Há mais de cinquenta anos, o crítico literário apoiava-se em Balzac, Kafka e Dostoievski para dizer: a instituição policial “já não tem necessidade de motivos, mas apenas de estímulos”
Por Antonio Candido.*
(publicado em “Opinião”, em janeiro de 1972.)
Balzac, que
percebeu tanta coisa, percebeu também qual era o papel que a polícia
estava começando a desempenhar no mundo contemporâneo. Fouché a tinha
transformado num instrumento preciso e onipotente, necessário para
manter a ditadura de Napoleão. Mas criando dentro da ditadura um mundo
paralelo, que se torna fator determinante e não apenas elemento
determinado.
O romancista
tinha mais ou menos dezesseis anos quando Napoleão caiu, e assim pôde
ver como a polícia organizada por Fouché adquirira por acréscimo (numa
espécie de desenvolvimento natural das funções) o seu grande papel no
mundo burguês e constitucional que então se abria: disfarçar o arbítrio
da vontade dos dirigentes por meio da simulação de legalidade.
A polícia de
um soberano absoluto é ostensiva e brutal, porque o soberano absoluto
não se preocupa em justificar demais os seus atos. Mas a de um Estado
constitucional tem de ser mais hermética e requintada. Por isso, vai-se
misturando organicamente com o resto da sociedade, pondo em prática um
modelo que se poderia chamar de “veneziano” — ou seja, o que estabelece
uma rede sutil de espionagem e de delação irresponsável (cobertas pelo
anonimato) como alicerce do Estado.
Para este
fim, criam-se por toda a parte vínculos íntimos e profundos. A polícia
se disfarça e assume uma organização dupla, bifurcando-se numa parte
visível (com os seus distintivos e as suas siglas) e numa parte secreta,
com o seu exército impressentido de espiões e alcaguetes, que em geral
aparecem como exercendo ostensivamente uma outra atividade. Este
funcionamento duplo permite satisfazer também a um requisito
intransigente da burguesia, dominante desde os tempos de Balzac, e
dispensado só nos casos de salvação da classe: a tarefa policial deve
ser executada implacavelmente, mas sem ferir demais a sensibilidade dos
bem-postos na vida. Para isso, é preciso esconder tanto quanto possível
os aspectos mais desagradáveis da investigação e da repressão.
Para obter
esse resultado, a sociedade suscita milhares de indivíduos de alma
convenientemente deformada. Assim como os “comprachicos” d’O Homem que Ri,
de Victor Hugo, estropiavam fisicamente as crianças a fim de obterem
aleijões para divertimento dos outros, a sociedade puxa para fora
daqueles indivíduos a brutalidade, a privação, a frustração, a torpeza, a
tara — e os remete à função repressora.
Daí o
interesse da literatura pela polícia, desde que Balzac viu a
solidariedade orgânica entre ela e a sociedade, o poder dos seus setores
ocultos e o aproveitamento do marginal, do degenerado, para o
fortalecimento da ordem. Nos seus livros há um momento onde o
transgressor não se distingue do repressor, mesmo porque este pode ter
sido antes um transgressor, como é o caso de Vautrin, ao mesmo tempo o
seu maior criminoso e o seu maior policial.
Dostoievski
percebeu uma coisa mais sutil: a função simbólica do policial como
sucedâneo possível da consciência — a sociedade entrando na casa de cada
um através da pressão ou do desvendamento que ele efetua. Em Crime e Castigo, o juiz de instrução Porfírio Porfiriovitch vai-se tornando para Raskolnikof uma espécie de desdobramento dele mesmo.
Mas foi Kafka n’O Processo,
quem viu o aspecto por assim dizer essencial e ao mesmo tempo
profundamente social. Viu a polícia como algo inseparável da justiça, e
esta assumindo cada vez mais um aspecto de polícia. Viu de que maneira a
função de reprimir (mostrada por Balzac como função normal da
sociedade) adquire um sentido transcendente, ao ponto de acabar se
tornando a sua própria finalidade. Quando isso ocorre, ela desvenda
aspectos básicos do homem, repressor e reprimido.
Para entrar
em funcionamento, a polícia-justiça de Kafka não tem necessidade de
motivos, mas apenas de estímulos. E uma vez em funcionamento não pode
mais parar, porque a sua finalidade é ela própria. Para isso, não hesita
em tirar qualquer homem do seu trilho até liquidá-lo de todo, física ou
moralmente. Não hesita em pô-lo (seja por que meio for) à margem da
ação, ou da suspeita de ação, ou da vaga possibilidade de ação que o
Estado quer reprimir, sem se importar se o indivíduo visado está
envolvido nela. Em face da importância ganha pelo processo punitivo (que
acaba tendo o alvo espúrio de funcionar, pura e simplesmente, mesmo sem
motivo), a materialidade da culpa perde sentido.
A polícia
aparece então como um agente que viola a personalidade, roubando ao
homem os precários recursos de equilíbrio de que usualmente dispõe:
pudor, controle emocional, lealdade, discrição — dissolvidos com perícia
ou brutalidade profissionais. Operando como poderosa força redutora,
ela traz à superfície tudo o que tínhamos conseguido reprimir, e
transforma o pudor em impudor, o controle em desmando, a lealdade em
delação, a discrição em bisbilhotice trágica.
Daí uma
espécie de monstruosa verdade suscitada pela polícia. Verdade oculta de
um ser que ia penosamente se apresentando como outro, que de fato era
outro, na medida em que não era obrigado a recair nas suas profundidades
abissais. Aliás, seria mais correto dizer que o outro é o suscitado
pela polícia. O outro, com a sua verdade imposta ou desentranhada pelo
processo repressor, extraída, contra a vontade, dos porões onde tinha
sido mais ou menos trancada.
De fato, a
polícia tem necessidade de construir a verdade do outro para poder
manipular o eu do seu paciente. A sua força consiste em opor o outro ao
eu, até que este seja absorvido por aquele e, deste modo, esteja pronto
para o que se espera dele: colaboração, submissão, omissão, silêncio. A
polícia esculpe o outro por meio do interrogatório, o vasculhamento do
passado, a exposição da fraqueza, a violência física e moral. No fim, se
for preciso, poderá inclusive empregar a seu serviço este outro, que é
um novo eu, manipulado pela dosagem de um ingrediente da mais alta
eficácia: o medo — em todos os seus graus e modalidades.
* * *
Um exemplo dessa redução degradante é o comportamento do delegado com o encanador, no filme Inquérito sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, de Elio Petri.
O delegado,
que é também o criminoso, resolve brincar com o destino e como que
provar o mecanismo autodominante da polícia, a sua finalidade em si
mesma. Para isso, dirige-se a um transeunte qualquer, escolhido ao
acaso, e confessa que é o matador procurado, dando como prova a gravata
azul celeste que usa e fora vista nele. Convence então o pobre
transeunte a ir à polícia e relatar o fato, dando-lhe para levar como
indício (e evidentemente como baralhamento do indício) diversas gravatas
iguais, que mostrariam como era a do assassino.
Chegado à
polícia, o transeunte, que é encanador, dá de cara com o assassino que
se confessara na rua, e que ia delatar; mas que agora está no seu papel
de delegado. Este o interroga com brutalidade e o pressiona física e
moralmente para dizer quem era o assassino que se desvendara a ele na
rua. Mas o pobre diabo, completamente desorganizado pela contradição
inexplicável, não tem coragem para tanto. Com isso, vai ficando
suspeito, vai-se caracterizando legalmente corno possível criminoso, até
desaparecer dos nossos olhos, trôpego, arrasado, por uns corredores
sujos que levam aonde bem suspeitamos.
A força que o
paralisa, e que nos paralisaria eventualmente, vem de uma ambiguidade,
misteriosa na aparência, mas eficaz, cuja natureza foi sugerida acima: o
repressor e o transgressor são o mesmo, não apenas fisicamente e do
ponto de vista dos papéis sociais, mas ontologicamente (o outro é o eu).
Tudo nesse
episódio é modelar: a gratuidade com que se escolhe o culpado; a
imposição de um comportamento não intencional (ir à polícia com as
gravatas azuis no braço, delatar um criminoso sem nome, que não
interessa); o baralhamento da verdade, quando ele constata que o homem
que se denunciara como assassino é também o delegado; a transformação do
inocente em suspeito e do suspeito em delinquente, aceita pelo próprio
inocente, do fundo da sua desorganização mental, forjada pela
inquirição.
O fulcro
desse processo talvez seja aquele momento do interrogatório em que o
delegado pergunta ao pobre diabo, já zonzo, qual é a sua profissão.
“— Sou hidráulico”, responde ele.
O delegado esbraveja:
” — Qual
hidráulico qual nada! Agora toda a gente quer ser alguma coisa bonita! O
que você é é encanador, não é? En-ca-na-dor! Por que hi-dráu-li-co?!”.
E o desgraçado, já sem fôlego nem prumo: “— Sim, sou encanador”’. (Cito de memória porque não tenho o roteiro.)
Vê-se que o pobre homem, a exemplo de toda a sua categoria profissional, tinha adotado uma designação de cunho técnico (idraulico, em italiano), que o afasta da velha designação artesanal “encanador” (stagnaro,
em italiano), e assim lhe dá a ilusão de um nível aparentemente mais
elevado, ou pelo menos mais científico e atualizado. Mas o policial o
reduz ao nível anterior, desmascara a sua autopromoção, lira para fora a
sua verdade indesejada. E, no fim, é como se ele dissesse:
“— Sim,
confesso, não sou um técnico de nome sonoro, que evoca inocentemente
alguma coisa de engenharia; sou mesmo um pobre diabo, um encanador.
Estou reduzido ao meu verdadeiro eu, libertado do outro” .
Mas, na
verdade, foi a polícia que lhe impôs o outro como eu. A polícia efetuou
um desmantelamento da personalidade, arduamente construída, e trouxe de
volta o que o homem tinha superado. Sinistra mentalidade redutora, que
nos obriga a ser, ou voltar a ser, o que não queremos ser; e que mostra
como Alfred de Vigny tinha razão, quando anotou seu diário:
“Não tenha medo da pobreza, nem do exílio, nem da prisão, nem da morte. Mas tenha medo do medo”.
***
Antonio Candido
é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, amplamente considerado o maior
crítico literário brasileiro vivo.
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