Como a coleta invasiva de dados pessoais, sob o Capitalismo de
Vigilância, elimina direitos, impõe comportamentos e torna totalitário o
poder das corporações. Só escapa o 1% que comanda a máquina
Por Rafael Evangelista
Causou pequeno furor na Internet, recentemente, a notícia de que o
Nubank poderia interromper as suas atividades no Brasil. O Nubank é uma
dessas fintech, empresas de finanças que utilizam de ferramentas de alta
tecnologia, principalmente big data, para realizarem suas
operações de crédito e que também oferecem uma “experiência tecnológica”
a seus clientes, como fazerem tudo pelo celular. O motivo do fechamento
seriam mudanças na regulação do mercado de cartão de crédito propostas
pela equipe econômica do famigerado Michel Temer, em especial o
encurtamento no prazo de pagamento a ser feito aos lojistas pela
financiadora quando alguém compra usando o cartão. O Nubank, choraram
seus executivos, não teria caixa para antecipar pagamentos e não poderia
manter práticas que o diferenciam de seus concorrentes, como a isenção
de cobrança de anuidades. Por isso também a grita dos clientes.
Mas o ponto aqui não são as agruras dos portadores de cartões Nubank,
e sim o quanto elas podem falar sobre privacidade. O direito de
escolher entre ser totalmente transparente ou manter certos assuntos
longe do escrutínio alheio tende a ser cada vez mais um privilégio dos
ricos.
No caso acima, mantêm a privacidade aqueles com orçamento livre o
suficiente para pagar a anuidade do cartão, ou que gastam tanto no
crédito que gozam de benefícios dos bancos tradicionais. O cliente
Nubank, assim que pede seu cartão de crédito, oferece poucos dados
(e-mail, nome, CPF), mas é convidado a integrar seu perfil do Linkedin
ao cadastro. Essa integração aumentaria a velocidade de resposta do
Nubank ao seu pedido. É a partir do CPF e dos dados coletados em redes
sociais que a empresa vai checar se o cliente é quem realmente diz ser e
qual sua capacidade de crédito, que está relacionada não somente ao seu
cadastro fiscal, mas também à sua inserção na sociedade, ou seja, o
quem faz, onde trabalha, quem são seus amigos etc. Trata-se de uma
escolha emblemática: os que podem pagar a anuidade podem ser mais
obscuros ao banco; os que precisam economizar umas dezenas de reais por
mês oferecem sua transparência.
O exemplo é até certo ponto trivial, uso-o aqui não por ser
contundente, mas por convocar ao debate de uma questão mais ampla.
Trata-se de uma investigação que todo banco faz, no entanto é uma
amostra emblemática de uma mudança mais complexa e que tem a ver com o
capitalismo de vigilância, uma nova lógica de acumulação do capitalismo.
“Essa nova forma de capitalismo informacional pretende prever e
modificar o comportamento humano como meio para a produção de lucros e o
controle do mercado”, escreve Shoshana Zuboff, em um denso artigo
chamado “Big Other: surveillance capitalism and the prospects of an information civilization”
O artigo é um petardo e é prévia para um livro que deve chegar às
livrarias no início de 2017. O capitalismo de vigilância funda-se em
tecnologias como o big data, a extração e análise de grandes
quantidades de dados para análises de mercado. Mas há outros dois pontos
importantes de que Zuboff trata que nos ajudam aqui a mostrar como a
privacidade vai se tornando cada vez mais difícil para os mais pobres.
Um deles é a reflexão que Zuboff faz sobre o futuro dos contratos. No
capitalismo de vigilância, passamos a ser monitorados por dispositivos
informacionais o tempo todo. Eles garantem com muito mais efetividade se
estamos ou não seguindo um determinado comportamento. A tendência
seria, então, de emergência de novas formas contratuais, que ela chama
de não-contratos, pois a forma tradicional desses compromissos legais
seria baseada na incerteza e na confiança. Estas tendem a ganhar um
papel secundário no futuro, dando lugar a um monitoramento maquínico.
Por exemplo, imaginemos um plano de saúde que, como condição para
oferecer preços mais baixos, oferte ao cliente o uso ininterrupto de uma
pulseira de monitoramento cardíaco. Antes, a empresa podia apenas
recomendar ao cliente que se exercitasse três vezes por semanas por pelo
menos 30 minutos ao dia para manter uma vida saudável pelo seu próprio
bem. Com a pulseira, a sincronizar dados com os computadores da empresa
diariamente, esta tem como estar certa de como o cliente se comportou,
se fez exercícios ou não, verificando os batimentos cardíacos. Se o
cliente não cumpriu o “recomendado” então os preços, automaticamente,
sobem. O risco da empresa cai consideravelmente, pois dá preços mais
altos aos sedentários, condição que ela verifica ao vigiar a que
velocidade bate o coração do segurado.
Parece claro que aqueles que podem pagar, que têm mais dinheiro,
podem se dar ao luxo de se eximir desse tipo de vigilância pela máquina.
Isso é ainda mais verdade em situações profissionais. A revista TechRepublic publicou um interessante artigo
( sobre o Mechanical Turk, o site da Amazon dedicado a oferecer
trabalho remoto, a ser feito em casa, por trabalhadores independentes,
em troca de micro pagamentos. São tarefas muitas vezes auxiliares aos
sistemas de inteligência artificial das grandes companhias do Vale do
Silício. Incluem trabalhos simples como classificar fotos, classificação
que será usada para “ensinar” sistemas de inteligência artificial; ou
coisas traumatizantes, como assistir centenas de vídeos do ISIS,
incluindo cenas de degolamentos, para definir se se trata de conteúdo
impróprio ou não. Tudo isso por alguns centavos: na imensa maioria dos
casos o rendimento do trabalhador fica abaixo do salário mínimo federal
dos EUA, de 7,5 dólares a hora. O que a revista descreve é um cotidiano
exaustivo, em que os trabalhadores passam o tempo todo conectados, pois o
rendimento depende de ser estar disponível no momento em que a tarefa
aparece. Essas são oferecidas preferencialmente àqueles designados como
estando no “master’s level”, mas ninguém sabe como isso é definido. A
vida privada, pessoal, fora do mundo do trabalho, desaparece, O
trabalhador é transparente ao sistema, precisa estar disponível o tempo
todo e abrir seus dados em extensos formulários de cadastramento. Mas o
contratante é obscuro e, muitas vezes, anônimo. A Amazon coloca-se
apenas como dona da plataforma que conecta trabalhadores e patrões.
Outro ponto importante no texto de Zuboff é a ideia que o capitalismo
de vigilância não tem as populações somente como fonte da coleta de
informações comportamentais, informações essas que vão orientar
campanhas de marketing, publicidade e informar a produção de produtos.
Aquele que é vigiado é também alvo de tentativas de orientação de
comportamento. Tradicionalmente, a publicidade já opera dessa forma,
busca fazer com que os indivíduos se comportem de uma determinada
maneira que seja interessante aos lucros da empresa. Mas Zuboff está
falando de algo em outro nível, que não opera pelo convencimento, pela
escolha e decisão.
Trata-se de uma prática de controle da ação dos pontos em uma rede – as pessoas, no caso. Entende-se ação
aqui como uma operação informacional: um like no Facebook, um clique
que confirma a compra em um site, montar uma página na Internet em que
alguém oferece seus serviços profissionais. “Na lógica do capitalismo de
vigilância não há indivíduos, somente o organismo de escala mundial e
todos os minúsculos elementos dentro dele”, escreve ela. O controle aí
significa a limitação das escolhas ao mínimo ou a opções que não fazem
muita diferença. A Netflix lhe oferece opções de filmes que parecem
infinitas, a maioria dentro do mesmo padrão hollywoodiano e todas sendo
comercializadas pelas mesmas distribuidoras do sistema. Você pode optar
por não utilizar o dispositivo de rastreamento que a seguradora quer
instalar em seu carro, só vai ter que pagar o dobro.
Na pirâmide social da atualidade – e que, em condições normais, tende
a um afunilamento crescente – apenas o 1% que está no topo pode optar
pelo privilégio da total obscuridade à rede. O grau de escolha sobre
privacidade parece ir diminuindo quanto mais se aproxima da base.
Inclusive o nível mais inferior dessa pirâmide, hoje desconectado, é
objeto de desejo das grandes empresas de tecnologia, que lançam projetos
de inclusão digital – como o Free Basics, do Facebook – de olho nos
dados e operações informacionais que essa população pode produzir.
Nessa enorme parte do meio da pirâmide, para sobreviver, ou apenas
para termos um pouco mais de conforto momentâneo, somos a todo tempo
convidados a nos tornarmos mais transparentes. Mas essa transparência,
ao mesmo tempo, aumenta nossa vulnerabilidade e o poder do outro. Os
efeitos não são só individuais, a invasão de uma intimidade, como o
sentido comum da expressão “perda da privacidade” pode nos convidar a
pensar. Trata-se fundamentalmente de uma questão de poder.
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