Se a cada dia parecemos mais vencidos, a derrota tem uma
vantagem: ela nos força a pensar de outra maneira. É preciso fazer do
pensamento uma conspiração cotidiana, uma insurgência indomável
Texto de abertura da série de cordéis político Pandemia, constituída pela N-1 edições, editora parceira em Outros Quinhentos.
Por Peter Pal Pelbart
Estamos
em guerra. Guerra contra os pobres, contra os negros, contra as
mulheres, contra os indígenas, contra os craqueiros, contra a esquerda,
contra a cultura, contra a informação, contra o Brasil. A guerra é
econômica, política, jurídica, militar, midiática. É uma guerra aberta,
embora denegada; é uma guerra total, embora camuflada; é uma guerra sem
trégua e sem regra, ilimitada, embora queiram nos fazer acreditar que
tudo está sob a mais estrita e pacífica normalidade institucional,
social, jurídica, econômica. Ou seja, ao lado da escalada generalizada
da guerra total, uma operação que a abafa em escala nacional. Essa
suposta normalização em curso, essa denegação, essa pacificação pela
violência — eis o modo pelo qual um novo regime esquizofrênico parece
querer instaurar sua lógica, em que guerra e paz se tornam sinônimos,
assim como exceção e normalidade, golpe e governabilidade,
neoliberalismo e guerra civil. Nada disso é possível sem uma corrosão da
linguagem, sem uma perversão da enunciação, sem uma sistemática
inversão do valor das palavras e do sentido do próprio discurso, cujo
descrédito é gritante.
Diante
desse panorama, qual a tarefa de um editor? Certamente não é o de
corroborar a corrosão em curso, publicando frivolidades para um mercado
bulímico que as deglute como entretenimento narcótico. Um livro pode ser
muita coisa, entre outras uma arma, um instrumento em meio a um
combate, uma ferramenta de análise, uma catapulta de ideias incendiárias
e de afetos vários, coléricos, mas também amorosos. Extraímos de um dos
livros publicados por nós essa frase que vai inscrita na caixa Pandemia:
“a revolução é da ordem da cólera e da alegria, não da angústia e do
tédio.” A cólera se dirige contra aqueles que destroem impiedosamente o
que nos é caro, devastam nossa riqueza natural, social, subjetiva,
afetiva, política. De fato, formou-se uma aliança de interesses que, em
poucos meses, virou a mesa da suposta democracia da maneira mais brutal,
comparável talvez ao assassinato dos irmãos de Witt em 1672, que
governavam os países baixos no século xviii, e que fizeram Espinosa
soltar o único grito urrado de que se tem notícia saído daquele homem
que diziam ser tão suave e sereno. Cólera, pois, contra o cavalar
revanchismo que vai destruindo dia a dia o pouco que se havia
conquistado nos últimos treze anos, numa sede insana de dilapidação, num
desejo de extermínio vindo do conluio das várias máfias que se aliaram
nessa política de terra arrasada. Laymert Garcia dos Santos escreveu, no
cordel presente nesta caixa, a que ponto esse movimento visa a
destruição de um País que tinha, por fim, conseguido erguer a cabeça na
cena internacional. Ele tem mil vezes razão.
Se
a cada dia parecemos mais vencidos, a derrota tem ao menos esta
vantagem: ela nos força a pensar — e a pensar de outra maneira. É
preciso fazer valer tal ocasião. É nesse contexto que surgiu essa
coleção Pandemia. Cada cordel é um torpedo, teórico, político, afetivo,
ou mesmo um grito urrado, necessário para expressar a urgência de reagir
em meio a essa guerra que nos dizima, ou estrangula, ou apenas
silencia. Alguns dos cordéis foram escritos em meio a batalhas
concretas, junto aos secundaristas, indígenas, mulheres negras, no auge
do golpe, outros foram escritos em um contexto e um tempo outros, mas
nos servem para pensar o que move essa guerra, desde a aceleração
capitalística, o inconsciente colonial, o estado de exceção, a guerra de
subjetividades. Todos os cordéis visam a romper o silenciamento a que
fomos reduzidos com o sequestro absoluto da mídia nacional e dos
veículos de comunicação, nessa construção cotidiana de uma unanimidade
pacificadora — para não dizer uma unidade pacificadora de cunho
policialesco. É preciso fazer proliferar uma outra sensibilidade
micropolítica, macropolítica, biopolítica, ecopolítica, cosmopolítica,
dar nome aos bois, romper um consenso que nos quer abduzir a capacidade
de pensar. Sim, fazer do pensamento uma conspiração cotidiana, uma
insurgência indomável. Ideais fortes precisam às vezes de centenas de
páginas para serem devidamente desdobradas. Mas por vezes também cabem
em livros minúsculos, sintéticos, baratíssimos, de fácil circulação,
prestes a passar de mão em mão, nessa forma inusual entre a análise, o
manifesto, o grito, a arma. Artefatos sempre burilados à mão, de forma
artesanal com os carimbos coloridos e o carinho único que caracteriza
essa coleção.
Não
é bom, em meio a um contexto tão sinistro, deixar-se afundar no
catastrofismo melancólico e derrotista. Porque todo poder visa também a
isto: nos separar de nossa força, nos inculcar a tristeza, a angústia, o
medo, a culpa e sobretudo a sensação de impotência. Mas o poder não é
um domínio absoluto, é uma relação de forças, sempre móvel, e assim
comporta sua dose de jogo e margem de indeterminação — e portanto de
reversibilidade. Se Foucault nos serve para pensar a resistência nessa
chave da reversibilidade eventual das forças em jogo, talvez seja
preciso também recorrer a Espinosa, que diferenciava poder e potência, e
até os opunha. Por isso, talvez trate-se menos de apenas tomar o poder
do que de expandir a potência. Menos tentar ocupar o lugar daqueles que
tomaram de assalto o Estado do que ocupar ruas, praças, escolas,
instituições, espaços públicos privatizados, experimentar novas formas
de organização, de auto-organização, de sociabilidade, de produção, de
despossessão, de subjetividade, de dissidência, de composição da vida. É
preciso destituir a corja de bandidos que sequestrou o Estado, quebrar o
monopólio das corporações que os sustentam — mas como fazê-lo sem
entrar no jogo em que saímos vencidos de antemão? Talvez ainda não se
tenha inventado máquinas de guerra à altura da eficácia da megamáquina
que se instalou, e que vem de longe, no tempo e no espaço. Seria preciso
produzir máquinas de guerra que, ao lado de sua eficácia, criassem
outras coisas, outros espaços, outros tempos, outra subjetividade — em
suma, outro tabuleiro onde pudessem enfrentar-se os novos desafios.
Quando
passamos para esse registro mais ativo, por mais bélicas que pareçam
essas imagens, não se pode fazer a economia da alegria. A alegria, dizia
Espinosa, nada mais é do que a expressão de um aumento de potência. Ela
está necessariamente presente ali onde as conexões se expandem, se
multiplicam, abrem novas direções, criam novos modos de expressão, e
produzem uma conversão subjetiva.
Daí
minha última nota. Nossos lançamentos não visam ao glamour dos autores
ou à distribuição de vinho ruim. Antes de tudo, pretendem fazer soar
vozes que não circulam porque o espaço de circulação foi, precisamente, a
primeira vítima nessa virada anticultural, nessa guerra de
contra-insurgência. Como recompor o espaço de circulação num meio a tal
ponto envenenado, em que se espalha gás tóxico a cada frase, gesto,
resolução, operação vinda do Estado, da mídia, das corporações?
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