Por Marcos Barreira.
1.
Desde os
anos 1990, ganhou forma no Rio de Janeiro um modelo de urbanismo
seletivo e superficial. Esse novo urbanismo pretende maquilar as
contradições do espaço urbano enquanto os agentes da esfera política
simulam uma situação de normalidade capitalista e criam a imagem da
cidade como “lugar atrativo” para empresas e projetos turísticos.
Os Jogos
Olímpicos estão no centro da estratégia das três últimas administrações
municipais para reverter a imagem negativa da cidade, consolidada desde a
crise dos anos 1980/90. A primeira iniciativa nessa direção ocorreu em
1996, com o projeto Rio-2004, que já considerava os Jogos como uma
“oportunidade” de superação da crise. Também a referência de renovação
urbana usada no Plano Estratégico (1993/95) adotado pela Prefeitura era o
“modelo Barcelona”, até então, aparentemente bem-sucedido. A imagem do
Rio de Janeiro como “Cidade Olímpica” seria alçada a um patamar
internacional e vendida como um produto para criar contextos favoráveis
aos investimentos.
Esses
discursos remetem às “estratégias locais” de política urbana, nas quais
as cidades e os agentes de mercado reforçam cada vez mais o seu
protagonismo, o que, por sua vez, indica uma guinada histórica ocorrida
na década de 1990: o recuo dos projetos falidos de desenvolvimento
nacional periférico e a ascensão em escala global das políticas
neoliberais. Em termos mais gerais, é possível falar da “crise do
capitalismo de intervenção estatal” da segunda metade do século XX1,
resultando não só nas políticas de desregulamentação econômica, mas
também no crescimento do papel de algumas cidades como centralidades
financeiras e culturais. Essa tendência pode ser descrita como a
passagem do sistema de economias nacionais coerentes para uma rede de
cidades diretamente integradas à economia mundial pelos fluxos
financeiros e pelos novos sistemas de comunicação. O planejamento
estratégico é basicamente a política urbana que visa uma maior
integração da cidade à dinâmica da globalização. Essa valorização de
experiências urbanas particulares ditadas pela lógica empresarial
significa que, também no plano local, a esfera política, que antes
organizava todo o espaço da economia nacional, se vê rebaixada a um
aspecto secundário dos processos econômicos.
2.
A premissa
da orientação pró-mercado do novo urbanismo é que o espaço da cidade não
seja mais pensado como um todo e que a atuação dos governos se realize
de forma localizada e pontual. Seus defensores alegam que o objetivo é
superar as antigas concepções burocráticas de planejamento estatal. Mas
isso é apenas uma forma de os governos e administrações municipais se
desobrigarem do compromisso com os direitos sociais e as políticas de
tendência mais universalizante que marcaram o período da modernização.
Essa mudança de perspectiva ficou visível no Rio de Janeiro quando os
programas de melhoramento de áreas marginalizadas, que fizeram parte, na
década de 1980, de uma nova atitude política do governo em relação aos
direitos dos moradores nas favelas e periferias – embora já não houvesse
recurso para uma ampla política habitacional na conjuntura
“pós-milagre” de estagnação econômica – começaram a diminuir em favor
das ações orientadas pelas ideologias de mercado.2
A partir daí, o que se verificou foi o abandono progressivo dos
investimentos em serviços básicos. Por outro lado, os efeitos
polarizadores de longo prazo desse tipo de política exigem cada vez mais
uma ação compensatória por parte do Estado em termos de programas
sociais. Em última análise, a lógica da privatização do espaço urbano e
os programas de renda mínima andam juntos, como subprodutos do contexto
geral de esgotamento dos processos econômicos inclusivos.
A forma
preponderante de atuação do Estado é cada vez mais a chamada parceria
público-privada. Não se trata, é claro, de uma associação visando
ampliar os bens de consumo coletivo, mas do crescente peso do mercado
nas decisões administrativas, sem as mediações do “interesse público”. O
Estado despe-se de sua roupagem universal para se tornar um agente
direto dos grupos privados. Esse conluio mafioso entre as elites
política e empresarial funciona, em última instância, como uma cobertura
estatal dos investimentos. Processos de reestruturação urbana talvez
sejam, nos dias de hoje, o meio mais utilizado de mobilização dos
recursos públicos em larga escala para finalidades empresariais. Os
recursos drenados pelos planos de “renovação” em áreas simbólicas e nos
locais com maior potencial de valorização imobiliária são a garantia –
fornecida pelo Estado – para investimentos privados que, de outra forma,
não se realizariam.
No caso do
Rio de Janeiro, os grandes eventos tem desempenhado um papel fundamental
na mobilização dos recursos. Há quase uma década (desde os Jogos
Pan-americanos de 2007), a cidade ingressou em um ciclo de eventos
internacionais de grandes proporções, cujo encadeamento deveria
alavancar os investimentos. No entanto, antes de ser “vendida” mundo
afora como lugar atrativo, a estrutura urbana precisa se adequar aos
padrões internacionais de consumo e às dispendiosas exigências de cada
um desses eventos. Os principais gastos ficam por conta dos equipamentos
e das obras de mobilidade, mas também aqui não há qualquer orientação
pelo interesse geral: tais obras correspondem mais aos acordos com os
“parceiros” privados ou – no caso da Olimpíada – à logística dos
próprios eventos do que às demandas da população local. Também crescem
os gastos com intervenções urbanísticas estetizantes em pontos
importantes para a recriação da imagem da cidade. Com isso, o
endividamento estatal não para de crescer, numa tendência que muito
rapidamente se torna insustentável. A expectativa em relação aos efeitos
positivos que grandes eventos como os Jogos Olímpicos poderiam trazer
para a cidade logo se revela um paradoxal fim em si mesmo: produz-se uma
mobilização econômica temporária capaz de remodelar cenograficamente a
cidade e mantê-la em evidência, preparando novos eventos que, por sua
vez, deveriam trazer novos investimentos ao preço de mais um conjunto de
intervenções onerosas e pontuais.
3.
No mesmo
período em que o Brasil encaminhava suas reformas econômicas, com
abertura de mercados e “modernização” do Estado, a gestão da cidade
começava a ser pensada em termos empresariais. Não por acaso, foi nessa
mesma conjuntura, em meados dos anos 1990, que surgiram, quase
simultaneamente, o primeiro projeto de renovação urbana do Rio baseado
na experiência de Barcelona e o discurso sobre a necessidade de ocupação
militar das favelas. Entre 1994 e 1995, diversas favelas cariocas foram
ocupadas pelas Forças Armadas, na Operação Rio, a primeira intervenção
prolongada – e reconhecidamente fracassada – para produzir uma “sensação
de segurança” junto às camadas médias da população. Nesse período,
formaram-se neste segmento da população vários movimentos e campanhas
midiáticas “contra a violência”. Ao invés da perspectiva inclusiva das
ideologias desenvolvimentistas, sobretudo o esforço de escolarização
integral que, ainda nos anos 1980, figurava no centro dos debates sobre a
crise social, a conjuntura dos anos 1990 na cidade do Rio de Janeiro,
foi marcada pelo reforço da militarização. A imagem da cidade
reproduzida nos meios de comunicação se confundiu com o discurso das
camadas médias sobre a criminalidade violenta, o que favoreceu uma
política conservadora de “ordem urbana” direcionada contra as populações
marginalizadas.
Na década
seguinte, a política de segurança permaneceu orientada pela retórica
belicista da “guerra ao tráfico”, com recurso frequente, embora
limitado, às Forças Armadas, enquanto pequenos grupos locais articulados
ao próprio aparato policial começaram a ocupar e a exercer um controle
informal, como grupos milicianos, de favelas e áreas periféricas da
Região Metropolitana. O governo estadual foi buscar na cidade de
Medellín, um dos palcos da guerra do Estado colombiano contra grupos
insurgentes e paramilitares pelo controle das favelas, um modelo
experimental de ocupação permanente para áreas nas quais ele tinha um
controle apenas limitado. Na retórica do governo, a guerra urbana foi
transformada em “pacificação” por meio da ocupação de territórios. Entre
a inauguração da primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), no
final de 2008, e o anúncio da escolha do Rio como sede das Olimpíadas,
transcorreram poucos meses. Em 2009, a marca “UPP” já fazia parte – e
com um papel destacado – da concepção de política urbana baseada no marketing
urbano. Mais do que isso, a UPP foi, desde o início da campanha
Rio-2016, a principal fiadora do projeto da “Cidade Olímpica” – e, como
exemplo de sucesso no Rio de Janeiro, até se tornou um produto de
exportação pra outras cidades brasileiras. A missão de oferecer a imagem
de um ambiente seguro fez com que as UPPs, muito rapidamente,
avançassem de simples experiências locais à condição de um projeto mais
abrangente e articulado com o novo momento de projeção da cidade.
Com a
ocupação militar das favelas, também a gestão da segurança foi integrada
ao novo urbanismo. Já não se falava apenas da necessidade de colocar o
Exército nas ruas e a polícia nos morros. A viabilidade do projeto
dependia de que as ocupações se revestissem de uma retórica inclusiva. É
provável que a “pacificação” não tivesse ganhado as dimensões atuais,
com mais de 40 unidades implantadas em diversas áreas da cidade, sem os
megaeventos internacionais. A miséria dos estudos sobre “violência
urbana” reside na tentativa sistemática de desfazer esse nexo a partir
de enfoques tradicionais. Pretende-se analisar a implantação das UPPs a
partir de “contextos particulares”, sem levar em consideração a lógica
territorial das ocupações de favelas e a sua relação com um determinado
projeto de cidade. Não por acaso, essa abordagem descontextualizadora
enxergava nas UPPs uma “novidade positiva” e uma possibilidade de
reforma das práticas policiais. “As UPPs viraram um macabro consenso”,
como disse a socióloga Vera Malaguti. Mesmo os posicionamentos que não
se comprometeram muito diretamente com a suposta “desmilitarização” das
polícias terminam por relativizar a prática das UPPs em função das
“rotinas locais”, de modo que ela não seria, em si mesma, nem um avanço
no sentido da reforma da instituição policial, nem uma mera continuação
das práticas anteriores. É claro que, a partir de situações
particulares, é sempre possível identificar, por exemplo, alguma efetiva
redução dos confrontos e das mortes violentas, mas justamente esse
caráter particular impede uma conclusão válida para a cidade como um
todo. Aqui, tal como no planejamento estratégico, não há mais nem sinal
de uma visão de conjunto dos processos sociais.
Para além da
vitrine de segurança ou da criação de ambientes favoráveis aos lucros –
e, de modo especial, os da especulação imobiliária –, as UPPs também
são um braço armado através do qual o Estado exerce o controle
sobre uma parte das camadas pobres da população. Mas, ainda assim, é
limitador falar em ocupação dos “espaços da pobreza”, pois a maior parte
das áreas mais pobres – que são também as mais violentas – ficou de
fora dos planos da Secretaria de Segurança. A lógica territorial da
“pacificação” é mais complexa. Ela alcança – direta ou indiretamente –
os locais que desempenham um papel estratégico no modelo de cidade do
empresariamento urbano: áreas com destinação turística, locais de
concentração de eventos, principais vias de circulação, áreas com
potencial de valorização etc. Para o urbanismo seletivo orientado pelas
expectativas de lucro, a preocupação com a “segurança” torna-se cada vez
mais proporcional à importância econômica dos lugares e, em última
análise, significa uma proteção dos segmentos da população e do espaço
urbano mais integrados pelo consumo. É sabido que mesmo as UPPs
apresentam diferenças significativas, de acordo com a área da cidade em
que se encontram. Nesse sentido, “UPP” é apenas um rótulo ou uma marca
que encobre muitas realidades: sua presença nos bairros mais pobres não
produz os mesmos efeitos – sociais e econômicos – verificados nas
favelas da parte rica da cidade.3
Por outro
lado, as áreas periféricas permanecem à margem da regulação estatal e
são dominadas por um conjunto de relações informais e modalidades de
violência cada vez mais distantes da mediação institucional. Ainda mais
grave é o fato de, em tais lugares, a “segurança” ter se tornado um
negócio privado organizado por poderes mafiosos fragmentários: de
maneira silenciosa, as “milícias” estabelecidas nas periferias expõem a
incapacidade de o Estado assumir as respectivas funções básicas. Desse
modo, o “poder público” começa a se desagregar – por dentro e por fora
das instituições – em bandos armados que tem como finalidade praticar a
pilhagem da sociedade.4
Tal aprofundamento da divisão do espaço urbano em áreas “nobres” e
periféricas, com padrões inteiramente diferenciados de atuação do
Estado, faz parte da lógica da “pacificação”. Seu objetivo não declarado
sempre foi restringir a “guerra urbana” à periferia. Nesse aspecto, ao
contrário do que se poderia imaginar, ela não é um completo fracasso: o
resultado até agora alcançado não foi a redução dos conflitos armados,
mas a ampliação da polarização social entre as áreas onde as UPPs
realizam uma função de contenção e as periferias nas quais a disputa
pelo controle territorial informal foi intensificada.
4.
Outro
aspecto da “pacificação” de favelas é a ideologia da integração. Esse
discurso foi estimulado por uma conjuntura recente de expansão do
crédito para o consumo de baixa renda. Por esse motivo, ele se dá
preferencialmente em termos de oportunidades de mercado e não de acesso a
direitos sociais. Por trás de tudo isso se encontra uma ideologia do
“capitalismo popular” que se resume na ideia de que os pobres podem
conquistar um lugar na sociedade atual, sem a necessidade de mudanças
estruturais – ou melhor: que a inclusão econômica dos pobres seria a
maior de todas as transformações. O empreendedorismo, que é outro
aspecto da ideologia do “capitalismo popular”, logo se tornou a panaceia
para os problemas das favelas. O fim dos conflitos armados permitiria
desenvolver o “potencial oculto” de milhares de “empresários populares” e
multiplicar seus exemplos. A UPP Social deveria promover o
“desenvolvimento local dos territórios pacificados” por meio do estimulo
às iniciativas econômicas ou atividades definidas como “culturais”:
crédito popular, capacitação profissional, grafite e esportes, produção
de moda, agências de turismo e intercâmbio, entre muitas outras. Desse
modo, até mesmo a ação “social” foi pensada em termos de mercado, como
investimento em “capital humano”.
As formas
mais diretas de estímulo ao desenvolvimento econômico das favelas são as
linhas de crédito, apoio técnico a pequenos empreendedores e a criação
de bancos comunitários. Na Cidade de Deus está em circulação, desde
2011, uma moeda social que funciona como projeto piloto para outras
áreas da cidade. Com um uso restrito e empréstimos sem juros para
moradores e comerciantes, o banco, que depende do financiamento
governamental, visa estimular o comércio local, concentrando o consumo
dentro da favela. Entre os investidores privados, destaca-se a FHolding,
que reúne dez empresas que atuam exclusivamente em favelas e propõe uma
“revolução social pela via econômica”. Outros projetos, como o Rio Top
Tour, financiado pelos governos federal e estadual, apostam no
desenvolvimento de atividades e negócios relacionados ao turismo nas
“comunidades pacificadas” e se definem como programas de inclusão
social. O que os unifica é a ideia de mudança da matriz econômica da
favela: dos mercados informal e “paralelo” à integração nos “novos
mercados” de serviços e atividades culturais. “Sem capitalismo não há
justiça social”, afirmou o ex-governador Sergio Cabral na inauguração da
UPP no Complexo do Alemão. Um plano que simbolizou esse momento de
otimismo em torno da ascensão pelo consumo foi o projeto fracassado de
Shopping Center no interior do mesmo Complexo, anunciado para 2014, com
lojas populares e 100% de mão de obra local. Mas algo assim pressupõe,
igualmente, consumidores locais, o que demonstra a convergência entre o
discurso recente sobre as “novas classes médias” e as ideologias do
empreendedorismo e do “capital humano”.
É evidente
que essa integração econômica corresponde a efeitos localizados e
segmentados, tornando visível uma espécie de “gentrificação” das favelas
com maior potencial econômico e turístico. Junto com a integração
ocorre um agravamento das condições de vida na cidade como um todo. A
pequena diminuição da desigualdade entre a cidade “formal” e a favela
verificada nos últimos anos decorreu mais da deterioração da primeira do
que da melhoria da segunda. Mesmo que algumas favelas tenham se
beneficiado, isso implica um deslocamento dos moradores mais pobres
produzido pelas pressões econômicas. Além do incremento do mercado
imobiliário local (particularmente visível em favelas como Rocinha,
Vidigal ou Santa Marta), também ocorre uma substituição parcial da
economia informal pelos serviços de grandes redes comerciais. Ambos os
processos acarretam aumento dos custos de vida ou endividamento dos
moradores, reforçando a diferenciação social, mas o marketing
urbano os esconde, transformando experiências localizadas e exemplos
individuais de sucesso em símbolos de uma era de prosperidade para as
favelas.
As UPPs
desempenham, portanto, um papel essencial na ideologia da integração dos
pobres. É como se a “pacificação” fosse uma condição para o
desenvolvimento das relações de mercado. Essa conexão, no entanto, é
ilusória. Alguns críticos do empresariamento urbano e da “gentrificação”
da cidade acreditam que se trata de um novo padrão de acumulação (via
espoliação) das camadas populares. É como se a expansão capitalista nas
favelas resultasse em formas negativas de inclusão. Mas esse tipo de
administração armada de territórios tem pouco a ver com mecanismos reais
de integração econômica. Associadas ao aparente sucesso do “capitalismo
popular”, as ocupações militares fazem parte, na verdade, de um quadro
de segregação social e urbana que resulta no deslocamento interno da
pobreza, em remoções forçadas ou “brancas” etc. Em tais casos, as
ocupações assumem a forma de uma administração repressiva de massas
sobrantes, revelando um quadro de incapacidade estrutural de absorção da
força de trabalho pelos mercados emergentes do comércio popular e dos
serviços precarizados.
Até mesmo
nas favelas que possuem um mercado mais desenvolvido, muitas pessoas
continuam forçadas à marginalização e à pobreza extrema. Obviamente, não
se trata de um fenômeno local ou apenas conjuntural. O relatório da OIT
sobre “trabalho decente e juventude” afirma que, na América Latina, 20%
dos jovens entre 15 e 24 anos se encontra fora da escola e do mercado
de trabalho.5
No Rio de Janeiro, uma pesquisa com 700 jovens de favelas com UPPs
revelou que 26% dos entrevistados encontravam-se na situação descrita
pela OIT, sem trabalho e fora da escola – um percentual semelhante ao
dos países mais pobres da América Latina, como Honduras e Guatemala.
O aspecto
ilusório de todo esse discurso sobre a integração dos pobres reside no
fato de a universalização das relações de mercado ocorrer sempre através
da “exclusão interna”. Nesse sentido, a razão estrutural para a
integração falhada das populações de baixa renda em uma metrópole como o
Rio de Janeiro é que, quanto mais a sociedade se mercantiliza, mais
frágeis se tornam os laços sociais e maior é a concorrência entre as
pessoas. No caso das favelas, uma dinâmica como esta tem aspectos
particulares, pois ela não se refere, como acontece em outras esferas da
sociedade, a uma diminuição do papel regulador e “compensatório” do
Estado (ao contrário, neste caso, o que se verifica é um aumento da
presença estatal, embora o próprio aparato institucional adote uma visão
e um desempenho cada vez mais parecidos com os do mercado).
A
mercantilização das favelas falha duplamente: ao colocar em segundo
plano as necessidades coletivas, ele provoca a expulsão das camadas mais
pobres para as periferias; além disso, a mercantilização promove uma
brusca transformação no cotidiano da população integrada pela ampliação
dos pequenos empreendimentos e pela “formalização” das atividades já
existentes. A principal característica dessa transformação é a
substituição da cultura de solidariedade prática entre os moradores pela
lógica econômica. Os casos mais bem-sucedidos de integração e
valorização patrimonial, verificados em algumas favelas da zona sul
carioca, não representam uma ascensão social em larga escala dos
moradores, mas uma verdadeira renovação da população local ditada pela
concorrência. Dessa forma, a integração também pode ser vista – ao menos
em parte –como “queda” de uma fração das camadas médias empobrecidas,
forçada a abandonar seu status anterior. O fato de que alguns
aspectos do modo de vida das camadas médias sejam reproduzidos em
“favelas turísticas” por uma minoria de empreendedores e representantes
da ascensão pelo consumo é uma compensação limitada diante do
crescimento contínuo das periferias, que permanecem como áreas de
exclusão social estruturalmente inviáveis.
A relação da
cidade com os seus espaços de pobreza é sempre contraditória. Alguns
pesquisadores afirmam que a ocupação de um território pela UPP pode ser
entendida como o contrário da integração: ela tende a reforçar a
separação entre bairros normalizados e territórios “pacificados”. Uma
forma de desfazer essa divisão seria romper com o conceito de ocupação
permanente. Integrar a favela como bairro dependeria não só de um
tratamento igualitário no plano dos direitos, mas igualmente da
viabilidade econômica desses espaços. Novamente, estamos diante de um
tipo de argumentação em que a via econômica aparece como a forma de
superar diferenciações sociais. E, se é assim, a diminuição ou reforço
da diferença entre favela e cidade tem que ficar a critério do mercado.
Daí as políticas públicas para a favela, seguindo a tendência geral
iniciada nos anos 1990, também se esforçarem para adaptar a condição dos
pobres da cidade aos critérios empresariais. De qualquer forma, essa
integração, sempre reduzida a poucos lugares, é indissociável da
reprodução dos espaços de pobreza a partir da mobilidade interna. Outro
aspecto da contradição é que a integração mercantil da favela depende da
imagem e das identidades locais construídas pela separação entre a
cidade e a própria favela. Vender a cultura da pobreza em forma
estilizada, como se fosse um elogio à “diferença”, se torna uma
alternativa imediata para a falta de integração das camadas populares em
condições “normais” de mercado. Em outras palavras, a mercantilização
só pode integrar o separado enquanto separado. Essa reprodução no plano
simbólico da fragmentação social e territorial é o que se esconde no bem
intencionado discurso da integração econômica.
5.
O modelo
olímpico pertence a uma dinâmica global de ciclos especulativos: ele foi
idealizado, no plano nacional, como um símbolo do que se considerava
até há pouco o sucesso do projeto de crescimento com inclusão social e,
no plano da cidade, como indutor da conjuntura econômica, isto é, como
portador da esperança na retomada do crescimento local. Tanto um quanto o
outro se baseavam no crescente endividamento estatal e na capitalização
da expectativa de lucros futuros que dificilmente se realizarão. Nesse
aspecto, o Rio de Janeiro não é um caso isolado. Por toda parte, como
uma verdadeira tendência global, os recursos são mobilizados para a
construção de espaços de consumo turístico de alta renda (como Dubai) ou
para a construção de edifícios residenciais e centros de consumo sem
uso, como nas “cidades fantasmas” da China. Também nas grandes cidades
brasileiras, após a crise de 2008, o crédito facilitado para a moradia
das camadas sociais precarizadas e outras modalidades de gastos estatais
sem cobertura foram empregados para manter girando a roda da economia.
Na era da
globalização não é apenas o protagonismo das cidades que fica em
evidência, mas também as manifestações locais da crise do capital. Nesse
aspecto, o caso do Rio é exemplar. Até agora, os gastos imediatos com a
infraestrutura olímpica foram obscurecidos pelo consenso midiático em
torno do espetáculo esportivo. Mas o agravamento da crise fiscal
transforma rapidamente as esperanças ilusórias em frustração. O
esgotamento do modelo de crescimento produz uma mudança de expectativa
da sociedade em relação o futuro. A tentativa de usar o governo afastado
como bode expiatório da crise e insistir nos Jogos Olímpicos como uma
oportunidade de renovação do ambiente econômico não abre qualquer
possibilidade real de retomada. Idealizado no final da década passada
como parte de uma era de prosperidade, o projeto olímpico, que era para
ser uma vitrine internacional do sucesso brasileiro, serviu apenas para
expor mundialmente as mazelas nacionais. Sua crise é também o fim da
imagem do Rio como uma cidade integrada e sem conflitos. Não há como
dissociar as UPPs do fracasso econômico. É cada vez mais evidente que
elas eram a dimensão militarizada dos processos de segregação do
urbanismo de mercado. De certa forma, pode-se falar de um retorno à
situação crítica dos anos 1990, quando a única alternativa apresentada
pelos governos era ocupar de modo violento as favelas. Dessa vez, no
entanto, não há nenhum novo portador de esperanças. Sem a conjuntura
especulativa que inflou a bolha de consumo e com o fracasso anunciado da
maior parte dos investimentos imobiliários na cidade, a começar pela
tão sonhada expansão do centro financeiro para a área do porto, a
“pacificação” tende a abandonar sua frágil legitimação social e se
restringir à execução do controle social armado.
Diante dos
limites da integração mercantil, a sociedade – a começar pelas
periferias em expansão – perde progressivamente suas formas básicas de
conexão, que, em seguida, são “preenchidas” pela regulação armada. Não
estamos lidando apenas com a ampliação das desigualdades ou com a
reafirmação da separação entre a favela e a cidade. A polarização social
faz com que proliferem, de um lado, as zonas segregadas de insegurança
e, de outro lado, os espaços exclusivos intensivamente vigiados. Em
ambos os casos, as partes “formal” e “informal” da cidade se tornam
objeto do controle policial. É o que sugere a expressão “novo urbanismo
militar”.6
As tecnologias de controle utilizadas nas favelas, em situações
alegadamente excepcionais, viram rotina. Ao invés de uma integração das
populações marginalizadas na esfera dos direitos, é a própria esfera dos
princípios jurídicos formais que começa a ser erodida. De fato, a
igualdade é um princípio irrealizável quando a socialização mercantil
produz exclusão em larga escala. Um dos efeitos mais imediatos desse
movimento no sentido da desintegração da sociedade é a resolução do
interesse geral no interesse privado. Isso não vale apenas para o modus operandi
da elite política. Aqui também estão os elementos para a elucidação de
um fenômeno pós-político de erosão do gerenciamento estatal como as
“milícias”. Até bem pouco tempo, mesmo com a crise de legitimação do
programa de “pacificação”, a UPP era ainda a última unanimidade. Hoje,
seu prosseguimento como política formal já é posto em questão. A falta
de financiamento para a expansão do modelo de segurança da “Cidade
Olímpica” acontece no momento em que ele já alcançou todos os seus
objetivos. Se olharmos sem idealizações para esse modelo, veremos o quão
funcional ele foi para as políticas segregadoras e para a dinâmica
especulativa. Se há um fracasso, não há de ser o da militarização, pois o
aparato de controle, com ou sem financiamento regular, não será
desmontado. O que fracassou foi o projeto de uma cidade voltada para o
mercado. É por isso que a crise de legitimidade das UPPs aparece antes
como reafirmação da lógica de confronto do que como uma nova retórica de
integração social.
NOTAS1 Moishe Postone, Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx (São Paulo, Boitempo, 2015). 2 De certa forma, desde os anos 1980 que a ausência de uma ampla política habitacional pública decorrente da crise do modelo de desenvolvimento periférico já antecipava em mais de um aspecto essa viragem em favor do mercado. Sobre isso ver, Maurílio Lima Botelho, “Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e empreendedorismo dos pobres” em Até o último homem: Visões cariocas da administração armada da vida social (São Paulo, Boitempo, 2013), organizado por Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira. Nos anos 1990, a continuidade da política de urbanização das favelas foi uma espécie de transição – com rupturas e continuidades – entre o modelo falido de inclusão da década anterior e a lógica neoliberal de reprodução dos espaços segregados. Quando, no final da última década, verificou-se uma retomada da política habitacional para os setores de baixa renda, ela se deu em conformidade com uma orientação de mercado e funcionou como suporte para as remoções do projeto olímpico. Sobre a relação entre os programas de habitação popular e o retorno das remoções nas favelas, ver Fátima Tardin, “Os projetos de urbanização do Morar Carioca começaram a ser feitos apenas para criar números de casas a serem removidas”. 3 Marcos Barreira, “A vitrine e a guerra: estratégias territoriais de ocupação e integração das favelas cariocas”. Revista Continentes (UFRRJ), ano 3, n.5, 2014. 4 Franz Schandl, “Pilhagem social: mosaico de uma desintegração feito com pedras desordenadas”. Sinal de Menos, n 1, 2009. 5 “Trabajo Decente y Juventuden América Latina”. OIT / Oficina Regional para América Latina y el Caribe, 2013. 6 Stephen Graham, Cidades sitiadas : o novo urbanismo militar, São Paulo: Boitempo, 2016.
***
Marcos Barreira é
psicogeógrafo, especializado em teoria situacionista e autor do artigo
“Cidade Olímpica: sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência
na cidade do Rio de Janeiro” incluído no livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, organizado por Pedro Rocha de Oliveira e Felipe Brito (Boitempo, 2013). Maurílio Lima Botelho
é Professor de geografia urbana da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ), e autor do artigo “Crise urbana no Rio de Janeiro:
favelização e empreendedorismo dos pobres” que integra também o livro Até o último homem. Ambos colaboram com o Blog da Boitempo especialmente para o especial “Violência policial: uso e abuso”.
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