O Índio foi espancado e morto na Baixada do Glicério – primeira
periferia de São Paulo, território dos indesejados. Aguardem: em 2017,
estaremos com ele em toda parte
Por Luciana Itikawa | Imagem: Carol Garcia
Seu nome era Ruas. Luis Carlos Ruas. Era um ambulante que trabalhava nas ruas de São Paulo há mais de 20 anos. Seu apelido era Índio.
Foi morto cruelmente na noite do Natal de 2016 por dois homens. Ruas
foi morto porque tentou impedir a agressão a um homossexual e uma
travesti. Os criminosos identificados tiveram como motivação, como se
não bastasse a hedionda homofobia, o aborrecimento com a mulher de um
deles1.
Nesta sexta, dia 30 de Dezembro de 2016, diversos movimentos sociais
farão novamente um ato em homenagem ao ambulante, às 15h na estação de
metrô D. Pedro II.
Topograficamente, o local do crime é um
território que a cidade quis atravessar e não parar. A estação de metrô
D. Pedro II está no miolo de uma planície alagadiça — a baixada do
Glicério — historicamente negada pelos urbanistas e atravessada por
diversas pontes, incluindo a do próprio metrô. A baixada do Glicério foi
a primeira periferia após a expansão da mancha urbana do centro
histórico que transbordava de gente, sobretudo populares, ainda no
século XIX. Em 1886, o Código de Posturas proibiu cortiços, forçando a
primeira segregação socioespacial em direção à zona leste. Ao chegar na
entrada desta estação de metrô, mesmo na cota do chão, a sensação é como
se estivéssemos descido no subsolo da cidade, tamanha a quantidade de
concreto que atravessa esse espaço, cujo nome infeliz é Parque D. Pedro.
Não é a toa que no entorno encontram-se várias populações negadas pela
sociedade: pessoas em situação de rua, ambulantes, prostitutas,
dependentes químicos, travestis, etc. O próprio poder público
institucionalizou no local a assistência a essas pesssoas, anteriormente
através de albergues; hoje, em tendas de abrigo e convivência. Já que a
cidade não pode escondê-los, ao menos ficam submersos aos olhos da
riqueza que a atravessa.
Entre as primeiras medidas alardeadas
pelo futuro prefeito João Dória estão justamente a negação ou a expulsão
de ambulantes e pessoas em situação de rua da cidade. Dória, que chegou
a chamar a população em situação de rua de “indigentes” durante sua
campanha, assim que foi eleito, disse que iria tirar todos camelôs das
ruas de São Paulo e colocá-los em shoppings2. No dia 20 de dezembro deste ano, afirmou que removeria ambos das marginais3.
Dória polemizou também ao definir o deslocamento da Virada Cultural,
cujo local principal é o Centro, para a periferia em Interlagos: “vai
ser com segurança, não incomodando a população”4.
A permanência de ambulantes nos espaços
públicos de forma organizada e planejada pela cidade foi objeto de
recente Ação Civil Pública em defesa dos ambulantes, movida por uma
organização de direitos humanos e pela Defensoria Pública do Estado de
São Paulo. A Ação foi acatada favoravelmente em caráter liminar em 2012 e
julgada definitivamente pela Justiça em 2016. A decisão defendeu o
direito à permanência no espaço público desses trabalhadores, entedido
como direito à Cidade5.
O que fez então dois homens atacarem
brutalmente um homossexual, uma travesti e matar um ambulante nesse
espaço que serve justamente para esconder essas pessoas da vista de
todos, abaixo das pontes? Para aqueles que acreditam que essas
populações precisam ser removidas para que a pobreza saia das vistas, a
morte do ambulante Ruas era apenas uma ironia do destino. Ele teria o
nome errado, o apelido errado, a profissão errada, estava no local
errado e defendia pessoas erradas. A questão é que Ruas não estava nem
um pouco errado: era um trabalhador, defendendo seres humanos. Seu
destino, certamente, só tinha uma ironia: ele estava no ano errado:
2016. Este ano que falta pouco para terminar, legitimou as várias
camadas de intolerância ao legitimar um golpe parlamentar. Se um golpe é
institucionalizado, este pode legitimar todos os outros dispositivos de
golpes cotidianos de gênero, de classe, de raça, etc.
Se o golpe parlamentar de 2016 vai ser
conhecido como a liberação das comportas a todos fantasmas fascistas e
aos demais golpes nos direitos – trabalhistas, previdenciários, etc., o
que sobrará então em 2017? Se o resto dos direitos e as pequenas
diferenças forem extintas, restará somente uma espécie: o “Homem
Qualquer Golpista”.
O “Homem Qualquer Golpista” é a versão
violenta, intolerante, homofóbica, misógina, racista e autoritária
daquele cidadão comum que parece ter incubado em 2016 e já vai ganhar
maioridade em 2017.
O “Homem Qualquer Golpista” é o oposto
do “O Homem Sem Qualidades”, mesmo título do livro escrito por Robert
Musil, na década de 1930 na Áustria. Este livro falava de um jovem homem
comum, Ulrich, trabalhador que buscava um sentido para sua vida em
crise. O homem “sem qualidades” neste romance não era aquele que
almejava se igualar aos seus pares. Ao contrário, ele já não suportava
mais as máscaras de classe, os padrões de sucesso profissional, etc.
Queria ser um homem sem qualidades e mediano. Sua forma de transgressão
não era a violência, a indiferença e a negação, como o nosso “Homem
Qualquer Golpista”. A transgressão do “Homem sem Qualidades” era ser um
“homem de possibilidades” porque abria para as diferenças e para a
invenção de novas identidades. Exatamente tudo que 2016 quis negar e que
2017 parece pretender executar.
É certo que o “Homem Qualquer Golpista”
não nasceu em 2016, mas a violência do golpe e a utilidade da crise
econômica continuarão banalizando os micro-golpes, perpetuando as
pequenas banalidades do mal, a retirada de direitos, a indiferença às
desigualdades, a naturalização do preconceito e das hierarquias de
gênero e raça.
A cidade ideal do “Homem Qualquer
Golpista” é uma cidade limpa de diferenças, que não quer ser incomodado
pela pobreza, ou raça, opção sexual ou escolha de gênero. Se 2016 criou,
nutriu e libertou esse monstro, também teremos em 2017 um campo de
possibilidades, de forças e novas identidades que disputarão espaço de
igual para igual. Esse campo de disputas será nas ruas.
Ruas, Luiz Carlos Ruas: estaremos nas ruas: com você e por você.
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