O voto no Brasil hoje vale muito pouco. E precisa voltar a valer. Diante de um buraco tão fundo, que não para de se alargar, refundar a democracia depende da retomada pela população do poder de escolher quem a representa. Este seria apenas o começo. Mas, sem ele, seguiremos girando em falso. E, mesmo aqueles que supõem controlar as voltas, iludem-se. O que se passa hoje no Brasil não começou ontem nem terminará amanhã. Nos assombrará por muito tempo. É urgente que o poder de decidir quem governa e com qual programa governa volte às mãos da população como um primeiro movimento. É preciso que Michel Temer renuncie, seja impedido ou afastado e que se faça eleições diretas. Não se trata apenas do futuro, é o presente que está interditado. E por isso é tão urgente. O presente não voltará a ser possível antes que se recupere a capacidade de imaginar um país.
Dizer que o voto vale hoje muito pouco no Brasil não é uma figura retórica. Ou mesmo um clichê. É um fato produzido tanto pelo oportunismo quanto pela irresponsabilidade de grupos de poder. E um fato que precisa ser compreendido para além do que se costuma chamar de “polarização”.
O voto, no Brasil, foi traído duas vezes na história recente. Uma no estelionato eleitoral promovido por Dilma Rousseff, logo no início do seu segundo mandato, quando a presidente adotou o programa dos adversários. Outra quando ela foi deposta sem que o motivo alegado justificasse uma medida tão extrema. E a traição pode ainda ser ampliada muitas vezes quando contemplada pelo ângulo da corrupção que atravessa tanto o Executivo quanto o Legislativo.
Da primeira traição, o PT sequer fez autocrítica. Nada indica que pretenda fazer enquanto tiver chance de voltar ao poder. Ou mesmo depois. A segunda traição ao voto não para de se ampliar. Michel Temer, hoje investigado por corrupção passiva, obstrução da justiça e organização criminosa, tornou-se presidente pela força de um impeachment que não se sustentava. E acaba de ser salvo por um tribunal presidido por um ministro, Gilmar Mendes, que corrói a noção de justiça um pouco mais a cada dia num país em que a justiça tanto falta. Tudo isso é agravado por um Congresso dominado por investigados, que negociam no balcão reformas que alteram profundamente a vida da população. Reformas que a população não escolheu ao eleger a chapa Dilma-Temer, vale lembrar.
O PT precisa se responsabilizar pela parte que lhe cabe na corrosão da democracia
É importante compreender que as traições ao voto são duas para não seguirmos girando em falso. O fato de serem duas é também o que aprofunda a crise e dificulta que se saia dela. A deposição de uma presidente democraticamente eleita sem razão que justificasse ato tão extremo, tanto que Dilma Rousseff sequer perdeu o direito de disputar eleições e ocupar cargos públicos, é mais traumática do que a traição cometida por esta mesma presidente ao programa que a elegeu. E podemos supor que seja mais grave. Mas uma traição não absolve a outra. Ambas têm efeito sobre o esvaziamento do voto e, portanto, da democracia. E o esvaziamento do voto tem consequência profunda – e longa – na vida do país.
É importante compreender que são duas as traições ao voto porque o Brasil tem um problema crônico com a memória. Se o PT quiser voltar a recuperar algum respeito, a autocrítica não é opcional. A autocrítica é uma questão de responsabilidade. É também uma dívida com os eleitores, mas não só. É uma dívida com a população do país que o partido governou por mais de 13 anos porque a maioria deu a ele a confiança do seu voto. O PT precisa se responsabilizar pela parte que lhe cabe na corrosão da democracia.
É importante compreender que são duas as traições ao voto por uma terceira razão: para localizar onde de fato está a oposição. A “polarização” que se apresenta como realidade obscurece coisas demais. E produz apagamentos. É por isso que o PT não pode apenas se colocar automaticamente na oposição como se não tivesse nada a ver com o atual projeto no poder ou como se o impeachment de tudo o absolvesse. Apagamento da memória só é estratégia de criminoso e de mau caráter. Tem bastante disso no PT, mas também tem muita gente honesta. Aparentemente, os honestos seguem sem voz decisiva no partido ou pouco dispostos a usá-la.
A eclosão da violência nas periferias é intimamente ligada à fragilidade das instituições no centro
Se Dilma Rousseff foi deposta sem que o motivo alegado naquele momento justificasse medida tão extrema, é óbvio que a permanência de Michel Temer na presidência do país é insustentável. Ou deveria ser insustentável. A cada dia que ele fica no Planalto a vida no Brasil piora um pouco mais. A absolvição da chapa Dilma-Temer no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), na última sexta-feira (9/6), deixou ainda mais clara a profunda crise ética do país – e deixou ainda mais explícito que o judiciário está longe de escapar da lambança.
Além do péssimo estilo da retórica dos ministros que votaram para salvar o presidente sem salvação, a lógica passou longe de seus argumentos. Como era previsto, Gilmar Mendes desempatou a votação dizendo exatamente o oposto do que disse antes, porque se antes interessava afundar Dilma Rousseff, agora interessa salvar seu amigo Michel. É a politização do judiciário num grau que parecia inimaginável até então.
Gilmar Mendes torna-se hora a hora um personagem cada vez mais nocivo ao Brasil. Num artigo bem fundamentado, Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da Universidade de São Paulo (USP), afirmou: "Gilmar Mendes não é polêmico, nem controverso, nem corajoso. Eufemismos jornalísticos apenas obscurecem o problema. O direito não é indiferente à antiética de Gilmar Mendes: seu comportamento é ilegal".
Gilmar Mendes se torna para o Judiciário, no âmbito da imagem e da responsabilidade pública, o que Eduardo Cunha foi para o Legislativo
E isso que o artigo foi publicado antes do julgamento no TSE. As acrobacias retóricas de Gilmar Mendes para absolver Temer lembraram outro personagem deste momento histórico, capaz de dizer qualquer absurdo com toda ênfase e sem piscar. Gilmar Mendes está se tornando para o Judiciário, no âmbito da imagem e da responsabilidade pública, o que Eduardo Cunha foi para o Legislativo. Assim como Eduardo Cunha estava longe de ser “o” problema do Congresso, também Gilmar Mendes está longe de esgotar os problemas do Supremo Tribunal Federal. Mas ambos encarnam a deformidade dos poderes que representam e a expõe para serem atravessadas pela luz do dia. Agora são dois os vilões do Batman em Brasília City (ainda que um deles esteja no momento amargando uma temporada em clima mais frio).
A cada vez que os fatos são torturados, o voto da população se esvazia um pouco mais. E a democracia se enfraquece. Se depõe uma presidente pelo que se chamou de “pedaladas fiscais”, com grupos liderando uma massa nas ruas em nome de combater a corrupção, e um presidente investigado por corrupção, obstrução de justiça e organização criminosa ocupa hoje o poder sem que os mesmos grupos vão para a rua.
Como é possível justificar o injustificável? O cotidiano no Brasil tem mostrado que justificar o injustificável (e seguir se autoproclamando “cidadão de bem”) se tornou um esporte nacional. O pato da Fiesp, como já foi dito por tantos, mas não custa lembrar, somos nós. É importante diferenciar a massa que foi para as ruas em 2015 e 2016 dos grupos que lideraram as manifestações. É também possível supor, pela popularidade perto de zero de Temer, que aqueles que foram às ruas pedir o impeachment de Dilma Rousseff não estão satisfeitos com o que veio depois.
A profunda distorção que marca essa época, com ampla responsabilidade dos três poderes da República e também de grupos da sociedade civil, amplia a percepção de que o voto – para muitos toda a participação democrática – não vale mais nada. E isso é um golpe na nossa frágil democracia, um golpe com braços longos no tempo. E também por isso as eleições diretas se tornam imperativas.
É importante lembrar que este enredo, o do progressivo esvaziamento do voto, se desenrolou num momento muito particular. Nos protestos de junho de 2013, uma multidão nas ruas apontava justamente a insuficiência do voto como instrumento de participação democrática. Assim como colocava em xeque a representação partidária, que já não dava conta de canalizar os anseios de melhoria de vida da população. O fenômeno tem conexões globais, mas em cada país evoluiu de forma particular.
A narrativa da polarização serve ao apagamento das semelhanças em vez da vocalização das diferenças
O que aconteceu então? Em vez de escutar a polifonia das ruas e debater formas de ampliação dos mecanismos de participação democrática, os dois “polos políticos” – PSDB e PT – optaram tanto pela repressão quanto pela desqualificação de quem protestava. Se o PSDB de Geraldo Alckmin logo jogou a Polícia Militar sobre os manifestantes, no exemplo emblemático de São Paulo em junho de 2013, a escolha do PT de Dilma Rousseff tornou-se explícita especialmente nas manifestações contra a Copa, em 2014. De novo a narrativa da polarização serve ao apagamento de semelhanças quando finge vocalizar diferenças.
Na revista Piauí de junho, há um artigo de Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo pelo PT. Ele foi escrito a partir de uma série de depoimentos que Haddad deu ao jornalista Ivan Marsiglia. É um alento, num momento de tanta louvação à ignorância e à marquetagem rasteira, ler um texto construído por quem está disposto a pensar a experiência política vivida. “Vivi na pele o que aprendi nos livros” é um texto obrigatório para quem quer compreender o país. Mas, se há muitas qualidades nele (e há), é uma pena que Haddad tenha se dedicado um pouco menos a se pensar neste contexto.
A análise é carente de autocrítica, mas talvez ela venha num próximo capítulo. Mas o entendimento de junho de 2013 e de suas consequências é redutor do que ali se passou e ecoa até hoje. E Haddad, prefeito de São Paulo naquele momento, foi um protagonista importante demais. Havia escolhas a se fazer ali e muito pouco tempo para compreender o que até hoje ninguém entendeu por completo. É preciso pensar sobre elas sem autoindulgência por todas as razões e também para expressar os limites tanto da pessoa como do governante em momentos tão agudos.
Naquela ocasião, o PT teve uma oportunidade em nível local, no caso de São Paulo – e principalmente nacional. E a perdeu. Já tinha perdido as ruas e, em vez de escutá-las e refletir sobre os porquês, preferiu se aliar progressivamente à truculência do PSDB e ao caminho autoritário. E isso torna o partido corresponsável também por tudo o que veio depois. Os protestos de junho ecoarão por muito tempo e há muito por se compreender. Não é possível apagar que, ao contrapor-se ao aumento da passagem e reivindicar a tarifa zero, as manifestações eclodem por um desejo de reapropriação da cidade e da possibilidade de se mover nela. O que é bastante significativo.
Não adianta contornar erros e contradições, na tentativa de convertê-los em acertos e vitimizações. Mais vale assumi-los e pensar sobre eles. E o PT tem muito a refletir sobre o seu papel em 2013 e 2014. Quando hoje sindicalistas e organizações ligadas ao partido denunciam a criminalização dos movimentos sociais pelo atual governo, não dá para esquecer que Dilma Rousseff sancionou a lei antiterrorismo que escancarou a porteira para criminalizar manifestantes e manifestações.
Belo Monte, mais do que a Petrobras, contém todas as faces das contradições do Brasil atual
Quem acompanhou o processo de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, na Amazônia paraense, testemunhou as contradições do PT no poder se realizando bem antes, numa obra em que público e privado se misturam. A cooptação dos movimentos sociais, para minar a resistência à obra; a divisão das lideranças indígenas e a instituição de uma mesada para as aldeias; a violação dos direitos humanos mais básicos quando analfabetos eram pressionados a assinar papéis que não eram capazes de ler, perdendo casas, ilhas e terras; a Força Nacional colocada a serviço da empresa para reprimir os protestos dos atingidos e também as paralisações dos trabalhadores; a usina construída pela força do instrumento autoritário da suspensão de segurança, com a conivência de presidentes de tribunais. E, atravessando tudo, o propinoduto hoje investigado pela Lava Jato.
Toda a anatomia do governo PT-PMDB-Empreiteiras estava lá para quem estivesse disposto a ver. E poucos estavam. E, ao fundo, uma gigantesca traição ao voto. Não há autocrítica possível do PT, assim como responsabilização de todos os envolvidos, sem enfrentar Belo Monte. Muito mais do que a Petrobras, a empresa, Belo Monte, a obra, converte-se no monumento que contém todas as faces das contradições. E, mais uma vez, adversários em todo o resto se unem no esforço de apagar esse capítulo monstruoso (ou superá-lo), agora com o discurso do “fato consumado”.
Em 2013 as ruas expressam não só, mas também, que o voto é insuficiente como principal instrumento de participação democrática. E expressam não só, mas também, que os partidos não são mais capazes de representar anseios, mesmo que díspares. Em vez de atuar pelo fortalecimento do voto, assim como pela ampliação das formas de representação, o que aconteceu desde então foi o oposto: o esvaziamento tanto do voto quanto da capacidade de representação pela via partidária. Ambos agravados pela corrupção disseminada nas principais siglas, exposta pela Lava Jato. É também por isso que a volta da decisão de quem vai governar o país às mãos da população, pela via do voto, é essencial neste momento do Brasil. Eleições indiretas só aprofundariam ainda mais as fraturas do país e enfraqueceriam ainda mais uma democracia cada vez mais desacreditada.
O que antes era rebelião hoje beira a apatia. Esta é uma das hipóteses possíveis para explicar por que o clamor do “Diretas Já” ainda não tenha tomado as ruas com uma força capaz de sacudir Brasília, embora a maioria da população seja favorável às eleições diretas nas pesquisas. Há muito barulho nas redes sociais sobre o que se vive hoje no país, mas nada acontece de fato se não acontecer também nas ruas. Não foram pequenas as últimas manifestações do “Fora Temer” e “Diretas Já”, em especial no Rio e em São Paulo. Mas elas ainda não foram suficientemente grandes nem uniram uma população com dificuldades para compartilhar o espaço público mesmo carregando suas diferenças. O que não significa que as manifestações não possam crescer se Temer for denunciado e virar réu ou se novas denúncias surgirem – ambas possibilidades bastante prováveis.
A crescente fragilização da democracia no interior de corações e mentes, entranhada no cotidiano, é a mais perigosa
Há descrença na política e nos políticos, há descrença nos partidos. E há uma percepção disseminada de que, de alguma forma, o voto será mais uma vez traído. E, de alguma forma, os grupos de poder vão acabar fazendo o que bem entendem, independentemente das mobilizações, o que a população comprova na prática do dia a dia. E, sendo assim, cada um vai cuidar da própria vida que se tornou muito mais difícil, cada vez menos convencido de que pode existir uma saída pela via da política e do voto. Essa crescente fragilização da democracia no interior de corações e mentes, entranhada no cotidiano, é a mais perigosa. E também por isso a decisão sobre quem governará o país na hipótese da saída de Michel Temer deve ser do povo e das urnas.
O que ecoa hoje no Brasil tem muito de particular – e tem muito da própria crise da democracia como fenômeno global. Há muito escrito sobre este tema. Gosto particularmente de um pequeno livro, Babel – entre a incerteza e a esperança (Zahar, 2016). A obra é uma conversa bastante iluminadora entre o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, falecido em janeiro deste ano, e o jornalista italiano Ezio Mauro. Eles discutem como a política acaba sendo o “totem corrompido” de um mundo que não funciona. E alertam para o fato de que “depois de ter derrotado as ditaduras, a democracia não se instala no controle para sempre”.
Ezio Mauro define com precisão o sentimento do cidadão que “conta apenas como um, sem capacidade de se somar aos outros”: “Ele não se sente desapontado, mas antes rebelde, protagonista de uma espécie de sucessão republicana, quase um novo súdito político na contrapolítica da rejeição. Mas não compreende que tampouco ele tem interesse para o Estado, exceto como número a ser registrado nas pesquisas, sem rosto e sem história. Ele não compreende, em outras palavras, que no momento em que sua liberdade se torna assunto privado e ele começa a exercer seus direitos somente como indivíduo, no momento em que liberdade e direitos são ambos incapazes de se aglutinar num tipo qualquer de projeto com os outros, ambos se tornam irrelevantes e estéreis aos olhos do poder, já que perderam sua capacidade de por o que quer que seja em movimento. O Estado sabe que estou estatisticamente presente, mas também sabe que eu só conto como um e não tenho capacidade de me somar aos outros”.
Talvez este seja um impasse para o movimento das Diretas Já no Brasil. Embora existam vozes fortes lutando por elas em textos e manifestos, assim como nos carros de som e também no Congresso, as eleições diretas poderiam se realizar de fato, num sentido mais profundo, sem uma presença representativa nas ruas? E, ainda: o clamor das Diretas Já se tornaria capaz de marcar a retomada da reinvenção da política? Ou a paralisia gritada, mascarada de movimento, seguirá pontuando o cotidiano? Os dias dirão.
Seguindo ainda essa conversa tão interessante, Bauman faz uma pergunta retórica para expressar o descrédito da população na capacidade de a política responder aos anseios da vida: “Na verdade, por que haveria você de se mobilizar, se preocupar e se interessar se o que se faz só tem, se tiver, uma ligação remota com o que você quer que seja feito e que em quase nada alivia os problemas que o afligem e os medos que o assombram?”.
“Tempos de desesperança são repletos de tumbas de profetas desonestos e falsos salvadores”
E então Bauman faz uma referência que parece descrever o Brasil atual: “Toda vez que tentamos diagnosticar a presente crise da democracia, a verdade dos fatos nos redireciona para a celeremente deteriorada confiança na capacidade de as instituições políticas existentes fazer o que os cidadãos exigiriam caso ainda acreditassem que as demandas seriam ouvidas e levadas a sério. Entretanto, eles não acreditam mais. Pelo menos a maioria, e na maior parte do tempo, não acredita. Alguns caçadores de votos, apresentando-se como outsiders, intocados pela podridão e pela paralisia ‘que aí estão’, conseguem capitalizar a solidão do eleitorado e captar a simpatia de alguns de seus membros, fazendo promessas que eles sabem – e a maioria das pessoas desconfia – que não serão capazes de cumprir se forem eleitos. (...) Em regra, contudo, a frustração vai alcançá-los logo depois das eleições. Tempos de desesperança são repletos de tumbas de profetas desonestos e falsos salvadores”.
E Mauro completa: “Há certamente um caminho. Mas nós corremos o risco de não o encontrar, pois o interregno é também um período em que a irracionalidade da decadência germina sem restrição, numa rebelião mais motivada por angústias que por liberdade verdadeira; um período em que surgem figuras xamânicas que reduzem o mecanismo político ao seu carisma, fazem apelos aos nossos instintos, emocionalmente, e engendram medos para transformá-los em grandes trivialidades, como se fosse possível haver soluções simples para problemas complexos”.
No cotidiano de exceção que hoje vivemos no Brasil, é preciso interromper o processo contínuo de esvaziamento do voto por todas as razões e por uma em particular. O fato de uma presidente democraticamente eleita ter sido tirada do poder de forma tão ligeira fortaleceu em grupos cuja violência mantinha-se ainda sob algum controle a certeza de que se pode tudo. De que o resultado das urnas não é soberano e a democracia é uma questão de interpretação. Quando o vice que se tornou presidente pela força do impeachment é investigado por crimes graves e ainda assim se mantém no poder, cercado por um ministério de investigados, essa percepção só se fortalece. Vira convicção. Tudo parece depender da ocasião e de quem pode mais – e não da lei.
Essa convicção é demonstrada na articulação da bancada ruralista, que lidera votações no Congresso para desproteger terras públicas para ampliação da sua exploração privada. E já avança na tentativa de mudar o mapa do Brasil, ao aprovar a mutilação de florestas e legalizar a grilagem. E essa convicção se realiza na escalada de violência. Os grileiros se tornaram visivelmente mais desenvoltos na floresta amazônica, avançando com mais ímpeto sobre unidades de conservação e terras indígenas, na certeza da impunidade. Personagens que se mantinham em estado de latência, como alguns parasitas que habitam nossos intestinos, voltaram a irromper na superfície do tecido social. A eclosão da violência nas periferias é intimamente ligada à fragilidade das instituições no centro. Como já escrevi na coluna anterior, os mais frágeis morrem primeiro. Longe acontece primeiro.
No cotidiano de exceção que hoje vivemos no Brasil, interromper o processo contínuo de esvaziamento do voto é só um começo. O caminho será longo e difícil. Por várias razões e também porque o principal projeto de país da história recente, simbolizado pelo PT, corrompeu-se e ruiu. O caminho será longo e difícil qualquer que seja o cenário. Mas é importante escolher a saída capaz de interromper o processo de fragilização da democracia. É importante que a resistência democrática se converta em ato – o ato de votar, a responsabilidade pela escolha.
A eleição direta, pela via constitucional, não é um atalho irresponsável, como dizem alguns. Mas sim uma reparação responsável da democracia, em processo acelerado de esvaziamento, por obra de uma corrosão promovida pelos dois lados da dita polarização. Uma nova ideia de Brasil não está lá nem cá, mas em múltiplos lugares. O Brasil precisa voltar a ser imaginado. E para isso precisa que o voto volte a valer.
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