O governo é ilegítimo. E o problema dos governos ilegítimos é que
tentam sempre impor-se pelo único caminho que lhes resta: a violência
Por Tadeu Breda | Imagem: Edson Palheta (Jornalistas Livres)
A discussão sobre se foi ou não foi golpe está definitivamente
superada. As articulações entre Eduardo Cunha e Michel Temer, as
conversas entre Sérgio Machado e Romero Jucá, a seletividade da Lava
Jato e o impeachment aprovado na Câmara e no Senado por todas as razões
possíveis e imagináveis, menos pelas tais pedaladas fiscais que embasam o
pedido – e que também foram praticadas por FHC e Lula e que são
praticadas por governadores e prefeitos brasileiros –, já esclarecem do
que se tratou o processo. Isso sem contar a deposição de uma presidenta
sobre quem não pesa nenhuma acusação formal, muito menos uma condenação,
e que mesmo assim foi julgada pelos membros do gangsterismo unido da
República, condenada – mas sem perder os direitos políticos – e
substituída por um cidadão “ficha suja” a quem a justiça eleitoral
considera inelegível.
Como se não bastasse, as hostes oposicionistas falavam em impeachment
antes mesmo do segundo turno das eleições de 2014. Vários textos ainda
levantam outros aspectos da discussão terminológica, revisitando
inclusive o processo contra Fernando Collor, como faz o historiador
Marcos Napolitano na revista Brasileiros. Para complicar ainda
mais a vida de Michel Temer, vimos que o golpista foi colocado de
escanteio na foto oficial do G20, bem na pontinha, quase fora do
enquadramento, fato que ainda nunca havia acontecido com os presidentes
brasileiros eleitos pelo voto popular – e nem mesmo com o ex-ministro da
Fazenda, Guido Mantega, quando representou Lula em um dos encontros. Em
comunicação oficial do G20, aliás, Temer não foi referido como presidente, mas sim como “líder” brasileiro, e sequer foi nomeado.
Tivemos, portanto, um golpe – parlamentar, constitucional ou
institucional, enfim, golpe. Não há mais que se perder em questões
semânticas sobre esse assunto. Tampouco temos que esperar que os
golpistas se reconheçam como tal. Até hoje os artífices e apoiadores de
1964 falam em revolução democrática para salvar o país do comunismo –
não admitem o golpe, mesmo tendo colocado tanques na rua em 1º de abril,
forçado o presidente a se exilar e tolerado crimes contra a humanidade.
Como muito bem pontuou o colunista Jânio de Freitas, um golpista jamais
admitirá seu golpismo: torcerá fatos, distorcerá termos, torturará
conceitos até que se enquadrem na definição que melhor se ajusta aos
seus interesses.
E isso nos obriga ainda mais a dizer em todas partes que o sujeito
que ocupa o Palácio do Planalto é um presidente biônico, um golpista,
apoiado por políticos golpistas no Congresso, por empresários e
agricultores golpistas nas associações patronais, por jornalistas
golpistas na imprensa, por trabalhadores golpistas em alguns sindicatos e
por cidadãos golpistas na sociedade – sobretudo nos bairros mais
remediados das capitais. Eles repetirão à exaustão que respeitaram a
Constituição, que seguiram o rito imposto pelo Supremo Tribunal Federal,
que contaram com a anuência dos “representantes” do povo, que o
processo transcorreu no mais profundo respeito à legalidade.
Esquecem das centenas de exemplos históricos em que monstruosas
injustiças foram cometidas dentro da lei, com as bênçãos das
autoridades, mas adoram assistir filmes hollywoodianos e chorar diante
de casos clamorosos em que um inocente é levado à cadeira elétrica
injustamente ou passa a vida atrás das grades tentando provar sua
inocência. Esquecem também que instituições, quando cooptadas por
interesses particulares, como é o caso das instituições brasileiras, não
cumprem seu papel – e, portanto, não são legítimas. Quantas vezes será
preciso lembrar que as delações vazaram apenas contra um partido e,
quando vazaram contra outras siglas, não tiveram o mesmo tratamento?
Nesse sentido, o que assistimos pela televisão nos últimos dias
não se tratou de um golpe novidadeiro. Como aponta o filósofo Paulo
Arantes, e não só ele, 1964 não acabou. Como não houve uma devida
transição à democracia, com memória, verdade e justiça, suas estruturas
autoritárias permanecem – olhemos para a Polícia Militar, para a
tortura, para as reformas de base que jamais foram realizadas. Em 31 de
agosto, pois, assistimos à culminação de mais um golpe, um golpe dentro
do grande e permanente golpe, agora aplicado por uma ampla uma aliança
golpista que decidiu desrespeitar as frágeis regras do jogo eleitoral e
pavimentar pela manipulação e pelo conchavo o caminho de Michel Temer à
cabeça do Estado brasileiro.
Admitir que houve um golpe, reconhecê-lo e nominá-lo não significa
esquecer que 1964 ainda não acabou. Muito menos implica negar a
corrupção do PT, suas negociatas com as grandes empreiteiras ou os
estelionatos eleitorais de Lula, em 2002, e Dilma, em 2014. E ainda
menos simboliza uma adesão ao governo que acaba de ser cassado. A
presidenta eleita e seu partido endossaram a tese do golpe, claro, e
mobilizaram mundos e fundos na tentativa de emplacar essa narrativa
dentro e fora do país. Boa parte das forças de esquerda também – e o
fazem sem encampar as demais posições defendidas pelo petismo ao longo
do processo de impeachment.
Muita gente que entende que sofremos um golpe despreza as afirmações
da presidenta de que, com ela, vivíamos em plena democracia. É preciso
separar a retórica dos fatos: a imolação de Dilma e do PT como arautos
da democracia contra os vampiros da República é pura retórica; o
golpismo de seus adversários – boa parte deles, ex-aliados – é fato.
Gritar “Fora Temer”, agora, não deve ser interpretado como “Volta,
Dilma”. O retorno da presidenta foi uma quimera acalentada pelo PT, um
partido do establishment, na tentativa de barrar o golpe institucional
por meio dos canais abertos pelo golpismo dentro das instituições. As
instituições, porém, se demonstraram incapazes para barrar o golpe –
assim como são cotidianamente incapazes de aplicar a Constituição e
garantir direitos básicos à maioria da população.
Uma democracia que permite golpes, que internaliza deposições, que
legaliza o assalto ao poder, não pode ser chamada democracia. Afinal, o
que se poderia esperar de uma democracia que sistematicamente tolera o
genocídio da juventude negra nas periferias das grandes cidades e dos
indígenas nos campos e florestas, que permite os abusos dos megaprojetos
e dos megaeventos e que se submete direitos sociais básicos aos ditames
do mercado financeiro? Quem se atrela a princípios – não a cargos ou a
conveniências político-partidárias – tem essa consciência desde muito
antes da queda de Dilma Rousseff e jamais compraria seu discurso
democrático, mesmo nos momentos mais emotivos do massacre psicológico
que sofreu durante catorze horas de interrogatório no Senado.
A experiência do PT no poder, com alguns momentos louváveis de
redução da pobreza e da desigualdade, reeditou o conservadorismo do
Estado brasileiro em sua melhor forma, avançando inclusive sobre a
Amazônia, em uma atualização do colonialismo interno que sempre
praticamos. A repressão ao dissenso também faz parte do legado petista.
Populações indígenas que estavam no caminho de grandes hidrelétricas,
portos ou cultivos de soja conheceram, sob o petismo, as armas da
Polícia Federal e da Força Nacional de Segurança.
Em junho de 2013, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que
durante o processo de impeachment ganhou os holofotes por sua efusiva
defesa da democracia, ofereceu colaboração total aos secretários de
Segurança Pública estaduais para “controlar” as manifestações pela
redução da tarifa de transporte público. Enquanto as tropas de choque,
com a anuência de governos municipais e estaduais, desciam o sarrafo nos
protestos, não se ouviu em Brasília uma única condenação contundente à
barbárie policial. Quando o descontentamento se voltou contra a Copa do
Mundo, uma das “grandes conquistas” internacionais do PT no poder, a
colaboração do governo federal com a repressão foi ainda mais intensa.
Geraldo Alckmin não cegou Sérgio Silva e Vitor Araújo sozinho, assim
como Sérgio Cabral não é o único político responsável pela condenação de
Rafael Braga.
Nada disso faz, porém, com que o golpe seja menos golpe: apenas
mostra que a democracia que tínhamos não era uma democracia – nunca foi.
“Eu disse, olhando na bolinha dos olhos da Dilma, quando recebi um
prêmio em Brasília, que a ditadura não acabou. Se tivesse acabado, não
haveria Mães de Maio”, diz Débora Maria da Silva, líder do movimento que
exige justiça pelas 493 mortes provocadas pela polícia paulista em maio
de 2006. Nunca é demais lembrar os crimes de maio.
A questão, agora, é que teremos uma democracia ainda menos
democrática. Porque, apesar de todas suas injustiças e contradições, os
governos do PT, assim como os do PSDB, foram todos eleitos pelo voto
popular. Michel Temer foi imposto pela vontade de 367 deputados e 61
senadores. É o terceiro presidente ungido indiretamente em uma
democracia de 31 anos que teve apenas quatro chefes de Estado alçados ao
poder pelas urnas. O governo que temos é ilegítimo. E o problema dos
governos ilegítimos é que costumam impor-se pelo único caminho que lhes
resta: a violência.
O presidente biônico foi muito claro em seu primeiro pronunciamento à
nação, na noite do golpe, ao dizer que um dos alicerces de seu governo
será a “pacificação do país”. Pacificação não é um verbo empregado em
vão. A pacificação dos povos indígenas pelos sucessivos governos
brasileiros resultou em genocídio e esbulho territorial. A pacificação
das favelas do Rio de Janeiro, uma das heranças da Copa do Mundo e dos
Jogos Olímpicos, implicou operações conjuntas da Polícia Militar, Bope,
Polícia Civil, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Marinha,
Exército e Aeronáutica nos morros cariocas – tudo transmitido ao vivo
pela televisão. Na ocasião, as Forças Armadas colocaram em prática a
expertise adquirida pelos militares brasileiros como comandantes das
tropas de ocupação – não por coincidência também chamadas de “forças de
paz” – da ONU no Haiti, um dos preços que Lula resolveu pagar para
pleitear um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações
Unidas. As Unidades de Polícia Pacificadora, instaladas logo depois da
suposta expulsão dos traficantes das favelas do Rio, desapareceram com
Amarildo.
Ninguém pode ser pacificado. A paz só pode brotar – espontaneamente –
quando há justiça. O termo pacificação significa seu contrário: é um
eufemismo para guerra. E essa guerra começou a ser travada contra os
opositores de Michel Temer antes mesmo da culminação do golpe de 31 de
agosto. Protestos contrários ao impeachment realizados em São Paulo e
Rio de Janeiro desde o dia 29 de agosto têm sido sucessivamente
reprimidos com enorme brutalidade. Enquanto o presidente biônico voava
para a China, onde almejou, sem tanto sucesso, ser reconhecido pelo G20
como presidente de uma das dez maiores economias do mundo, a jovem
Deborah Fabri perdia a visão do olho esquerdo, vítima do estilhaço que
se desprendeu de uma das dezenas de bombas lançadas pela Polícia Militar
de São Paulo. Não é a única vítima daquela jornada repressiva: o
psicólogo Gustavo Chiesa também foi atingido no olho, mas, felizmente,
não perdeu a capacidade de enxergar. Outros tantos foram feridos em seus
corpos e seus direitos de expressão e manifestação.
Os relatos são unânimes em denunciar a truculência da PM e sua
intenção de ferir, intimidar e massacrar, promovendo cercos, evitando a
dispersão dos manifestantes e usando bombas e balas de borracha sem
qualquer critério ou respeito às normas nacionais e internacionais. Tudo
ficou mais claro em 4 de setembro, quando São Paulo assistiu a uma
gigantesca manifestação contra Michel Temer. Mais de 100 mil pessoas
caminharam tranquila, pacífica e ordeiramente da Avenida Paulista até o
Largo da Batata. Foram mais de quatro horas de manifestação.
Praticamente não havia policiais em todo o trajeto – o que fez com que
não houvesse um só quebra-quebra. Assim como junho de 2013 já havia
demonstrado, não é coincidência: não tem PM, não tem violência.
Mas no final havia polícia – e muita. Quem chegava sorrindo ao Largo
da Batata, feliz com uma demonstração massiva de descontentamento com o
golpismo, encontrou caveirões e policiais do Choque fortemente armados
com suas espingardas, bombas, armaduras, capacetes e escudos. Uma imensa
demonstração de força. Muitos deles estavam mascarados – o que é muito
curioso em uma corporação que não admite que manifestantes cubram o
rosto. Não demorou para encontrarem uma desculpa esfarrapada – vândalos
estão depredando o metrô, o que os próprios seguranças do metrô negaram –
para começar seu show pirotécnico: tiro, porrada e bomba para mandar
todo mundo embora. Acabou a festa: nada de ficar comendo churrasquinho
na praça. Vídeos e relatos da performance policial pululam na internet.
Ainda não apareceu nenhum de gente quebrando nada.
Não há, agora, como nunca houve, limites para a ação policial. E o
golpe de Michel Temer não é pioneiro em cegar manifestantes: eis um
conhecimento que a Polícia Militar de São Paulo, comandada há mais de
vinte anos por governos tucanos, desenvolveu com maestria e garantias
jurídicas de impunidade. A questão é que, agora, os aparatos repressivos
paulista e federal estão irmanados na pessoa de Alexandre de Moraes. O
ministro da Justiça cumpre a cota do PSDB no governo golpista em
reconhecimento aos serviços prestados à frente da Secretaria de
Segurança Pública de São Paulo. Enquanto ocupou a pasta, foi um
funcionário diligente e gentil com as marchas favoráveis ao impeachment,
enquanto reprimiu violentamente os movimentos sociais, sobretudo os
secundaristas, no final de 2015, e o Movimento Passe Livre, no início de
2016.
Sob o comando de Alexandre de Moraes, a Polícia Militar de São Paulo
escancarou sem pudores suas opções políticas a ponto de emitir notas
oficiais em apoio às reivindicações verde-amarelas. E são essas opções
políticas que dão o tom à repressão aos protestos contra Temer. Em 31 de
agosto, na Avenida Paulista, apenas os apoiadores do golpe puderam se
manifestar em paz. A polícia protegeu bolos e champanhes dos cidadãos
que comemoravam a queda de Dilma, enquanto, alguns metros mais adiante,
brutalizavam os opositores do novo regime. Foram dias de repressão
ininterrupta a quem desejava expressar sua discordância com o golpe. E
as demonstrações só não estão sendo mais massivas porque parcela
significativa da população está com medo da truculência policial.
A imprensa, que poderia fazer frente aos abusos, prefere, como
outrora, chancelá-los. Canais de TV, rádio, jornais e revistas estão
alinhados ao golpismo. Não se deve esperar nenhum apoio dos grandes
meios de comunicação para denunciar nacionalmente o modus operandi
totalitário das forças de segurança. Pelo contrário, a tradicional
manipulação midiática brasileira pinta os manifestantes anti-Temer como
baderneiros violentos – ou fascistas, como vergonhosamente sugeriu a Folha de S. Paulo em
editorial. Nesse sentido, há que se louvar os cidadãos que, contra tudo
e todos, e colocando-se em risco, saem às ruas contra o golpe. Uma vez
que argumentos, fatos e razões não bastam, eles praticam uma política
física, material, concreta, resistindo ao presidente biônico – e à sua
truculência – com seus próprios corpos.
Em meio à profunda crise da esquerda, à falta de alternativas
imediatas e à ausência de um horizonte utópico, o antigolpismo, hoje, se
expressa concretamente na admirável coragem de cidadãos que saem às
ruas sabendo de antemão que podem ser massacrados pela polícia. O
sangue, infelizmente, é o que está aumentando os decibéis do “Fora
Temer” – e o que está escancarando o caráter pacificador de seu governo
ilegítimo. A continuidade dos protestos, sua eventual reprodução pelo
território nacional e sua previsível repressão violenta terão a
capacidade de responder a algumas perguntas que ainda não foram
devidamente formuladas. A principal delas parte de uma certeza. Tivemos
um golpe. Teremos uma ditadura?
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