SAUDAÇÕES,
AMIGOS BRASILEIROS DE 2017. EU VENHO DE UM LUGAR NO QUAL A
TERCEIRIZAÇÃO IRRESTRITA DAS ATIVIDADES-FIM DAS EMPRESAS É UMA REALIDADE
HÁ MUITO, MUITO TEMPO. PRESTEM ATENÇÃO ÀS VERDADES QUE VOS TRAGO.
Esse
“lugar” do qual venho na verdade não é um lugar, e sim uma carreira.
Neste mês de abril de 2017, completo 21 anos de jornalismo profissional.
Durante todos esses anos, só fiquei sem trabalho fixo uma única vez,
por um período de cerca de três meses, mais ou menos dez anos atrás. Em
certas épocas, meu salário era pequeno; em outras, meu salário era menor
ainda. Em certas empresas, a carga de trabalho era brutal; em outras,
era apenas desumana. Alguns empregadores não cumpriram o que estava no
contrato; outros, nem contrato ofereceram. Entretanto, à exceção
daqueles três meses em 2007, sempre houve uma vaguinha no mercado para
mim — por mais merda e vilipendiante que fosse a ocupação.
Essa trajetória se deve às características peculiares da minha profissão. A tal flexibilização radical das leis trabalhistas aprovada ontem (dia 22/03/17) na Câmara dos Deputados
já vigora no jornalismo brasileiro desde que me entendo por gente. Dos
meus supracitados 21 anos de carreira, menos de seis foram cumpridos sob
as regras da Consolidação das Leis Trabalhistas. Isso não quer dizer
que, em várias das empresas nas quais trabalhei, eu não tivesse que
lidar com responsabilidades, deveres e carga horária equivalentes aos
(ou maiores que as) dos celetistas. Só que sem os direitos e proteções
concedidos a eles. Sou grato à empresa que (há mais de quatro anos) paga
meu pro-labore mensal em remuneração pelos serviços que presto a ela.
Sempre fui tratado de forma transparente e justa por meus superiores e
não tenho coisa alguma a observar sobre nossa relação trabalhista.
Entretanto, desde 2012, eu colaboro para piorar as tristes estatísticas nacionais de desemprego. Mesmo sem ter deixado de trabalhar um dia sequer, estatisticamente eu sou uma dessas pessoas que o IBGE chama de “desalentados”:
gente sem carteira assinada que não arruma emprego em até 30 dias e
deixa de procurar nova ocupação. (Para mais detalhes, leiam o reply de
Gustavo Monteiro: https://medium.com/@gustavomonteiro/ol%C3%A1-barbosa-da1c4734804d)
Os expedientes são variados e bem conhecidos. Qual dos coleguinhas leitores nunca topou uma vaga de pejotinha,
integral (100% do salário via nota fiscal) ou o famoso por-fora (tantos
% na carteira, outros % no envelope pardo, com nota)? Com todas as
obrigações dos empregados fixos, claro. Desde 2009, detenho 25% do
capital social de uma empresa especializada em “serviços de jornalismo,
revisão, produção editorial e assessoria de imprensa”. Tive que me
tornar um “empresário” para poder receber meu salário mensal como editor
de um (outrora, finado) grande jornal carioca. Também é conhecido o
infame esquema do “freela fixo”, uma ilusão só comparável a piadas como
“Este veículo só circula com as portas fechadas”. A popularização dos
MEIs abriu novas frentes para a flexibilização. Já o mercado de freelas
eventuais é flexibilizado desde que o mundo é mundo: táqui a pauta,
táqui o prazo, táqui o valor. Vai? Se não vai, tem quem vá. Já
protagonizei cenas tragicômicas, como a vez em que fui interpelado na
redação (em plena hora do fechamento) por uma profissional de RH que
queria que eu assinasse, ali na hora, sem ler, uma carta de demissão e
outra de prestador de serviço autônomo. Ou como na época em que, quando
trabalhava no site de uma instituição de pesquisa musical, recebia meu
salário em cash, gordos bolos de notas enrolados em elástico; todo dia
5, a secretária entrava na sala cantarolando e atirando a grana para os
funcionários. Zero burocracia, zero papelada, zero garantias.
Essa
é a realidade de uma carreira fadada à precarização trabalhista por
dois fatores principais: 1) excesso de mão de obra disponível e 2) um
modelo de negócio que vem se tornando progressivamente insustentável nas
últimas décadas. Imagine-se no lugar de um empresário do ramo de
comunicação. Sua empresa, como quase todas as outras do setor, passa por
dificuldades financeiras. Você é obrigado a demitir, com regularidade
alarmante, grandes nacos de sua força de trabalho, o que acaba por
sobrecarregar os empregados sobreviventes. E mesmo assim, sempre tem
gente a pedir um emprego, um estágio, um freela… não demora muito pra
juntar 2 + 2 e começar a oferecer condições cada vez mais escrotas para
os corajosos candidatos. (E sempre vai haver candidatos.) A depender do
caráter e da competência do patrão em questão, você pode receber todo o
combinado certinho. Ou tomar um calote. Daí você pode se conformar, ou
parar na justiça, aquela mesma justiça que o presidente da Câmara
(aquela mesma Câmara que aprovou a terceirização irrestrita) disse que não deveria existir. Claro que daqui pra frente, com a nova legislação, tudo isso deve ficar mais complicado ainda. Ou não. Sei lá.
Então
agora o Brasil todo se prepara para saber como é a vida (trabalhista)
de jornalista. Amigos brasileiros de 2017, eu realmente não tenho um
veredito definitivo sobre seu futuro. A eterna crise financeira dos
meios de comunicação abriu espaço para uma desregulamentação voraz da
profissão — e ainda assim, há filas de gente dispostas a trabalhar de
graça, ou quase. É a concretização do mantra “Não quer? Há quem queira”
que tanto encanta os adeptos do liberalismo, posto em prática de modo
ávido pelos empresários do ramo. Aos 43 anos, encaro a perspectiva de
ter de trabalhar até a morte, não por ter sido afetado pela tal reforma
da previdência, mas porque simplesmente estou à margem da previdência.
“Ora, por que não fizeste um pé de meia, uma VGBL, uma BrasilPrev,
investiste numa Tele-Sena?”, perguntar-me-ão os liberais. Resposta:
porque durante boa parte da minha carreira, a remuneração mal dava para o
básico. Imagine para a poupança e para planejar o futuro.
Por
outro lado, a precarização da carreira também me ajudou a arrumar
trabalho (mas não emprego) de forma praticamente contínua nesses 21
anos. É certo que se eu fosse motorista de ônibus, torneiro mecânico ou
vendedor de loja, a situação seria diferente. Nunca haverá de faltar
trabalho para jornalista. Sempre há alguém precisando de algo (bem)
pesquisado e/ou apurado e/ou escrito e/ou editado. A profissão para a
qual estudei e que exerci por mais de uma década — ser repórter e
editor — acabou, pelo menos da forma como eu a conhecia. O último
veículo de comunicação roots no
qual trabalhei com vínculo empregatício acabou há quase sete anos.
Mesmo assim, desde então tenho conseguido me virar até que bem, tomando
uma volta ali, fazendo uma embromação aqui, mas sempre fazendo.
Não
tenho estofo teórico suficiente pra tentar cravar verdades absolutas
sobre o tema. Mas tenho a impressão de que, para muita gente e não
apenas para os jornalistas, a terceirização e o strip-tease na CLT são
realidades há tempos. Pensando pollyanisticamente, as mudanças aprovadas
ontem não vão fazer muita diferença pra já está precarizado mesmo (e
com os números de desemprego do que jeito que estão, pode crer que é
muuuuuuita gente). Se não há emprego, discutir o sub-emprego deixa de
ser prioridade.
Por
outro lado, também estou certo de que muitas empresas vão aproveitar
para dar aquela enxugada bonita em seus custos de pessoal com base nas
novas regras, o que, ao menos num primeiro momento, vai engrossar a fila
dos desempregados. Também não vi ninguém discutindo a sério o impacto
que a inevitável redução no valor das contribuições vai causar ao
sistema previdenciário, no longo prazo. Sem contar o fator psicológico.
“De carteira assinada” é uma expressão indelevelmente brasileira e
sintetiza uma garantia de estabilidade e suporte institucional. Em
breve, vai passar a ser mais um daqueles jargões empoeirados, tipo “o
sonho da casa própria” ou “Faz um concurso público, meu filho!”. O tempo
passa, as coisas mudam. Mas para melhor?
Às
vezes dá inveja do amigo que fez uma sólida carreira numa
multinacional, cheio de benefícios e penduricalhos. Às vezes dá inveja
do primo que emburacou no funcionalismo público. Dá e passa. A vida sem
carteira assinada é ruim, mas a vida sem trabalho é pior.
Nenhum comentário:
Postar um comentário