle. Quando um promotor faz concurso [e se torna membro do MP] não ganha asas, ele continua sendo um homem, precisa prestar contas e ser passível de responsabilização dos seus atos. Isso é próprio da essência da democracia”.

Comparação

Nos Estados Unidos, por exemplo, há dois modelos básicos para a carreira de promotor. Um é a dos chamados district attorney (D.A), promotores locais que são eleitos pela população em 45 dos 50 estados daquele país. “Ou seja, ele faz campanha eleitoral, presta contas a cada dois anos”. No segundo modelo, o promotor federal é indicado pelo próprio presidente da república. Nesse cargo o servidor também faz a defesa do governo e pode ser a qualquer momento demitido pelo presidente.
Mas não pense que nos Estados Unidos o chefe de estado está livre de sofrer investigação do MP. Kerche lembra que, no caso Bill Clinton, o Congresso indicou um promotor independente do governo para julgar o então presidente no escândalo envolvendo a estagiária Monica Lewinsky.

Nos EUA, Congresso indicou promotor independente para julgar Bill ClintonSegundo o professor, na maioria dos países democráticos, é comum o Ministério Público ser ligado ao poder judiciário. “Se não formalmente, pelo menos na prática, e o chefe dessa instituição responde ao Ministro da Justiça, portanto ao governo”.
Na Itália, porém, o formato foge também à regra, sendo um pouco mais complexo do que o brasileiro. Lá, uma pessoa pode iniciar a carreira como promotor de justiça e prosseguir como juiz. Esse mecanismo propiciou, inclusive, grave distorção na famosa Operação Mãos Limpas – utilizada aqui no Brasil como inspiração à Lava Jato –, onde alguns procuradores que entraram com a ação, tempos depois, se tornaram juízes e prosseguiram julgando o caso. Atualmente essa manobra não é mais permitida naquele país, ou seja, juízes não podem receber casos que, quando promotores, ajudaram a promover.

FHC fez certo, Lula e Dilma não

Até 1988 o formato do Ministério Público brasileiro era semelhante ao norte-americano. Ou seja, o procurador-geral da República, chefe do órgão, era diretamente indicando e prestava contas ao Executivo. Mas a nova Constituição federal estabeleceu mecanismos fortalecendo o MP, o que fazia sentindo, segundo Kerche, pois a instituição passava a ganhar importantes responsabilidades na manutenção dos direitos sociais estabelecidos na Carta.

Os instrumentos que a Constituição de 88 concedeu ao Ministério Púbico foram: poder de provocar ação civil, ação penal, inquérito civil, Termo de Ajuste de Conduta (TAC) e autonomia institucional, não só em relação a outras instituições, mas também internamente.

Entretanto, a escolha do presidente da instituição, o chamado procurador-geral da república, pode, segundo a Constituição, ser realizada pelo presidente da república e validada pelo Congresso. Essa “eleição” dá certa garantia de poder para o Executivo e foi assim até a gestão Fernando Henrique Cardoso.

FHC manteve controle na escolha do procurador-geral da república, regra invertida nos governos do PTNos governos Lula e Dilma, porém ocorreu uma inversão no formato de escolha do procurador-geral, aumentando ainda mais a autonomia do órgão. Os presidentes petistas aceitaram informalmente uma lista tríplice votada pelos próprios membros do Ministério Público Federal, indicando o mais votado. Por isso, “quando Dilma fala que garantiu a autonomia ao Ministério Público, ela tem razão, e ela fez isso, inclusive, sem mudar a lei”. Em outras palavras, pode ser que Temer, caso prossiga seu mandato, volte a adotar o padrão Fernando Henrique, não dando à mínima à lista tríplice.

No formato de escolha do procurador-geral da República, seguido por FHC, o grande “eleitor” era o chefe do executivo, portanto, explica Kerche, era natural o procurador-geral exercer as ações dentro do MP, visando não atrapalhar a presidência. Por outro lado, a liberdade dada por Lula e Dilma à institucionalidade, permitindo aos próprios procuradores decidirem sua liderança, abriu condições para o procurador-geral agir correspondendo aos anseios de seus pares, e não necessariamente ao Estado e ao conjunto de poderes.

“É uma ilusão achar que porque a corporação vota é mais democrático. Não necessariamente. A campanha [para o cargo de procurador-geral], inclusive, pode ser completamente corporativa do tipo ‘vote em mim porque vou dar mais benefícios’ ou ‘vote em mim, porque vou garantir mais férias”, resumiu o pesquisador concluindo que numa estrutura ideal de democracia “há um mecanismo de controle entre os poderes, onde o chefe do Executivo e o Parlamento também participam da escolha dando alguma oxigenação ao processo”.

Rodrigo Janot, Procurador-Geral da República - Crédito: Elza Fiúza / Agência BrasilPara completar o ganho de poder do MP nos últimos anos, em agosto de 2013, a presidente Dilma sancionou a Lei 12.850, permitindo ao órgão o uso da delação premiada, benefício legal concedido a um criminoso que aceita colaborar com as investigações delatando outros criminosos envolvidos no processo. Meses antes, em dezembro de 2012, o Supremo Tribunal Federal autorizou a condução de inquérito penal pelo Ministério Público, função que, na interpretação de Kerche, não foi autorizada pelo Constituinte.

“Eu estudei os debates da Constituinte. Eles não autorizaram [o MP a conduzir um inquérito penal], não queriam que o Ministério Público investigasse. Fizeram uma separação de tarefas: polícia investiga, Ministério Público acusa e o poder judiciário julga”, explicou. Por isso, o professor avalia que o Supremo, ao decidir sobre o tema, e indo contra a vontade do Constituinte, passou por cima do poder legislativo.

O argumento dos promotores na época do debate, lembra Kerche, é que nos Estados Unidos e na Itália os promotores conduzem os casos de investigação. Entretanto, ressalta o pesquisador, nesses mesmos países os servidores prestam contas seja para eleitores, seja para outro poder, enquanto no Brasil o Ministério Público tem poder para conduzir a investigação sem a obrigação de prestar contas para nenhuma outra instituição. Exemplo mais recente disso está na condução da Operação Lava Jato, que acumula críticas de juristas brasileiros e estrangeiros por lançar mão de mecanismos como a obtenção ilegal de provas e prisão preventiva de suspeitos que já ultrapassa 500 dias.

Parceria

O quadro que sustenta a força adquirida pelo Ministério Público, espacialmente nos últimos anos, se completa com a parceria entre o órgão e a mídia. “Há vários indícios que é parte da estratégia do Ministério Público se utilizar da mídia para, de certa forma, gerar um julgamento que não é só jurídico, mas também político”.

Crédito: Agência BrasilComo exemplo, Kerche relembra campanhas levantadas por membros do Ministério Público, e compradas pela mídia, das chamadas “Lei da Mordaça”, e “PEC da Impunidade”, nomes negativos dados por procuradores às duas propostas que procuravam restringir poderes da instituição. A primeira, por exemplo, foi criada para limitar a fala de promotores e delegados antes do fim de processos, punindo esses agentes, caso suas denúncias, realizadas fora dos autos, não fossem procedentes. Já a segunda, PEC 37, tirava do MP o poder de investigação, que passaria a ser restrito às forças policiais.

“Eles [promotores de justiça] são muito bons em comunicação, criam selos, simplificam debates que são muito complexos, e deixam as pessoas, inclusive do ponto de vista do debate, amarradas”. Mais recentemente, o Ministério Público Federal entregou um projeto de lei de iniciativa popular ao Congresso, chamado “10 Medidas Contra a Corrupção”, que em poucos meses conseguiu o número de assinaturas necessárias a partir de campanhas midiáticas.

Acompanhe a seguir a íntegra da entrevista de Fábio Kerche 
Luis Nassif - O que te levou a se interessar em estudar o Ministério Público?

Fábio Kerche -
Eu, ainda na graduação da faculdade na USP, como um projeto de iniciação científica, fui trabalhar com a professora Maria Tereza Sadek e com o professor Rogério Arantes, num trabalho pioneiro estudando tanto o Judiciário quanto o Ministério Público. Tem dois polos de estudos [nesse âmbito] no Brasil: no Rio, com o pessoal do antigo Iuperj [Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro], e no IDESP [Instituto de Estudos Econômicos Sociais e Políticos de São Paulo], do qual eu fiz parte com Rogério Arantes e com a professora Maria Tereza Sadek.

Esse estudo, inclusive, ainda é uma referência. E o que chamou atenção para estudar o Ministério Público na época?

Pra fazer justiça, uma pessoa muito importante, talvez até vale você conversar um dia, se você já não o fez, é o professor Rogério Arantes, professor da USP, que fez o primeiro trabalho sobre o tema, o que me chamou atenção e nessa equipe eu comecei a ter contato com o Ministério Público e tentar entender um pouco esse papel político que eles desempenham, especialmente após a Constituição de 1988. Eu fiz meu mestrado e meu doutorado sobre eles e encontrei uma dificuldade. Como o tema era muito novo, tinha muito pouca bibliografia, então o que eu fiz especialmente no meu doutorado? Eu usei - porque uma parte fiz também aqui nos Estados Unidos -, a literatura sobre burocracia, sobre atores não eleitos no Estado e, de certa forma, apliquei pra entender o Ministério Público. Então aqui [nos Estados Unidos] me ajudou muito a criar um instrumental teórico pra também entender a discussão que é nova. Se você for pesquisar hoje no Brasil ainda tem poucos trabalhos sobre o Ministério Público.

O Ministério Público que emerge da Constituinte era o Ministério Público que vende a ideia da defesa das minorias, defesa das liberdades democráticas. Hoje a gente vê outro perfil de Ministério Público. O que significa? Significa que a lógica da corporação burocrática se sobrepõe a eventuais princípios políticos ou ideológicos?

Esse modelo de Ministério Público é marcado, principalmente pela Constituição de 1988, ela dá três instrumentos pro Ministério Público: da institucionalidade, quer dizer o direito de poder fazer e como fazer, em vários assuntos; dá instrumentos de poder, [como] ação civil, ação penal, inquérito civil e TAC [Termo de Ajustamento de Conduta]; e da autonomia, autonomia que se refere não só ao Ministério Público e institucionalmente em relações a atores externos, como internamente também. O promotor e procurador tem muita autonomia frente a uma suposta chefia do Ministério Público. Essa combinação é consagrada em 1988, e fazia um pouco de sentido na época, a Constituição cheia de direitos sociais na democracia criar uma instituição que, supostamente, defenderia seus interesses. Quer dizer, fazia um certo sentido. A questão é, primeiro, criamos realmente uma jabuticaba. Eu estudei várias democracias no mundo, o modelo de Ministério Público no Brasil é único.

Porque nos Estados Unidos o Ministério Público é um agente do poder executivo.

Tem dois modelos básicos aqui nos Estados Unidos. Eles têm o que chamam de o D.A, que é o promotor local,  o district attorney. Ele é eleito em 45 estados dos 50 americanos, ele é eleito por voto direto. Ou seja, ele faz campanha eleitoral, ele prestar contas. A cada dois anos ele fala: 'vota em mim porque eu combati a criminalidade, porque prendi tantas pessoas' e tal. E tem o modelo federal que é indicado pelo presidente dos Estados Unidos que é mais ou menos o modelo que a gente tinha antes de 88, embora não tenha uma carreira estruturada. Eles são, salvo engano, 94 procuradores que são apontados pelo governo pra exercer o papel também de defesa do governo de Estado americano.

E podem ser demitidos a qualquer momento sem prestar satisfações?

Pode ser demitido a qualquer momento. Tem lá os controles, com o Senado com o Congresso, mas é um cargo do Presidente, que é o modelo mais comum. Você pode generalizar. Se você chegar num lugar e dizer assim 'como é que é o agente responsável pela ação penal?' Quer dizer todo o Estado democrático tem um ator responsável pela ação penal. Se você não souber nenhuma característica pode arriscar e falar o seguinte: 'provavelmente esse Ministério Público é ligado ao poder Judicial, se não formalmente, pelo menos na prática, e o chefe dessa instituição responde ao Ministro da Justiça, portanto ao governo. Esse é modelo mais comum. As exceções são, pelo menos nos países mais desenvolvidos do ponto de vista democrático, o Brasil, que tem esse Ministério Público autônomo, os Estados Unidos, onde a gente tem esse promotor local americano que é eleito, e o Ministério Público italiano que é um modelo ainda mais complicado que o brasileiro e as vezes muito lembrando como um grande exemplo por causa da Operação Mãos Limpas, mas lá o judiciário e o Ministério Público são a mesma carreira, ou seja, ao longo da carreira a pessoa pode virar promotor em uma certa época e juiz numa outra. Inclusive na operação Mãos Limpas - o que hoje não é mais permitido na Itália - tem alguns casos em que o procurador entrou com a ação, depois ele virou juiz e ele mesmo julgou a ação que promoveu.

Só pra entender, os Estados Unidos, com o senso de pragmatismo deles de saber que uma federação precisa ter um executivo forte, subordina o Ministério Público ao executivo para evitar que o Ministério Público seja um fator de instabilidade, mas, por outro lado, o procurador é o único que pode processar o presidente. De que maneira são compatibilizadas essas duas missões?

Nos Estados Unidos o sistema é o seguinte, como obviamente há essa limitação, se você tem alguém ligado ao presidente e, no caso, o presidente que precisa ser investigado pode limitar, há o que eles chamam de promotor independente. Você deve lembrar disso, Nassif, no caso do [Bill] Clinton [ex-presidente dos Estados Unidos], tinha um promotor independente, [chamado Kenneth Starr], ele foi indicado pelo Congresso, era um professor universitário de Harward, então ele ganha poderes especiais para investigar. É alguém de fora da estrutura da procuradoria.

Nassif, tudo tem vantagens e desvantagens do ponto de vista institucional. É lógico que o alto grau de autonomia do Ministério Público brasileiro, teoricamente, tem vantagens porque dá realmente independência pros membros do Ministério Público poderem investigar, inclusive, membros do executivo, mas, por outro lado, a desvantagem é que a sociedade, como um todo, tem menos instrumentos de controle e de acompanhamento de fiscalização a ação desses atores.

O modelo americano também tem vantagens e desvantagens. A vantagem é que o eleitor, de certa forma, pode controlar esses atores porque vota, pode sancionar e falar 'eu gostei da sua ação, portanto eu quero que o presidente [do Ministério Público] continue, inclusive do ponto de vista da atuação dos seus promotores'. Mas as desvantagens é que podem surgir esses empecilhos quando a promotoria tenta investigar o presidente. A solução que eles acharam aqui [nos EUA] foi a possibilidade de se indicar alguém independente pra investigar o presidente os Estados Unidos.

No caso brasileiro nós tivemos o Aristides Junqueira [ex- Procurador-geral da República do Brasil na década de 1990], lá atrás, que pela primeira vez dá uma visão mais política para o Ministério Público, depois tivemos fases dos chamados engavetadores. Tivemos os chamados 'tuiuiús', que tentam dar um dinamismo maior ao Ministério Público, e agora Rodrigo Janot que era um tuiuiú que rompe com os tuiuiús. Como se deram essas transformações? [Na gestão Geraldo Brindeiro, nomeado por quatro vezes sucessivas pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, os procuradores reclamavam da dificuldade de trabalhar, se autodenominaram "turma dos tuiuiús", ave do Pantanal que demonstra grande dificuldade de levantar voo]

Vou tentar explicar mais do ponto de vista institucional, como é que pode surgir esse tipo de personagem. O Fernando Henrique, na verdade, cumpriu exatamente a lei. O que ele fez? Ele indicava quem ele queria, o Senado, onde ele tinha [apoio da] maioria, confirmava aquele nome. Ou seja, do ponto de vista da racionalidade do candidato à Procurador-Geral, era racional ele tentar não desagradar o seu ganho de eleitor. O que é o ganho de eleitor naquela época? Era o presidente da república. Então o procurador-geral exercia o seu mandato de olho no seu grande eleitor.

O Lula e a Dilma invertem isso de uma maneira que a gente está vendo, de certa forma, as consequências hoje, sem mudar a lei, diga-se de passagem. Quando a Dilma fala que garantiu a autonomia ao Ministério Público, ela tem razão, porque ela fez isso, inclusive, sem mudar a lei. O que o Lula começou fazendo e a Dilma continuou? Eles aceitam informalmente uma lista tríplice votada pelos próprios membros do Ministério Público federal e indicam o mais votado. O que isso significa do ponto de vista institucional? É racional pra esse candidato a procurador-geral não mais observar os desejos do presidente, mas observar os desejos dos seus pares, ou seja, inverte totalmente a racionalidade. O pressuposto é que o candidato quer ganhar e quer continuar no poder. Então Lula e Dilma, de certa forma nesse aspecto, alimentaram um monstro que tenta devorá-los, porque criaram um instrumento informal que, aliás, o Temer não é obrigado a continuar, pode ser que o Temer mude de novo e adote o padrão Fernando Henrique, onde ganham autonomia, e no meu ponto de vista, não necessariamente é mais democrático. É uma ilusão achar que porque a corporação vota é mais democrático. Não necessariamente.

Democrático é voto popular.

Claro. O tipo de campanha, inclusive, que pode ser feito pode ser completamente corporativo. 'Vote em mim porque vou te dar mais benefício', 'vote em mim porque vou garantir mais férias'. Isso não tem nada de democrático. Democrático, aliás, do meu ponto de vista, é quando há um mecanismo de controle entre os poderes onde o chefe do Executivo e o Parlamento também participam da escolha dando alguma oxigenação democrática ao processo.

Dentro do Ministério Público tem um pessoal ligado à área dos direitos humanos que tem conseguido grandes vitórias aí, civilizatórias, e tem o pessoal da área penal que foi o último a acertar, inclusive, as ações contra a ditadura e tudo, teve que vir a área humana abrindo ações cíveis porque a área penal não queria. Você chegou a tentar traçar um perfil desses diversos subgrupos dentro do Ministério Público?

Quando a gente fala 'o Ministério Público brasileiro', na verdade a gente não está sendo rigoroso. É possível a gente falar em ministérios públicos, e mais do que isso, é possível a gente falar em dez mil promotores com alta institucionalidade e autonomia para atuarem de uma maneira um pouco previsível e não uniforme. Então você pode ter uma cidade onde tem um promotor mais combativo, por exemplo, na defesa de questões ambientais, e em outra cidade um promotor mais burocrático, que não quer ter confusão, mais acomodado e eles têm poucos instrumentos institucionais. O procurador-geral, inclusive, tem poucos instrumentos institucionais pra incentivar, gerar, estimular determinados comportamentos. Ou seja, é uma instituição que dá muita liberdade.

Eu gosto de repetir sempre uma frase do Wanderley Guilherme dos Santos que fala o seguinte: quando as instituições falham, resta o caráter. O Ministério Público, do ponto de vista do modelo institucional, é uma instituição que deixa muito frouxo, molda pouco comportamentos e, portanto, garante muito autonomia pra caráter, aí você não sabe o que faz. Se você tiver sorte, tem um promotor comparativo, se não tiver não tem. Esse é um modelo institucional horrível. Como é que você pode construir um modelo baseado no acaso, na sorte? Esse é um erro do ponto de vista da constituição institucional.

Mais um fator, que é o fato do julgamento, da maior ou menor visibilidade do procurador, depender da mídia também. Isso também acaba selecionando o comportamento deles.

Mas eles são muito bons em comunicação, Nassif. Se você lembrar, tivemos dois grandes momentos que a atuação dos promotores, do ponto de vista de comunicação, foi muito inteligente e tem a ver com o que você está falando. Primeiro, lembra lá atrás a chamada Lei da Mordaça? O que era essa lei? Era regular que o promotor, inclusive delegados também, não era só Ministério Público, tivesse certas restrições pra falar antes do fim do processo [punindo esses agentes, caso suas denúncias, realizadas fora dos autos, não fossem procedentes]. O que eles fizeram? Carimbaram aquilo como mordaça. Ou seja, se você questionar aquilo, você é a favor da mordaça. Como eles também foram também muito bons em comunicação quando, agora na PEC 37, que regulava a questão de quem pode ou não investigar, conduzir o inquérito penal, que na minha opinião o Constituinte falou que Ministério Público não podia investigar. O que eles fizeram? [Criaram o jargão] 'a PEC da impunidade'. Ou seja, eles criam selos, simplificam debates que são muito complexos, e deixam as pessoas, inclusive do ponto de vista do debate, muito amarradas. Por que você é a favor da impunidade?

Os dez mandamentos, aí....[as chamadas 10 Medidas Contra a Corrupção, criadas pelo MPF que já coletou assinaturas suficientes para torná-las projeto de lei de iniciativa popular encaminhada ao Congresso Nacional].

Então, a mídia, eu lembro na época também, e tem trabalhos sobre isso, fazia coisas que alimentavam. Um dia a mídia fazia uma manchete baseada numa denúncia de um promotor, a suíte vinha com esse promotor comentando, e uma alimentação. É sim, faz parte, há vários indícios que é parte da estratégia do Ministério Público, isso desde antes de o Ministério Público Federal ter tido protagonismo do combate à corrupção, mesmo os Ministérios Públicos estaduais, de se utilizar da mídia pra, de certa forma, gerar um julgamento que não é só jurídico, mas um julgamento político. Eu lembro, por exemplo, de um caso que um promotor entrou com uma ação pra aumentar o salário mínimo. Obviamente ele não tinha nenhuma expectativa de ganhar isso do ponto de vista jurídico, mas ele sabia que do ponto de vista midiático isso tem impacto. Então o Ministério Público sabe usar muito bem a comunicação, a PEC 37, a Lei da Mordaça são bons exemplos disso, e a atuação deles juntos, como fontes da imprensa é uma coisa digna de nota, inclusive tem gente que estudou isso.

E quais têm que ser os mecanismos de controle ou de prestação de contas do Ministério Público?

Eu brinco sempre que nós cientistas políticos, principalmente dessa escola dos institucionalistas, a gente é como um crítico de cinema: escreve sobre o filme, mas não faz o filme. Eu estudo a instituição, mas têm dilemas, a construção institucional não é uma coisa simples. Agora, tem alguns pressupostos que a gente tem que respeitar. O [James] Madison, que é um dos pais fundadores aqui da democracia americana, falava que nenhum homem é anjo, porque se fosse anjo não precisava de governo. Ou seja, precisa de controle. Todo ator público precisa de controle. O Ministério Público, quando um promotor faz um concurso ele não ganha asas. Ele continua sendo um homem, precisa prestar contas e ser passível de responsabilização dos seus atos. Isso é próprio da essência da democracia.

Quando eu, e outros pesquisadores, levantamos alguns problemas institucionais no Ministério Público, ninguém está falando aqui, obviamente acabar com o Ministério Público, ou não reconhecer que existem iniciativas importantes, mas é que é pouco democrático, diria, você ter uma instituição, por mais boa vontade que ela tenha, que não preste conta, que não seja passível de descentralização. Hoje estou citando muita frase, tem uma que até utilizo no meu livro, eu me apropriei disso, que é do Montesquieu que falava 'até a virtude precisa de limites'.

Fábio, a consequência normal da falta de controles, do excesso do poder é que em breve aparecerão alguns abusos aí... Se qualquer procurador tem poder de numa mera denúncia cometer assassinato de reputação, e como as virtudes exigem alguma forma de controle, é evidente que vão acontecer abusos.

O que chama mais atenção da gente é um aprendizado institucional. Essa decisão, nessa combinação de institucionalidade, instrumentos, autonomia, foi de 1988. Esse modelo de ministério público, que a gente viu nascer e se fortalecer em 88 com institucionalidade, autonomia e instrumentos de poder, já está fazendo muitos anos. E a gente, em vez de aprender e, de certa forma, tentar aprimorar - falo a sociedade, de certa forma, do governo, inclusive os governos do PT -, demos mais poderes ainda pro Ministério Público. Vou te dar exemplos: a Lei 12.850, delação premiada, foi do governo Dilma. A indicação do procurador-geral, que esse instrumento que a gente conversou aqui, foi no governo Lula e tivemos outras duas novidades, uma foi iniciativa do Lula, mas que não surtiu o efeito desejado, e outra foi uma iniciativa do Supremo, que foi, primeiro, a criação do Conselho Nacional do Ministério Público, que foi uma ideia, lá atrás, do comecinho do governo Lula, primeiro governo, que era uma ideia de se criar um órgão que limitasse, acompanhasse e fiscalizasse o Ministério Público. Mas, na verdade, na composição dele, é formado pela maioria de membros do próprio Ministério Público. Então efetivamente não aconteceu [o controle desejado]. É uma corregedoria turbinada, não é um instrumento de accountability, como a gente diz na ciência política, ou seja de um ator externo que pode acompanhar e eventualmente responsabilizar efetivamente a atuação. Então essa foi uma iniciativa do governo Lula.

E a outra [iniciativa], que eu acho que foi outra jogada de comunicação muito inteligente do ponto de vista o Ministério Público, foi a autorização pelo Supremo da condução de inquérito penal pelo Ministério Público. Eu estudei a Constituinte, os debates da Constituinte criaram esse modelo de Ministério Público e os constituintes tinham clareza, eles não autorizaram, não queriam que o Ministério Público investigasse. Eles fizeram uma separação de tarefas: polícia investiga. Ministério Público acusa e o poder judiciário julga. Era claro isso. O Supremo decidiu, do meu ponto de vista legislando, o que vai contra a vontade do Constituinte, que o Ministério Público pode também conduzir o inquérito penal, ou seja, deu mais poder pra eles. E qual era o discurso da época dos promotores: 'Ah, gente pode conduzir porque todos os países conduzem. A Itália, os Estados Unidos conduzem'. É verdade, só que eles não contam o outro lado da moeda. Se conduz a investigação, só que se presta contas pra outros atores. Ou seja, o Ministério Público conduzir investigações penais realmente não é estranho do ponto de vista da perspectiva comparada, agora o que é estranho é poder conduzir investigações e não prestar contas pra ninguém. E isso tudo foi feito depois de 1988, ou seja, em 88 se criou uma instituição única com muita autonomia, muito poder e ao longo desses anos o que a gente fez? Ou invés de até aprender com erros concertando aqui e ali, não! A gente foi construindo uma instituição cada vez mais forte, cada vez mais autonomia, cada vez com mais poder.

Por que gritamos tanto?, por Juan Arias.



do El País
por Juan Arias
O silêncio do diálogo nos assusta porque nos obriga a desnudar nossos preconceitos para ouvir o outro
Vivemos na sociedade do grito. Falamos em voz alta. Gritam os pastores religiosos nos templos; gritam e se insultam os políticos no Congressogritam os juízes e promotores: gritam as pessoas nas redes sociais, e gritamos nós, os jornalistas. Apenas as vítimas permanecem em silêncio.
Um excelente artigo de Ana García Moreno sobre o silêncio, neste jornal, me fez refletir sobre o imperativo do grito em nossa sociedade, como se estivéssemos convencidos de que quem levanta mais a voz, e com palavras mais grossas, é quem mais tem razão.
O insulto, tanto o falado como o escrito, é um grito que fere o diálogo. O grito gratuito lançado contra o outro é uma ofensa que revela mais a fraqueza que a força de nossas razões.
O silêncio do diálogo nos assusta porque nos obriga a desnudar nossos preconceitos para ouvir o outro.
A persuasão é feita mais de silêncios que de ruídos.
Um grito legítimo é o que lançamos sozinhos quando a dor nos aperta ou quando a injustiça nos afoga. É um grito de desespero que não fere já que costuma ser uma pergunta sem resposta.
É o grito que, de acordo com os Evangelhos, Cristo soltou na cruz ao morrer: “Jesus exclamou em alta voz: Meu Deus, por que me desamparaste” (Mateus 27).
Era um grito que chamava para se afogar no silêncio de Deus.
Talvez deveríamos lembrar aquele provérbio chinês, coletado pelo genial escritor argentino Jorge Luis Borges: “Não fale, a menos que possa melhorar o silêncio”.
Hoje falta filosofia e sobra intriga e cálculo político. E a primeira pedra dos templos da filosofia, como já dizia Pitágoras, é o silêncio.
Não se costuma dizer que os rios mais profundos são os que fazem menos barulho? A superficialidade é a que mais levanta a voz hoje.
Deveríamos todos lembrar nas horas em que disputamos para ver quem grita mais, quem insulta mais, quem se destaca como campeão da única verdade, que a razão fica humilhada no tiroteio verbal.
Afinal de contas, essa predileção pelo grito e pelo insulto contra quem pensa diferente, não seria o medo de ouvir a nós mesmos?
Não teremos, no fundo, medo de que a reflexão e a escuta das razões do outro possam nos desnudar, enquanto o ruído, serve como escudo contra nossa própria insegurança?
Quem está convencido de sua verdade não precisa impô-la a socos aos outros. Pode colocá-la sobre a toalha do diálogo, como um banquete para que todos possam desfrutar, sem pretensões de exclusividade.
O grito e o insulto são sempre fascistas. A democracia é construída com o duro exercício do diálogo, que significa a convicção sincera de que ninguém é dono de toda a verdade.
Os dogmas são sempre de cunho autoritário. Evocam intransigência e caça às bruxas. A laicidade, como a ciência, é feita de incertezas, medo de estar errado e desejos de compartilhar as razões dos outros.
Vamos deixar, se for o caso, que gritem os poetas e suas imagens, que são eles que melhor sabem nos revelar a força de certos silêncios.
Todos os outros ruídos nos desumanizam

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

ACORDE, por ALEXANDRE MEIRA (Poema).


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Tantas  vezes

                       as vozes

sopraram as cordas das harpas dos deuses

de cera

             sobre a mesa

Minuano de acordes sutis

                                         desafinados

rompendo a barreira do som

                                     breado

                                    (breve e mal acabado)

por um brindar de pratos vazios

                                                     Cacos

de cera no meu mundo

ou pedaços de deuses na minha mão,

                            e as harpas?

Mudas nos alardes

                                alarmes de costelas nuas

Suas, sei que suas!

O calor afugenta as notas

                                         verdes e rotas

de um infortúnio plagiado. 

               Abram aspas deuses!

          Estilhaçados bradam em vão:

São hálitos secos arremessados a distância,

                                       horizontes vazios

sem éter e ânsia
                         
                             Eu sei,

                          o mal  estar 
                                                dalhaço de pratos

limpos causa medo.

                             Mas já cedo

a fome das harpas me acordou

                                                   com notas.





PowerPoint nos torna estúpidos?, por Wilsom Ferreira Vieira Ferreira.



O programa Excel produz “cabeças de planilha”. E o PowerPoint produz o quê? Uma pequena amostra foi dada na delação-show protagonizada pelo procurador Deltan Dallagnol ao dizer: “provas são fragmentos da realidade que geram convicção”. O PowerPoint invadiu a estrutura mental, de decisão e compreensão da realidade. A princípio, qualquer coisa pode ser “bullet-izabel” (“itemizável”). É a pré-formatação da realidade, uma verdadeira estrutura de decomposição do real. Tão fragmentadas e genéricas como as supostas provas contra o “general do maior esquema de corrupção da História”. O PowerPoint se expandiu a todos os setores da sociedade, das empresas ao Estado e à escola onde alunos vão deslizando o olhar por tópicos através dos quais o efeito de conhecimento se confunde com o próprio conhecimento. Cria a linguagem powerpointiana: ilusão, simplificação, distração e anestesia.

Um fantasma assombra escolas, universidades, corporações e, agora, o Ministério Público Federal: o PowerPoint. A performance do procurador Dallagnol tentando coordenar sua fala com as dezenas de slides da sua denúncia contra “o general do maior esquema de corrupção da História” é reveladora. Não só de uma bizarra peça acusatória muito mais baseada em “convicções” do que em “provas cabais”. Mas daquilo que poderíamos chamar de “cultura PowerPoint” que assombra cada sala de aula ou auditório de apresentações.

Os procuradores federais, jovens concurseiros que, com muito esforço, traçaram seus caminhos da sala de aula dos cursos de Direito para a promoção em concursos públicos, certamente estudaram em muitos quadros sinópticos impressos em slides de PowerPoint. Moldaram seus raciocínios e matéria de estudos através de bullet-izable (itemizáveis), gráficos espaguete com muitas setas e linhas e tabelas e mais tabelas onde as letrinhas pequenas espremidas em células hifeniza as palavras tornando a leitura ainda mais irritante.

E também certamente Dallagnol demonstrou o atavismo das apresentações em grupo do seu passado de estudante na Universidade, onde o aluno, tímido e ofuscado pela luz do data show, apenas lê aquilo que já está no slide.


Mortes por PowerPoint


A cultura PowerPoint (no qual o software torna-se vício, muleta para um discurso vazio ou camisa de força intelectual) já criou sérios estragos.

Por exemplo, para o especialista em infografia Edward Tufte, slides de apresentações dos engenheiros da NASA ajudaram a esconder informações essenciais que teriam evitado a explosão do ônibus espacial Columbia em 2003 – leia “PowerPoint Makes You Dumb”, New York Timesclique aqui.

Outro artigo também do New York Times (“We Have Met the Enemy and He is PowerPoint”) apontou que até os militares norte-americanos estão questionando o uso excessivo do Power Point como instrumento de informação e treinamento. A ponto do General McBaster acusar o programa como um “inimigo interno”. Para ele, “o Power Point nos torna estúpidos porque cria a ilusão da compreensão e controle”.

O artigo não perdoa o uso abusivo do programa pelos oficiais nas campanhas do Afeganistão e Iraque e relata o livro Fiasco de Thomas Ricks que conta a pitoresca história de um slide que se tornou um meme na Internet - assim como os slides do procurador Dallagnol. Criado por um oficial para retratar a complexidade da estratégia militar americana, mais parecia um prato de espaguete. “Quando entendermos esse slide, teremos ganho a guerra”, disse o oficial fazendo a sala onde fazia a apresentação explodir em gargalhadas. O incidente tornou-se uma piada recorrente no Pentágono, Iraque e Afeganistão - veja abaixo o slide.


A questão hoje é chamada de “mortes por PowerPoint”, devido às vidas que se perdem pela falta de precisão e profundidade das informações transmitidas durante apresentações nos departamentos militares.

PowerPoint Rangers


McBaster acusa que os oficiais juniores (os quais chama de “PowerPoint Rangers”) passam mais tempo na preparação de slides para uma reunião do Estado Maior ou para um briefing do líder de pelotão no Afeganistão, do que tomando decisões. “O programa abafa a discussão, pensamento crítico e reflexivo de tomada de decisão”, alertou o general.  – clique aqui.

Franck Frommer no seu livro El Pensamiento PowerPoint – indagación sobre este programaque te vuelve estúpido (Ediciones Peninsula, 2011) afirma que nele interessa mais a exibição do que a demonstração e busca hipnotizar o público e limitar a capacidade de raciocínio. Segundo Frommer, usam-se slogans e verbos no infinitivo. Muitas vezes se incorporam imagens que não têm nada a ver com o que se diz, simplesmente adorno estético. Exige-se uma sala escurecida com gente atenta, consumindo 15 slides a cada meia hora. Quando abandonam a sala, praticamente os haverá esquecido.

Frommer acredita que em si o PowerPoint não é bom e nem mal. Ele está interessado no que chama de “contaminação do discurso” pelo programa.

Mas por que esse programa contaminou de tal maneira escola, universidades, corporações e, agora, o Judiciário? – podemos imaginar em um futuro próximo advogados apresentando argumentos em slides ao invés de peças processuais.


Pré-formatação da realidade


O PowerPoint foi criado em 1987 por Robert Gaskins como um programa para ajudar a imprimir slides em transparências de retroprojetor. Logo, Bill Gates mostrou suas garras e comprou o programa. Em 29 anos de existência, o próprio Gaskins tem queixa em relação ao destino do PowerPoint – “muita gente deixa de gerar documentos completos para resumi-los em slides”.

O certo é que o PowerPoint invadiu a estrutura mental, de decisão e compreensão da realidade. A princípio, qualquer coisa pode ser bullet-izabel. É a pré-formatação da realidade, uma verdadeira estrutura de decomposição do real. E o que é pior: através de templates sempre disponíveis, pagos ou gratuitos baixados diretamente da Internet.

Na origem, o PowerPoint é útil para ilustrar ou chamar a atenção do público a determinados tópicos. Mas jamais um slide pode sintetizar um raciocínio medianamente abstrato.

Sedução pelo PowerPoint


Porém o programa se torna sedutor porque, num piscar de olhos, pode atender a quatro funções ideológicas: ilusão, simplificação, dissuasão e anestésico.

(a) Ilusão: no meio acadêmico é conhecida essa varinha de condão. Com um bom conjunto de slides pode-se falar sobre qualquer coisa. Mesmo que o professor não tenha “aderência” (ótimo eufemismo da gestão acadêmica) à disciplina, pegue o conteúdo de um livro qualquer da bibliografia básica e converta em tópicos. Se tiver sorte, pode encontrar aulas prontas em sites como slideshare... No momento da ação, basta ler os slides apenas conjugando os verbos que estão no infinitivo para dar alguma impressão de espontaneidade.


(b) Simplificação: setas, linhas e palavras realçadas por balões que mais parecem aqueles “booms!” da série Batman mascaram a inexistência de abstrações, conexões e linhas de raciocínios. O PowerPoint tende a confundir efeito de conhecimento com o próprio conhecimento. Nos cursos escolares ou universitários,  o fenômeno do “apostilamento” (substituição dos livros por apostilas descartáveis) tende a piorar: a transformação dos conteúdos em slides bullets-izabels.

(c) Distração: pode ser uma boa e inofensiva ferramenta para os tímidos quebrarem o gelo ou troca de marcha em um discurso. Mas, por outro lado, pode se converter em ferramenta ideológica poderosa: desviar atenção da falta de conteúdo do emissor para os itens e imagens dos slides. E se ainda tiverem efeitos de animação, tanto melhor. Ou ainda, como aponta Franck Frommer, o conferencista passa a não se sentir responsável pelo que diz. O orador simplesmente repete o que está no slide que passa a se tornar mais do que uma muleta – o efeito de conhecimento vira a “prova” de uma “convicção”.

(d) Anestésico: Numa apresentação em uma sala escura, tudo o que devemos fazer é olhar os slides sem nos preocuparmos com a profundidade da argumentação. Os bullets itens simplificam o pensamento, mastigam informações. Resultado: anula-se o intercâmbio, não há interação. Os slides, em si, parecem a prova do conhecimento ou mesmo de uma peça processual, como nos quis mostrar o bravo procurador Dellagnol.

Um dos clichês da criatividade é “pensar fora da casinha”. Tão valorizado pelo atual ideário meritocrático (“fazer a diferença” etc.) é paradoxal que, ao mesmo tempo, o mundo fale para pessoas enredadas numa imensa tigela de espaguete mental de setas, balões, linhas e bullets de uma linguagem que foi além da orwelliana. Agora é powerpointiana.