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terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Seu nome era Ruas, por Luciana Itikawa.


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O Índio foi espancado e morto na Baixada do Glicério – primeira periferia de São Paulo, território dos indesejados. Aguardem: em 2017, estaremos com ele em toda parte
Por Luciana Itikawa | Imagem: Carol Garcia
Seu nome era Ruas. Luis Carlos Ruas. Era um ambulante que trabalhava nas ruas de São Paulo há mais de 20 anos. Seu apelido era Índio. Foi morto cruelmente na noite do Natal de 2016 por dois homens. Ruas foi morto porque tentou impedir a agressão a um homossexual e uma travesti. Os criminosos identificados tiveram como motivação, como se não bastasse a hedionda homofobia, o aborrecimento com a mulher de um deles1. Nesta sexta, dia 30 de Dezembro de 2016, diversos movimentos sociais farão novamente um ato em homenagem ao ambulante, às 15h na estação de metrô D. Pedro II.
Topograficamente, o local do crime é um território que a cidade quis atravessar e não parar. A estação de metrô D. Pedro II está no miolo de uma planície alagadiça — a baixada do Glicério — historicamente negada pelos urbanistas e atravessada por diversas pontes, incluindo a do próprio metrô. A baixada do Glicério foi a primeira periferia após a expansão da mancha urbana do centro histórico que transbordava de gente, sobretudo populares, ainda no século XIX. Em 1886, o Código de Posturas proibiu cortiços, forçando a primeira segregação socioespacial em direção à zona leste. Ao chegar na entrada desta estação de metrô, mesmo na cota do chão, a sensação é como se estivéssemos descido no subsolo da cidade, tamanha a quantidade de concreto que atravessa esse espaço, cujo nome infeliz é Parque D. Pedro. Não é a toa que no entorno encontram-se várias populações negadas pela sociedade: pessoas em situação de rua, ambulantes, prostitutas, dependentes químicos, travestis, etc. O próprio poder público institucionalizou no local a assistência a essas pesssoas, anteriormente através de albergues; hoje, em tendas de abrigo e convivência. Já que a cidade não pode escondê-los, ao menos ficam submersos aos olhos da riqueza que a atravessa.
Entre as primeiras medidas alardeadas pelo futuro prefeito João Dória estão justamente a negação ou a expulsão de ambulantes e pessoas em situação de rua da cidade. Dória, que chegou a chamar a população em situação de rua de “indigentes” durante sua campanha, assim que foi eleito, disse que iria tirar todos camelôs das ruas de São Paulo e colocá-los em shoppings2. No dia 20 de dezembro deste ano, afirmou que removeria ambos das marginais3. Dória polemizou também ao definir o deslocamento da Virada Cultural, cujo local principal é o Centro, para a periferia em Interlagos: “vai ser com segurança, não incomodando a população”4.
A permanência de ambulantes nos espaços públicos de forma organizada e planejada pela cidade foi objeto de recente Ação Civil Pública em defesa dos ambulantes, movida por uma organização de direitos humanos e pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo. A Ação foi acatada favoravelmente em caráter liminar em 2012 e julgada definitivamente pela Justiça em 2016. A decisão defendeu o direito à permanência no espaço público desses trabalhadores, entedido como direito à Cidade5.
O que fez então dois homens atacarem brutalmente um homossexual, uma travesti e matar um ambulante nesse espaço que serve justamente para esconder essas pessoas da vista de todos, abaixo das pontes? Para aqueles que acreditam que essas populações precisam ser removidas para que a pobreza saia das vistas, a morte do ambulante Ruas era apenas uma ironia do destino. Ele teria o nome errado, o apelido errado, a profissão errada, estava no local errado e defendia pessoas erradas. A questão é que Ruas não estava nem um pouco errado: era um trabalhador, defendendo seres humanos. Seu destino, certamente, só tinha uma ironia: ele estava no ano errado: 2016. Este ano que falta pouco para terminar, legitimou as várias camadas de intolerância ao legitimar um golpe parlamentar. Se um golpe é institucionalizado, este pode legitimar todos os outros dispositivos de golpes cotidianos de gênero, de classe, de raça, etc.
Se o golpe parlamentar de 2016 vai ser conhecido como a liberação das comportas a todos fantasmas fascistas e aos demais golpes nos direitos – trabalhistas, previdenciários, etc., o que sobrará então em 2017? Se o resto dos direitos e as pequenas diferenças forem extintas, restará somente uma espécie: o “Homem Qualquer Golpista”.
O “Homem Qualquer Golpista” é a versão violenta, intolerante, homofóbica, misógina, racista e autoritária daquele cidadão comum que parece ter incubado em 2016 e já vai ganhar maioridade em 2017.
O “Homem Qualquer Golpista” é o oposto do “O Homem Sem Qualidades”, mesmo título do livro escrito por Robert Musil, na década de 1930 na Áustria. Este livro falava de um jovem homem comum, Ulrich, trabalhador que buscava um sentido para sua vida em crise. O homem “sem qualidades” neste romance não era aquele que almejava se igualar aos seus pares. Ao contrário, ele já não suportava mais as máscaras de classe, os padrões de sucesso profissional, etc. Queria ser um homem sem qualidades e mediano. Sua forma de transgressão não era a violência, a indiferença e a negação, como o nosso “Homem Qualquer Golpista”. A transgressão do “Homem sem Qualidades” era ser um “homem de possibilidades” porque abria para as diferenças e para a invenção de novas identidades. Exatamente tudo que 2016 quis negar e que 2017 parece pretender executar.
É certo que o “Homem Qualquer Golpista” não nasceu em 2016, mas a violência do golpe e a utilidade da crise econômica continuarão banalizando os micro-golpes, perpetuando as pequenas banalidades do mal, a retirada de direitos, a indiferença às desigualdades, a naturalização do preconceito e das hierarquias de gênero e raça.
A cidade ideal do “Homem Qualquer Golpista” é uma cidade limpa de diferenças, que não quer ser incomodado pela pobreza, ou raça, opção sexual ou escolha de gênero. Se 2016 criou, nutriu e libertou esse monstro, também teremos em 2017 um campo de possibilidades, de forças e novas identidades que disputarão espaço de igual para igual. Esse campo de disputas será nas ruas.
Ruas, Luiz Carlos Ruas: estaremos nas ruas: com você e por você.

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