Por Daniela Lima.
“Não há civilização sem loucura […] ela acompanha a humanidade por todo lugar que haja imposição de limites”.
– Michel Foucault
– Michel Foucault
Eles surgiram
de botas e capacetes. A porta arrombada. A matilha em peso a agarrou
pela garganta. Golpeada, jogada no chão. Ela não diz uma palavra. […] Lá
fora a ambulância espera. 10 de março de 1913. Os dois cavalos
relincham sob o chicote. (DELBBÉ, 1988, p. 366-7)
“Censuraram-me (ó, crime horrendo) por ter vivido completamente sozinha”, escreve Camille Claudel do manicômio de Montdevergues.
Camille rompeu com alguns destinos impostos às mulheres de sua época
como naturais. Não se casou, não teve filhos e se dedicou a uma
atividade considerada masculina: a escultura. Até 1897, mulheres eram
excluídas das principais escolas de artes francesas, como a École de
Beaux-Arts. Trabalhavam como ajudantes ou assistentes de artistas e não
podiam assinar as obras que ajudavam a realizar. Camille não assinou Les Portes de l’Enfer ou Les Bourgeois de Calais. Ficou à sombra de Rodin.
Resistir às
tentativas de controle de seus gestos, condutas e opiniões influenciou
gravemente na decisão de seu irmão, Paul Claudel, de interná-la à força.
“É preciso evitar o escândalo”, ele dizia. Loucura não é tudo aquilo
que age contra a natureza. É tudo aquilo que desnaturaliza formas de
poder. A existência de Camille mostrava que não havia um destino natural
para mulheres.
No documentário Michel Foucault Par Lui Même, Foucault
diz que “experiências que deveriam ser consideradas centrais,
valorizadas positivamente, são consideradas experiências-limite, a
partir das quais se põe em questão a exclusão social”. Em última
instância, o julgamento dessas experiências não se diferencia daquele
que determina se um hábito é aceitável ou não. Mulheres eram internadas
pelos mais variados motivos: engravidar indevidamente, gastar
muito dinheiro, estar desempregada e – ainda mais violento – por um
simples pedido da família. Na loucura, parecia caber tudo aquilo que era
desviante à média ou à norma.
O laudo de
internação concedido por um médico amigo da família afirmava que Camille
tinha delírios persecutórios envolvendo Rodin e cultivava hábitos miseráveis:
não cuida da aparência, usa roupas puídas e sapatos gastos, não se
lava, mantém as cortinas sempre abaixadas e as janelas fechadas,
alimenta muitos gatos e vive sozinha, reclusa, numa casa quase sem
móveis. São visíveis tanto as marcas da violenta relação com Rodin como o
julgamento moral de seus hábitos.
Em seus 29
anos de internação, Camille implorou que Paul Claudel a tirasse de
Montdevergues. Este período é retratado nas cartas que Camille escrevia
para Paul Claudel e no filme Camille Claudel 1915:
“Hoje,
três de março, é o aniversário do meu sequestro em Ville-Evrard: faz
sete anos que faço penitência nos asilos de alienados. Depois de terem
se apoderado da obra de toda a minha vida, mandam-me cumprir os anos de
prisão”. (DELBÉE, 1988, p.201)
“Durante
todo inverno não me aqueci, estou gelada até os ossos, cortada ao meio
pelo frio. […] Uma amiga minha, uma pobre professora do liceu Fénelon
que veio cair aqui, foi encontrada morta de frio na cama. É medonho!”
(p. 255)
“Quanto a mim, estou tão desolada por continuar a viver aqui que eu não me sinto mais uma criatura humana”. (p. 275)
Essas
experiências desviantes, que deveriam levantar questões sobre o sistema
de poder que determina o que é normalidade, eram reconhecidas apenas
como um ponto de ruptura em relação a esse sistema. Portanto, passível
de punição. Em História da Loucura, Foucault diz: “é verdade
que muitas vezes se interna para fazer alguém escapar ao julgamento: mas
interna-se num mundo onde o que está em jogo é o mal e a punição, a
libertinagem e a imoralidade, a penitência e a correção”.
Camille
Claudel nunca saiu de Montdevergues. Morreu em 1943, aos 79 anos. Foi
enterrada em vala comum e seu corpo nunca foi encontrado. Paul Claudel
não compareceu a seu funeral em Montdevergues.
O crítico de arte Mathias Morhardt escreveu sobre a obra Les Causeuses (1893), de Camille, para o Mercure de France, em 1898:
“a
observação da natureza […] não basta para realizar obras-primas. É
preciso uma paixão particular. É preciso um dom especial que permita
extrair da própria observação da vida o que constitui o elemento
primordial da obra-prima e que é, de certa forma, o testemunho da
verdade, o sentido da sua beleza. […] Les Causeuses é
um poema escrito magnificamente. […] Essas quatro mulheres sentadas em
círculo em torno de uma ideia que as domina, em torno de uma paixão que
as inspira e penetra. […] Um poema onde o sangue circula, onde alguma
coisa palpita, onde há ombros que alguma emoção interior levanta, onde
há peitos que respiram, onde se comprova, enfim, a prodigiosa riqueza da
vida. […] Ela é viva! Ela vive permanentemente”.
A pequena escultura que cabe na palma de uma mão, como um segredo, parece fazer Camille respirar através do tempo.
[Detalhes da escultura Les Causeuses, de Camille Claudel]
Quem vigia as fronteiras da normalidade?
“O
mais notável não era que fosse a irmã de Paul Claudel e a amante de
Auguste Rodin. Não, o que me impressionava, o que me impedia de fechar o
livro, era isso: ela era ESCULTORA.” (p.2)
Uma menina
com os cabelos desgrenhados, vestido sujo, andando com pesados baldes de
barro vermelho no meio do capim cerrado: – Era uma bruxa! Uma bruxa que
conseguia transformar o barro em corpo humano.
Quando
Camille carregava, cambaleante, baldes de barro para fazer as primeiras
esculturas, em Villeneuve, já ouvia de sua mãe que estava louca. Essa
demarcação das fronteiras da normalidade é usada para limitar quais são
as experiências possíveis para mulheres. A questão da normalidade (ou de
como ela se transforma em mecanismo do poder) não é puramente teórica: é
parte da nossa experiência.
Aliás, seria
mais adequado falar de normalidades e não de normalidade. Normalidade
não é uma categoria estável. Depende de critérios sociais, culturais,
ideológicos e até religiosos arbitrários. Já foi considerado normal ver
duas pessoas lutando até a morte como forma de entretenimento,
escravizar populações inteiras, trancar mulheres para o resto da vida em
manicômios para tentar normalizá-las. A relação normalidade/loucura é
um dos instrumentos divisores do poder. Funciona sob o princípio da
porta giratória, que trava de acordo com um comando arbitrário e
estabelece demarcações dicotômicas: normais e loucos, pessoas de bem e
bandidos, sadio e doente. O sujeito é dividido no seu interior e em
relação aos outros:
Esta forma
de poder aplica-se à vida cotidiana imediata que categoriza o indivíduo,
marca-o com sua própria individualidade, liga-o à sua própria
identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que
os outros têm que reconhecer nele. (FOUCAULT, 2009, p. 236)
Quando
Camille transgrediu os estereótipos de gênero de sua época, revelou
mecanismos de poder que fabricam esses estereótipos. Era um exemplo
perigoso para outras mulheres. Portanto, tentaram “corrigir”
violentamente sua anormalidade. O que define o anormal é que
ele constitui, em sua existência mesma, a transgressão de leis
invisíveis da sociedade, leis que são naturalizadas. O anormal desafia
aquilo que é demarcado como impossível e proibido. Imaginem que
disparate: uma mulher esculpindo pedras!
Quando se
diz “mecanismo de poder”, não se trata de uma abstração, mas de um modo
de ação de uns sobre os outros. É uma ação sobre a ação dos outros. É a
violência sobre uma vida, que é forçada, dobrada, reduzida, partida:
esculpida com martelos e espátulas.
O
indivíduo a ser corrigido vai aparecer nesse jogo, nesse conflito,
nesse sistema de apoio que existe entre a família e, depois, a escola,
[…], a igreja, a polícia, etc… (FOUCAULT 2014, p.49)
Por
exemplo, uma instituição escolar: sua organização espacial, o
regulamento meticuloso que rege sua vida interior, as diferentes
atividades aí organizadas, os diversos personagens que aí vivem e se
encontram, cada um com uma função, um lugar, um rosto bem definido […] A
atividade, que assegura o aprendizado e a aquisição de aptidões ou de
tipos de comportamento, aí se desenvolve através de todo um conjunto de
comunicações reguladas (lições, perguntas e respostas, ordens,
exortações, signos codificados de obediência, marcas diferenciais do
“valor” de cada um e dos níveis de saber) e através de toda uma série de
procedimentos de poder. (FOUCAULT 2009, p. 241)
As memórias de Camille Claudel (e as nossas próprias memórias) nos dão pistas de como esses mecanismos funcionam:
Camille é diferenciada dos outros:
passa a ser “a louca”, o que reduz a sua humanidade ao que possa caber
nesse estereótipo. Não se sabe até que ponto ela é chamada de louca para
que o poder seja exercido sobre ela ou se existe uma patologia
consequente da ação biopolítica brutal desse mesmo poder, possivelmente
os dois.
Camille é institucionalizada:
se a normalidade é um mecanismo do poder, o enclausuramento, a
vigilância, o sistema recompensa/punição, e a hierarquia piramidal são
algumas formas de normalização. Reduzir a humanidade de alguém para que
ela caiba num determinado estereótipo de normalidade é, por fim, uma
forma de governo. Camille passa 29 anos num manicômio.
Segundo Georges Canguilhem, “o anormal não é o patológico. Patológico implica pathos, sentimento
direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida
contrariada”. O anormal é aquele que revela, no mesmo momento de sua
existência desviante, mecanismos de padronização das formas de vida. A
anormalidade é aquilo que escapa da normalização imposta pelo poder. E,
em certa medida, sempre se escapa dessa normalização. Mas escapar
completamente – ou seja: ser livre – é algo que só se alcança
coletivamente. A sensação do escape individual não é mais que do uma
mera sensação, já que sempre existirá outro mecanismo disciplinar pronto
para agir. E não se pode agir contra esses mecanismos individualmente.
A única
medida da patologia deveria ser o sofrimento e não a inadequação a um
sistema ele próprio patológico. Não um padrão de normalidade criado para
que uns governem os outros. A normalização é a supressão brutal
daqueles que espontânea ou politicamente mostram as pequenas e grandes
irregularidades, ou seja, as falhas, desses mecanismos de governo. É a
supressão daquele que são “a forma natural ou política da
contranatureza” (FOUCAULT 2014).
Em um dos últimos momentos da História da Loucura,
Foucault diz que esse mundo que acredita avaliar e justificar a loucura
precisa justificar-se diante dela, já que seus esforços, seus debates
se medem por obras desmedidas, como as de Camille Claudel. A loucura é
um saber, algumas vezes fechado, inacessível, inquietante. Um saber que
desafia o poder.
Loucos são cada vez mais aqueles que ameaçam a conservação do poder.
BIBLIOGRAFIA:DELBÉE, Anne. Camille Claudel, Uma Mulher. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2005.
FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martin Fontes, 2014.
FOUCAULT, Michel. Maladie mentale et personnalité. Paris: Presses Universitaires, 1954.
FOUCAULT, Michel. “O sujeito e o poder”. In: DREYFUS, H. & RABINOW, P. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249.
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