A Globo ainda tinha a tênue esperança de que
delegados dissidentes do Colégio Eleitoral não ratificassem a vitória de Trump.
Mas a cerimônia da posse e o discurso “porrada” do presidente arrasaram
qualquer sonho dos ainda incrédulos correspondentes da emissora nos EUA. Mais
eis que os esquecidos black blocs voltam a ação nas manifestações anti-Trump em
Washington, tirando os analistas da emissora da depressão. Entusiasmada, a
Globo News até reprisou o documentário sobre os black blocs exibido na época
das manifestações de rua em 2013 no Brasil. Agora a Globo assume uma espécie de
anarcotautismo: entrar na onda de turbinar as manifestações contra Trump, assim
como fez nas manifestações anti-Dilma. Mas o tautismo crônico da sua bolha
virtual não consegue perceber os movimentos do “deserto do real” que Trump
representa: a crise do “neoliberalismo progressista” que sustenta a ordem da
Globalização: o alinhamento perverso entre correntes dos movimentos sociais
(feminismo, LGBT, antirracismo, multiculturalismo, entre outros), o setor de
negócios baseados em serviços simbólicos e tecnológicos (Vale do Silício e
Hollywood) e o capitalismo cognitivo representado por Wall Street e a
financeirização.
A Globo virou black bloc! Inconformada porque
a realidade confrontou o tautismo (autismo + tautologia) crônico de seus
repórteres e analistas políticos, a emissora mais uma vez caiu sob o fascínio
oportunista da tática black bloc.
Simplesmente a Globo não conseguiu engolir a
vitória. O que só piorou com a posse de Donald Trump na presidência dos EUA. As manifestações
durante a cerimônia de posse em Washington atiçaram a imaginação de seus
analistas que repercutiram um discurso que dá uma forte sensação de déjà vu – “uma eleição que resultou num
país dividido”, “um governo populista e nacionalista que gera incertezas” e
assim por diante. Já vimos esse discurso padrão após a vitória de Dilma
Rousseff em 2014, culminando com o impeachment da presidenta no ano passado.
Por isso a Globo aciona uma espécie de
“narrativa reflexa”, um discurso sempre evocado toda vez que os movimentos do
“deserto do real” contradizem seu autismo. Em postagem anterior vimos esse
mecanismo em ação no acidente aéreo que matou o ministro do STF Teori Zavascki
às vésperas de homologar denúncias-bomba para fevereiro que talvez implodisse o
atual governo – a imposição da narrativa do desastre aéreo como “trapaça da
sorte” antes mesmo do resultado de qualquer investigação oficial – clique aqui.
A telegenia dos black blocs
No caso de Trump, a narrativa do país
dividido, da convulsão social e das incertezas. E os black blocs como os personagens
mais icônicos que rendem as melhores fotos e vídeos – são fotogênicos e
telegênicos pela juventude e performances arrojadas. São em si mesmos, o índice
do caos e desordem – a câmera fechada em um black bloc parece que
metonimicamente contamina toda uma manifestação.
Certa vez Caetano
Veloso caiu em amores por black blocs femininos (“os lindos olhos amendoados do
anarquismo”) e uma capa da Veja chegou a estampar atraentes “panteras” black
blocs no auge da “primavera brasileira” (clique aqui). Agora também a Globo vive uma caso de amor com os black blocs, resgatando as até então esquecidas táticas de ação direta.
Após as indefectíveis imagens de quebradeiras
em vitrines, carros e fogo em cestas de lixo sugerindo barricadas no meio das
ruas (com direito a uma limusine pichada com símbolo do anarquismo e a frase “We The
People” – há muito esse veículo deixou de ser objeto da burguesia para se
tornar ícone de turistas novos ricos), a Globo News resgatou o documentário
“Entenda quem são os black blocs no Brasil e no Mundo”, produzido em 2013 no
auge das manifestações brasileiras.
Globo anarquista?
Esse é o aspecto tautológico do tautismo:
depois de aplicar vitoriosamente na crise política brasileira, a Globo repete o
mesmo script. Dessa vez contra a “surpreendente” vitória de Trump: primeiro
ato, clima de incertezas; segundo ato, caos protagonizado por black blocs;
terceiro ato, virada de mesa, o think
tank dos analistas globais.
Apenas com uma pequena variável: enquanto
aqui no Brasil a grande mídia juntou a onda black bloc com tudo de mais
reacionário para alimentar a atmosfera anti-Governo (racistas, fundamentalistas
religiosos, militaristas etc.), para os EUA o retorno dos anarco-ativistas festejado
pela Globo está ao lado de feministas, movimento LGBT, ativistas antirracismo, artistas
pop e atores hollywoodianos – Madonna, Scarlet Johansson e muitos outros.
Nem nos mais delirantes sonhos esse humilde
blogueiro poderia imaginar a Globo exibindo um documentário tecendo simpatias
ao anarquismo, falando em filósofos anarquistas como Proudhon ou Bakunin e
ainda sugerindo uma associação da ação direta black bloc às teoria políticas
dos velhos pensadores.
Mas, é claro, dando uma ênfase toda especial
as ideias de sociedade autorregulada, o fim do Estado e a oposição do
anarquismo ao comunismo de Marx e Lenin.
Anarcocapitalismo
Aqui há uma aliança secreta entre o fascínio
pelos black blocs com a oportunista releitura liberal do anarcocapitalismo
feita por pensadores econômicos, de Molinari a Friedman – para eles, qualquer
forma governo estatal é prejudicial à liberdade e o bem estar humano.
Principalmente a ideia de que o estágio atual globalização seria a revolução
econômica e social do anarcocapitalismo através da desregulamentação do sistema
bancário e acordos de livre comércio que aceleraram processos de
desindustrialização.
O modus
operandi dos analistas do jornalismo da Globo, tão repetitivo na pretensão
em aplicar seu script para qualquer lugar do planeta, acaba revelando o outro
aspecto da doença do tautismo: o próprio autismo.
O telejornalismo global permanece alheio aos
movimentos econômicos e políticos desde a crise de 2008 marcado pela sucessão
de falências de instituições financeiras dos EUA e Europa a partir da “bolha
imobiliária”, culminando hoje com o Brexit e a vitória eleitoral de Donald
Trump.
Uma amostra desse autismo foi como a grande
mídia nacional simplesmente ignorou o comentário de Christine Lagarde (FMI) à
fala de Henrique Meirelles no painel do Fórum Econômico de Davos sobre a
necessidades dos “reajustes” adotados pelo desinterino Michel Temer: Lagarde
respondeu que a prioridade deveria ser o combate às desigualdades sociais, e
não a imposição de “sacrifícios”.
Neoliberalismo progressista
O autismo crônico impede a percepção de que a
vitória de Trump é o resultado da crise do chamado “neoliberalismo
progressista”, termo usado por Nancy Fraser, professora de filosofia e política
da New School for Social Research de Nova York.
Segundo a pesquisadora, o aparente oximoro
dessa expressão esconde um alinhamento perverso entre correntes dos movimentos
sociais (feminismo, LGBT, antirracismo, multiculturalismo, entre outros), o
setor de negócios baseados em serviços simbólicos e tecnológicos (Vale do
Silício e Hollywood) e o capitalismo cognitivo representado por Wall Street e a
financeirização.
Para Fraser, esse movimento foi ratificado
pela era Bill Clinton nos anos 1990 e os ideais dos “Novos Democratas”. Uma
coalizão não mais formada por um “New Deal” entre trabalhadores sindicalizados,
indústrias, setores afro-americanos e classe média, mas agora uma aliança entre
empresários, classe média dos subúrbios e novos movimentos sociais. Todos
emprestando um carisma jovem com a boa fé moderna e progressista – a aceitação
da diversidade, empoderamento, multiculturalismo e os direitos das mulheres.
Ao mesmo tempo em que governo e grande mídia
apoiavam esses ideais progressistas, a economia era entregue à Goldman Sachs e
a desregulamentação bancária que prepararia terreno para as crises cíclicas até
chegar ao “Big One” de 2008.
Enquanto o setor industrial e os
trabalhadores sindicalizados ruíam, a mídia bombardeava o ideário do
“empoderamento”, “não discriminação” e “diversidade”. Porém, associados com a
identificação do progresso com a meritocracia. Pouco importa se culturalmente
esses valores eram propagados, enquanto a estrutura econômica reproduzia as
desigualdades que o discurso combatia – na verdade um discurso que era uma
verdadeira bolha isolante do mundo real, como bem detalhou o documentário de Adam Curtis HyperNomalisation (2016) – clique aqui.
O que selou o acordo, no entanto, foi o fato de tais acontecimentos terem sido simultâneos à ascensão do neoliberalismo. Um partido que apoie a liberalização da economia capitalista é o parceiro perfeito para o feminismo corporativo e meritocrático focado em “assumir riscos” e “superar as barreiras da discriminação de gênero no trabalho”. (FRASER, Nancy. “The End of Progressive Neoliberalism”, Dissidente Magazine, 02/01/2017 – tradução aqui).
Tautismo e esquizofrenia
Enquanto isso, aqui no Brasil a articulação do
golpe político, liderado pela grande mídia que se transformou na única oposição
política organizada para impor os ajustes neoliberais, viveu uma situação
esquizofrênica. Se nos EUA o discurso progressista e multiculturalista foi
absorvido pelos Liberais, aqui no Brasil sempre foi uma agenda da Esquerda.
Enquanto lentamente a grande mídia tentava
incorporar essa agenda “politicamente correta” nos seus produtos de
entretenimento (novelas, minisséries e telejornais), no mundo da realpolitik abriu a caixa de pandora de
tudo de mais retrógrado do inconsciente social brasileiro para turbinar os
panelaços e a fauna das manifestações dominicais de apoio ao impeachment – um balaio
de intervencionalismo militar, anticomunismo histérico, direitistas armados e
grupos fundamentalistas católicos e neopentecostais.
O fato é que a Globo liderou um golpe cujo
objetivo final era o alinhamento automático com o globalismo econômico e a
política externa de Hillary Clinton e do neoliberalismo progressista dos
Democratas. O golpe brasileiro deu certo (inclusive com o apoio das táticas de
engenharia da percepção do Departamento de Estado norte-americano – clique aqui), mas não levaram em conta
o inesperado: a vitória de Trump, embaralhando todo o script.
Em consequência, além do tautismo a Globo
começa agora a apresentar sintomas esquizofrênicos: enquanto aqui seus
analistas comemoram o congelamento dos gastos na Saúde e o sucateamento do SUS nos
ajustes neoliberais do desinterino Temer, ao mesmo tempo criticam Trump por
ameaçar revogar o chamado Obamacare do sistema público de saúde dos EUA.
Autista, a Globo não consegue compreender que
Trump é o movimento do “deserto do real” daqueles que foram deixados para trás
pela Globalização. Aquele deserto do real que está lá fora da bolha do discurso
multiculturalista e progressista corporativo.
Por isso, a Globo veste a camisa da ação
direta black bloc. Se deu certo aqui, quem sabe também dá certo lá...
E o mundo voltaria à narrativa reflexa e
tautista da Globo e todos voltariam tranquilos para suas bolhas virtuais.
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