Em reviravolta impressionante, manifestações contra o golpe
crescem, espalham-se pelo país e sugerem que o “Fora, Temer” pode
vencer. Também revelam possibilidade de nova esquerda. Como construí-la?
Por Antonio Martins* | Imagens: Tiago Macambira (Jornalistas Livres)
[Terceira parte da série O Brasil sob o Golpe: seis hipóteses polêmicas. Leia também as hipóteses 1 e 2]
Em condições normais a cena seria surreal, mas em tempos de crise
aguda da velha política o impensável realiza-se com frequência – ainda
mais, no Brasil. Passada apenas uma semana de um golpe de Estado, a
Avenida Paulista, em São Paulo, viveu ontem uma reviravolta. Ali, a
poucas quadras de onde realizavam-se, em março, as grandes manifestações
de ódio à democracia, quem protagonizou a cena foi outra multidão.
Cerca de 20 mil pessoas, que se auto-convocaram a partir de uma mensagem
singela em redes sociais e caminhavam desde a praça da Sé,
interromperam sua marcha diante do escritório da Presidência da
República, na esquina com a Rua Augusta. Por volta das 16h, o expoente
de um pequeno grupo, a Esquerda Marxista, dirigiu-se aos manifestantes –
a grande maioria, muito jovens. Não tinha nem carro de som, nem
microfone. Falava e suas palavras eram repetidas, em sucessivas ondas de
jogral. Propôs o compromisso de todos com um novo protesto, no próximo
domingo, 11/9. Foi ovacionado – e é provável, como se verá, que
iniciativas semelhantes espalhe-se por todo o país. Convocou todos a não
aceitar os atos do governo ilegítimo e a não descansar, enquanto este
não cair.
A maré contra o governo golpista cresce com enorme rapidez desde o
último domingo (4/9), quando mais de cem mil pessoas desafiaram uma
proibição inicial da Polícia Militar e tomaram a mesma Avenida Paulista.
Ontem, o feriado de Sete de Setembro disseminou a resistência. Novos
protestos ocorreram em 26 Estados e em Brasília.
O Grito dos Excluídos – uma celebração das pastorais católicas por
direitos e igualdade, que se repete desde 1995 – foi o convocador. Mas
ao contrário do que ocorre normalmente, as manifestações reuniram
milhares de pessoas e focaram, de modo explícito, na queda de Temer.
Tudo indica que a espiral crescente adquiriu agora novo ritmo. Como se
não bastasse, o presidente ilegítimo foi vaiado nos dois grandes eventos
sem conotação política, a que compareceu ontem: o desfile da Independência, em Brasília e a abertura das Paraolimpíadas,
no Estádio do Maracanã, Rio. A direção dos fatos é clara. É possível
que, no próximo domingo, grandes multidões coloquem o governo em
situação muito difícil (em São Paulo, haverá um protesto prévio, hoje).
Ao exporem a impopularidade do presidente, aliás, as manifestações já
estão abrindo fissuras em sua base política de apoio e dificultando a
aplicação de seu programa de contra-reformas. A primeira crise dá-se em
torno da retirada de direitos previdenciários. Dezenas de parlamentares,
que concorrerão a prefeituras, passaram a pressionar
o governo para que adie até 2017 o envio do projeto que eleva a idade
mínima para aposentadoria. Temem ser devastados pela impopularidade da
medida. No PSDB, mais diretamente ligado ao capital financeiro, ocorre
movimento oposto. Depois de baixar em São Paulo na segunda-feira (5/7),
para reuniões de urgência com Geraldo Alckmin e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o senador Aécio Neves, deu o recado: quer o projeto enviado ao Congresso já. Um dia depois, Temer parecia disposto a atendê-lo – sem convencer, porém, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Para este, tornar público o ataque agora “não é inteligente e é inútil”…
Os riscos de perda de sustentabilidade do governo, que até há uma
semana eram miragem, tornaram-se reais. Tanto é que levaram FHC – uma
espécie de referência comum do bloco conservador – a fazer, ontem, um
alerta. Entrevistado
pelo repórter Josias de Souza, ele reconheceu a fragilidade do governo
Temer e o tratou com desdém: “não é uma ponte, é uma pinguela”. Porém,
conclamou as elites a defendê-lo. “Mas, se quebrar a pinguela, cai no
rio. É pior. Então, nós temos que apostar que vamos atravessar essa
pinguela e vamos chegar do outro lado do rio.”
* * *
Subitamente, um cenário em que apareciam apenas nuvens carregadas,
voltou a se abrir. Agora, um vasto leque de desfechos é mais uma vez
possível. Ele inclui desde um ataque mais duro às próprias liberdades
civis, com laivos de fascismo,
até a queda de Temer e a convocação de novas eleições – além de
múltiplas soluções intermediárias. O futuro imediato está novamente
aberto; cada atitude é importante e pesa. Por isso, é ainda mais
importante lançar hipóteses incômodas. Eis mais algumas, agora
diretamente ligadas ao tema crucial da democracia: a) A chegada ao
governo provocou, na esquerda institucional brasileira, um choque de
acomodação e cegueira. Precisamente no instante em que avançavam, no
mundo, a crise da representação e o esforço de reinvenção democrática,
esta esquerda institucional deixou-se aprisionar nos limites cada vez
mais estreitos do jogo parlamentar brasileiro; b) A queda do lulismo é também
resultado deste declínio. As elites sempre quiseram livrar-se dele, por
quaisquer meios possíveis. Porém, só puderam fazê-lo quando o segundo
governo Dilma submeteu-se ao cretinismo institucional a ponto de
desconcertar e paralisar a imensa base popular construída ao longo de
trinta anos; c) A conjuntura pós-golpe está repleta de riscos
tenebrosos. Porém, oferece uma chance raríssima, que pode ainda ser
construída. Trata-se de superar o lulismo, respeitando e valorizando sua
herança e mantendo diálogo permanente com ele; porém construindo uma
esquerda pós-capitalista.
Não há tempo, agora, para desenvolver as duas primeiras hipóteses.
Sobre a primeira, vale lembrar um fato emblemático. Na virada do século,
o PT ganhou projeção internacional graças às experiências
contra-institucionais inovadoras, que adotava quando no governo. A mais
notável – mas não a única – era o Orçamento Participativo.
Significativamente, ele não foi apenas esquecido, no governo federal,
mas também enterrado nas próprias prefeituras e governos de Estado onde
existiu, a começar por Porto Alegre.
Sobre a segunda hipótese, é impossível não mencionar 2013. Por mais
graves que tivessem sido, até então as concessões à institucionalidade e
o abandono das reformas estruturais,
surgiu então uma oportunidade extraordinária para recuperar o tempo
perdido. A presença de enormes multidões nas ruas, reivindicando
serviços públicos e denunciando o esvaziamento da democracia permitia ao
lulismo atualizar-se – desde que questionasse, também, sua relação com o
poder. A janela foi, inclusive, constatada pelo governo, nos
pronunciamentos que Dilma fez e nas propostas que lançou imediatamente
após as manifestações gigantes – plebiscito e Constituinte sobre sistema
político. Porém, quando conservadorismo rechaçou tais ideias, com a
soberba de sempre, o governo abandonou-as também, acreditando
provavelmente que o cristal partido pudesse ser remendado. Percebeu a
partir de 2015, com o início da grita pelo impeachment, que, uma vez salva das ruas, a direita as usaria para acertar as contas com o lulismo.
A terceira hipótese é, claro, a mais instigante. Trata de fatos
correntes, sobre os quais ainda é possível interferir. Nas manifestações
dos últimos dias, um fenômeno sobressai. Elas são cada vez mais
numerosas e potentes, apesar da ausência da esquerda
institucional. A presença dos partidos e centrais sindicais é lateral,
ou cosmética. Mesmo a Frente Povo Sem Medo, que teve a coragem de
incentivá-las desde o início, nas condições mais desfavoráveis, é muito
mais uma referência política (certamente indispensável) que um poder
convocatório. Dezenas de milhares de pessoas auto-convocam-se. Que
mudanças de longo prazo, relacionadas à renovação da esquerda, este
processo poderá suscitar?
Nos próximos dias, o mais importante será estimular ao máximo as
novas manifestações; tentar obter, como desfecho delas, a queda do
governo ilegítimo. Seria (será!?) um vendaval político histórico, com
enorme poder de varrição do velho. Porém, seja qual for o resultado do
episódio atual, persistirá um impasse. Como construir estruturas
políticas que se preocupem em ir além da representação e em reinventar a
democracia – além, é claro, de impulsionar a luta por reformas estruturais?
É uma questão colocada em todo o mundo – e não há saídas prontas, Em
países como Grécia e Espanha, a resposta, provisória, foi fortalecer ou
fundar partidos-movimentos, como Syriza e Podemos. Grã-Bretanha e
Estados Unidos vivem, mais recentemente, processos de aglutinação em
torno dos velhos partidos de esquerda, porém com notável radicalização
de suas propostas, descrédito das direções e emergência de outsiders, como Jeremy Corbin e, em menor medida, Bernie Sanders.
Quais serão os caminhos, no Brasil? E se o Fora, Temer, que
agora enche as ruas, nos estimulasse a criar em toda a parte Comitês
Contra o Golpe? E se eles pudessem manter aceso, entre uma manifestação e
outra, o desejo de lutar por direitos e construir outro país possível? E
se estimulassem o exame da crise brasileira e das alternativas? E se se
enraizassem, relacionando-se com as novas formas de política que brotam
em toda a parte, às vezes tão distantes do que julgamos ser o
“racional”? E se ganhassem as periferias, que ainda não intervieram
nesta crise?
Esta busca será o tema de nosso próximo texto.
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