A decisão da agência norte-americana Federal Communications Commission (FCC), de pôr fim à neutralidade da rede, que evitava que interesses econômicos determinassem o tráfego de pacotes de dados pela internet, demonstra que “há uma disputa política e econômica na esfera pública conforme grupos de interesse”, diz Marcelo Barreira à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail.
Segundo Barreira, a decisão “foi mais política e ideológica do que técnica”e a “visão política vencedora na FCC foi a narrativa em defesa de que as regras de 2015, e implementadas pelo ex-presidente Obama, seriam pesadas para o investimento em banda larga”. O professor explica ainda que de acordo com a legislação que garantia a neutralidade da rede, “a banda larga era vista como um serviço essencial e, portanto, de utilidade pública como água e energia elétrica; assim, independentemente do poder financeiro, todos os consumidores deveriam ser tratados igualmente”.
Com o fim da neutralidade, o serviço de internet passa a ser visto como “um serviço não-essencial de informação”, e “a regulação específica passa a deixar de ser do tipo Title II Order e passa a ser Title I Order. Com essa alteração, retoma-se a Lei de Telecomunicações, de 1996. Lei aprovada por um congresso de maioria conservadora e republicana e promulgada pelo ex-presidente Clinton. Tal Restoring Internet Freedom Order é uma regulação leve (light touch), mas de tão leve acaba se aproximando de uma autoregulação, mesmo que exija em tese maior transparência e mais competitividade”.
A iniciativa, afirma, “funcionará como um elemento político-ideológico de pressão para que outros países adotem as mesmas regulamentações”. Na entrevista a seguir, Barreira também comenta quais serão as implicações da decisão da agência norte-americana para o usuário. “Com a quebra de neutralidade da rede haverá mudanças significativas. A principal é a mudança de eixo, da centralidade no usuário, em sintonia com a origem da internet, gira-se agora para a centralidade do mercado, por meio das grandes operadoras como a AT&T, a Verizon e a Comcast, aumentando sua margem de lucro. Além de romper com a democratização dos direitos digitais, o sinal mais eloquente dessa mudança será o encarecimento do acesso à internet pelo usuário-cidadão”, adverte.
Marcelo Barreira é graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre na mesma área pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ e doutor também em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É professor do Departamento de Filosofia e do PPGFil da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é o significado da decisão do governo dos EUA de por fim à neutralidade da rede?
Marcelo Barreira - Embora o conceito de “neutralidade da rede” (network neutrality) seja uma elaboração feita em 2003 por Tim Wu, da Universidade de Colúmbia (EUA), seu princípio advém desde a lei federal chamada Pacific Telegraph Act, de 1860. Diante do monopólio de telefonia pela American Bell - que incorporou a AT&T em 1885 como subsidiária -, essa lei determinava uma isonomia na transmissão de mensagens nas linhas telegráficas por cidadãos e empresas, apenas despachos governamentais teriam a prerrogativa de furar a fila. Em resumo: manter a isonomia perante a diversidade de mensagens sintetiza a definição do conceito de neutralidade.
Retomando a posição de Locke em sua “Carta sobre a Tolerância” de 1689, o princípio da neutralidade axiológica do magistrado civil se configurou numa eficaz garantia da diversidade religiosa num contexto europeu de conflitos neste campo. Até hoje, a laicidade do Estado democrático de Direito significa a tentativa de impedir o privilégio de um grupo em detrimento de outros, minoritários ou menos poderosos economicamente. Do mesmo modo, além de a filosofia expressar a cultura democrática liberal estadunidense, a neutralidade da rede contribui para evitar interesses econômicos no tráfego de pacotes de dados pela internet.
Em específico, o mercado, por meio de gigantes comerciais da indústria de tecnologia de telecomunicações, especialmente prestadores de serviço de internet (ISPs) e provedores de banda larga (IBPs), precisa ser domesticado para não inviabilizar pequenas empresas de tecnologia como as startups. A justiça pressupõe neutralidade diante de concepções morais e religiosas, mas pressupõe sobretudo o rompimento com a desigualdade socioeconômica.
IHU On-Line - Em que contexto político essa decisão foi tomada? O que acha que deve ter motivado a decisão?
Marcelo Barreira - O contexto político por traz dessa tomada de decisão foi a eleição de Trump, que nomeou Ajit Pai como chefe da Federal Communications Commission (FCC), a agência que regula o mercado de telecomunicações. Logo, embora a decisão tenha acontecido na FCC e não monocraticamente por Trump, o presidente dos EUA contribuiu, mesmo indiretamente, para que ela acontecesse. O voto de Pai, republicano sênior na FCC (participa dela desde 2012), foi o último e decisivo voto para que, no último dia 14 de dezembro e por 3 a 2, a Comissão decidisse em favor de uma nova compreensão do serviço de telecomunicações em banda larga. Muitos interesses acarretaram essa decisão. Decisão que foi mais política e ideológica do que técnica. A internet, além de seu óbvio aspecto técnico, também envolve questões jurídicas, políticas e socioeconômicas.
Assim, a visão política vencedora na FCC foi a narrativa em defesa de que as regras de 2015, e implementadas pelo ex-presidente Obama, seriam pesadas para o investimento em banda larga. Eis o principal argumento de Ajit Pai, ex-advogado da operadora Verizon, cujo pressuposto ideológico é o intrínseco dano do Estado para o “livre mercado”.
IHU On-Line - O que muda no funcionamento da internet a partir dessa medida?
A principal é a mudança de eixo, da centralidade no usuário, em sintonia com a origem da internet, gira-se agora para a centralidade do mercado, por meio das grandes operadoras como a AT&T, a Verizon e a Comcast
Marcelo Barreira - Com a quebra de neutralidade da rede haverá mudanças significativas. A principal é a mudança de eixo, da centralidade no usuário, em sintonia com a origem da internet, gira-se agora para a centralidade do mercado, por meio das grandes operadoras como a AT&T, a Verizon e a Comcast, aumentando sua margem de lucro. Além de romper com a democratização dos direitos digitais, o sinal mais eloquente dessa mudança será o encarecimento do acesso à internet pelo usuário-cidadão. Com o traffic shaping abandona-se seu oposto, o zero rating, isto é, a gratuidade no acesso a produtos on-line e no tráfego end-to-end de dados, que garante a transmissão de pacotes de dados entre origem e destino sem qualquer manipulação ou diferenciação.
O rompimento com o princípio end-to-end é o principal fator de ruptura com a neutralidade da rede, pois quanto mais fácil o acesso aos produtos na rede, melhor será para a popularidade e o retorno financeiro desses produtos. O traffic shaping não só diferenciará planos por velocidade de transferência (como hoje), mas também possibilitará “bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados”, nos termos em que nosso Marco Civil da Internet proíbe essas ações em seu § 3º, do art. 9º. Na medida em que produtores de conteúdo firmem contratos comerciais com as operadoras de telecomunicações, eles obterão preferência na disponibilidade de seus produtos na rede - como vídeos (YouTube), streaming (Netflix) e Voip (como Skype e WhatsApp). Um exemplo disso é o anúncio de “WhatsApp ilimitado” por operadoras de telefonia. Esses produtores de conteúdo exigirão, por conseguinte, uma cobrança pelo uso de seus serviços. Haverá, então, faixas de preços e categorias de usuários de acordo com quem pode ou não pagar.
IHU On-Line - Qual deve ser o impacto dessa decisão em termos mundiais?
Marcelo Barreira - A mudança na regulação funcionará como um elemento político-ideológico de pressão para que outros países adotem as mesmas regulamentações. Isso ocorre por dois motivos: no caso brasileiro, como vemos com a Lava Jato, nosso sistema de justiça tem sido crescentemente influenciado pela hermenêutica e jurisprudência estadunidense. Outro motivo é o fato de os EUA ser referência mundial em tecnologia de telecomunicações, tornando, por sua vez, paradigmática a sua legislação sobre o tema.
IHU On-Line - Em que consistiam as medidas estabelecidas em 2015 para proteger a equidade na internet?
Marcelo Barreira - Nas regras de 2015 a banda larga era vista como um serviço essencial e, portanto, de utilidade pública como água e energia elétrica; assim, independentemente do poder financeiro, todos os consumidores deveriam ser tratados igualmente. Ao alterar para um serviço não-essencial de informação, a regulação específica passa a deixar de ser do tipo Title II Order e passa a ser Title I Order. Com essa alteração, retoma-se a Lei de Telecomunicações, de 1996. Lei aprovada por um congresso de maioria conservadora e republicana e promulgada pelo ex-presidente Clinton. Tal Restoring Internet Freedom Order é uma regulação leve (light touch), mas de tão leve acaba se aproximando de uma autoregulação, mesmo que exija em tese maior transparência e mais competitividade.
Ademais, com tal decisão, a supervisão de serviços de banda larga passou a ser da esfera comercial; logo, suas demandas versam da ordem econômica, será outra autarquia, a Federal Trade Commision (FTC), a agência reguladora de comércio, que sanará demandas acerca dos direitos digitais, interpretadas agora como violação da livre concorrência. De qualquer modo, essa decisão será questionada nos tribunais. Procuradores-gerais de Nova Iorque e deputados do Partido Democrata pretendem restabelecer o Title II Order, de 2015. O Congresso pode ainda apresentar um Congressional Review Act (CRA), ou seja, um recurso para invalidar a decisão da FCC. Junto a essas estratégias, algumas entidades da sociedade civil organizada, como a American Civil Liberties Union e o movimento People Power, proporão a legislativos estaduais projetos de lei que assegurem regionalmente a neutralidade da rede.
IHU On-Line - Alguns pesquisadores têm dito que a neutralidade garantirá a competitividade na internet, mas que agora a competitividade está ameaçada. O senhor concorda?
Marcelo Barreira - A conjuntura aqui e nos EUA é de crise do sistema político e de desilusão com a democracia formal. Do mesmo modo que a decisão tomada pela FCC não foi apenas técnica, suas consequências também são políticas e talvez o maior peso neste sentido seja a falência doo princípio liberal e democrático à liberdade de informação e à diversidade de opiniões. Mesmo o processo que culminou na decisão da FCC expressou uma ausência de debate público ou seu arremedo – afinal, conforme Jeff Kao, engenheiro de software no site Hackernoon, grande parte dos e-mails favoráveis à quebra da neutralidade teriam como origem a Rússia e eram robôs de spam.
IHU On-Line - Qual deve ser o impacto dessa medida para o consumidor?
Marcelo Barreira - A variação no preço das franquias de pacotes de dados, colocando como paradigma de preço a telefonia móvel, seja na velocidade seja no acesso aos conteúdos, fará o consumidor, de um lado e de outro, pagar mais caro. Embora a narrativa em defesa do traffic shaping é de que pagará mais quem usar mais pacotes de dados e pagará menos quem usar menos, temos um frustrante exemplo recente quanto à desilusão desse discurso, especialmente em nossas terras. As franquias de bagagens para voos, além de não baratearem os preços das passagens aéreas, aumentaram a margem de lucro das empresas aéreas.
Em nosso país, os monopólios e a ineficiente proteção ao consumidor fazem os custos dos serviços aumentarem sem uma contrapartida em sua qualidade. O mesmo acontece com a notória e ilegal venda casada de serviço de banda larga com telefone fixo pelas operadoras de telefonia. Uma maneira de contornar essa venda casada tem sido o compartilhamento de redes sem fio entre vizinhos, ou as chamadas telefônicas pela internet por aplicativos, possibilidades atuais que seriam provavelmente muito dificultadas, ou até impedidas, com a quebra da neutralidade da rede.
IHU On-Line - Por que há uma disputa entre aqueles que defendem e aqueles que são contrários à neutralidade da rede? Quais são os grupos que hoje defendem e aqueles que são contrários à neutralidade da rede?
Marcelo Barreira - Há uma disputa política e econômica na esfera pública conforme grupos de interesse. Grupos contrários à neutralidade da rede afirmam, de modo geral, que se deve tratar de modo diferente os diversos tipos de uso da rede, com preços diferenciados segundo a sua finalidade, por exemplo, de acordo com interesses de nível de segurança; se é para uso comercial ou governamental; etc. Neste grupo se encontram as grandes operadoras, tais como a AT&T, a Verizon e a Comcast. Os partidários dessa narrativa defendem que mesmo antes da mudança de posição pela FCC já não havia propriamente uma neutralidade da rede, mas uma broadband neutrality. Ao replicarem pacotes de dados entre si, servidores de hospedagem de arquivos já conseguem uma ampliação diferenciada na largura da banda, o que cria uma maior disponibilidade de transferência de dados e estabelece uma saudável variação de planos e preços de acordo com a maior capacidade de oferecer uma mais ampla disponibilidade de banda.
Outro argumento contrário à neutralidade da rede é que a maior oferta de tráfego de dados na rede tem acarretado um enorme lucro aos produtores de conteúdo. O YouTube exemplifica bem essa tese. Sua maciça oferta de conteúdo – em um mês produz o equivalente a um ano de conteúdo produzido por rádios e televisões – não se traduz em recursos financeiros para os provedores de banda larga, mesmo assim, esses provedores ficam obrigados a defenderem a rede de ameaças, como a prevenção contra vírus e seus ataques DoS (Denial of Service), o que onera as operadoras. Junto a isso, a decisão de 2015 do ex-presidente Obama gerou uma queda de arrecadação nos últimos 2 anos, conforme preconiza Ajit Pai.
Os grupos favoráveis à neutralidade da rede polarizam em cada um dos pontos acima. Um importante grupo que saiu em defesa da neutralidade é formado pelas produtoras de conteúdo para a internet e startups, como Netflix, Apple, Google, Twitter, Twitch, Spotify, Airbnb e Snap, Microsoft, Amazon e Facebook. Nesse caso, como teriam de estabelecer acordos com provedores de acesso para que usuários acessem seus produtos, tal situação, mais do que liberdade, geraria uma submissão dessas empresas de conteúdo aos interesses de negócio das operadoras. As operadoras de banda larga, além da receita de acesso à rede, querem um compartilhamento da receita dos serviços que nela acontecem.
Mais do que um espírito comercial e mercadológico, a liberdade não vem do mercado, mas por um processo de interconexões e compartilhamentos. O valor econômico da rede segue esse tipo de liberdade, marcada pela relevância social
Numa analogia, por mais absurda que pareça, seria como se um serviço de delivery tivesse de estabelecer um contrato com montadoras de automóveis por estas fornecerem uma tecnologia de ponta, seus automóveis, isso se assemelharia ao que pleiteiam as operadoras. Por terem montado uma rede de banda larga, elas querem cobrar pelo seu uso. Além do grupo acima de empresas de conteúdo, mais visível, há outros. Dentre estes, há ativistas de direitos digitais, pequenas empresas de tecnologia, além de acadêmicos que conceberam a rede, como Tim Berners-Lee e Vint Cerf, além de outros que produziram tecnologias para a rede, como Steve Wozniak, co-fundador da Apple. Em geral, eles entendem que, ao inverso da posição anterior, foi a crescente relevância social da internet no cotidiano do cidadão comum, sobretudo graças à neutralidade da rede, que acarretou o seu valor econômico na economia de mercado.
Um grupo de ativistas, a Free Press, criou a plataforma Save The internet, exatamente para mostrar o equívoco da visão de que são as grandes indústrias de tecnologia que protagonizam necessariamente a inovação na internet. Desde a sua fundação, a internet se desenvolveu e foi inovadora pela descentralização de sua infraestrutura de cabos e fibras óticas que permitiram e permitem a conexão de banda larga fixa. Essa descentralização se deu, porém, por uma centralidade no usuário-cidadão e não pela ênfase no mercado e sua cumplicidade com o negócio das grandes operadoras e empresas de telecomunicações. A liberdade de tráfego de dados permitiu, então, o mais importante: a conexão colaborativa entre usuários, como no modelo P2P, além do crescimento de pequenas empresas de conteúdo. Mais do que um espírito comercial e mercadológico, a liberdade não vem do mercado, mas por um processo de interconexões e compartilhamentos. Assim, repetimos: o valor econômico da rede segue esse tipo de liberdade, marcada pela relevância social.
A democratização do acesso é o melhor meio de se incentivar a busca pela qualidade e inovação na rede, fazendo o usuário escolher o que melhor lhe convier, numa saudável e equitativa concorrência entre produtos e conteúdo. Embora financiamentos sejam sempre bem-vindos, o argumento de que a inovação pressupõe necessariamente altos investimentos “esquece” as ferramentas, aplicativos e sites surgidos em garagens, como a HP, a Sony, a Microsoft, a Apple, o YouTube, a Amazon e o Google. Tal “esquecimento” compromete o lançamento de novos produtos como esses, pois dificultaria a entrada no mercado de novas e pequenas empresas; empresas que teriam pouca força na negociação com operadoras que privilegiariam empresas mais populares de conteúdo.
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As operadoras precisam diminuir sua interferência no tráfego de dados em banda larga, e não o contrário. A centralidade está no direito digital do usuário, consumidor e cidadão
Marcelo Barreira - As operadoras precisam diminuir sua interferência no tráfego de dados em banda larga, e não o contrário. A centralidade está no direito digital do usuário, consumidor e cidadão. No Brasil, o Marco Civil da Internet, promulgado em 2014, foi o primeiro passo, mas precisamos de muitos outros passos na busca de uma cidadania digital plena. O Estado democrático de Direito há de neutralizar efetivamente a ganância das operadoras e garantir uma liberdade bem diferente da oferecida pelo mercado. A manifestação de pensamento e de informação como expressões dos Direitos Humanos, tornam o serviço de banda larga essencial para a democracia e, por isso, o Estado precisa intensificar políticas públicas de disseminação gratuita de internet banda larga em espaços públicos, sobretudo ante o crescimento da Internet of Things.
Segundo Barreira, a decisão “foi mais política e ideológica do que técnica”e a “visão política vencedora na FCC foi a narrativa em defesa de que as regras de 2015, e implementadas pelo ex-presidente Obama, seriam pesadas para o investimento em banda larga”. O professor explica ainda que de acordo com a legislação que garantia a neutralidade da rede, “a banda larga era vista como um serviço essencial e, portanto, de utilidade pública como água e energia elétrica; assim, independentemente do poder financeiro, todos os consumidores deveriam ser tratados igualmente”.
Com o fim da neutralidade, o serviço de internet passa a ser visto como “um serviço não-essencial de informação”, e “a regulação específica passa a deixar de ser do tipo Title II Order e passa a ser Title I Order. Com essa alteração, retoma-se a Lei de Telecomunicações, de 1996. Lei aprovada por um congresso de maioria conservadora e republicana e promulgada pelo ex-presidente Clinton. Tal Restoring Internet Freedom Order é uma regulação leve (light touch), mas de tão leve acaba se aproximando de uma autoregulação, mesmo que exija em tese maior transparência e mais competitividade”.
A iniciativa, afirma, “funcionará como um elemento político-ideológico de pressão para que outros países adotem as mesmas regulamentações”. Na entrevista a seguir, Barreira também comenta quais serão as implicações da decisão da agência norte-americana para o usuário. “Com a quebra de neutralidade da rede haverá mudanças significativas. A principal é a mudança de eixo, da centralidade no usuário, em sintonia com a origem da internet, gira-se agora para a centralidade do mercado, por meio das grandes operadoras como a AT&T, a Verizon e a Comcast, aumentando sua margem de lucro. Além de romper com a democratização dos direitos digitais, o sinal mais eloquente dessa mudança será o encarecimento do acesso à internet pelo usuário-cidadão”, adverte.
Marcelo Barreira é graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre na mesma área pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ e doutor também em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É professor do Departamento de Filosofia e do PPGFil da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é o significado da decisão do governo dos EUA de por fim à neutralidade da rede?
Marcelo Barreira - Embora o conceito de “neutralidade da rede” (network neutrality) seja uma elaboração feita em 2003 por Tim Wu, da Universidade de Colúmbia (EUA), seu princípio advém desde a lei federal chamada Pacific Telegraph Act, de 1860. Diante do monopólio de telefonia pela American Bell - que incorporou a AT&T em 1885 como subsidiária -, essa lei determinava uma isonomia na transmissão de mensagens nas linhas telegráficas por cidadãos e empresas, apenas despachos governamentais teriam a prerrogativa de furar a fila. Em resumo: manter a isonomia perante a diversidade de mensagens sintetiza a definição do conceito de neutralidade.
Retomando a posição de Locke em sua “Carta sobre a Tolerância” de 1689, o princípio da neutralidade axiológica do magistrado civil se configurou numa eficaz garantia da diversidade religiosa num contexto europeu de conflitos neste campo. Até hoje, a laicidade do Estado democrático de Direito significa a tentativa de impedir o privilégio de um grupo em detrimento de outros, minoritários ou menos poderosos economicamente. Do mesmo modo, além de a filosofia expressar a cultura democrática liberal estadunidense, a neutralidade da rede contribui para evitar interesses econômicos no tráfego de pacotes de dados pela internet.
Em específico, o mercado, por meio de gigantes comerciais da indústria de tecnologia de telecomunicações, especialmente prestadores de serviço de internet (ISPs) e provedores de banda larga (IBPs), precisa ser domesticado para não inviabilizar pequenas empresas de tecnologia como as startups. A justiça pressupõe neutralidade diante de concepções morais e religiosas, mas pressupõe sobretudo o rompimento com a desigualdade socioeconômica.
IHU On-Line - Em que contexto político essa decisão foi tomada? O que acha que deve ter motivado a decisão?
Marcelo Barreira - O contexto político por traz dessa tomada de decisão foi a eleição de Trump, que nomeou Ajit Pai como chefe da Federal Communications Commission (FCC), a agência que regula o mercado de telecomunicações. Logo, embora a decisão tenha acontecido na FCC e não monocraticamente por Trump, o presidente dos EUA contribuiu, mesmo indiretamente, para que ela acontecesse. O voto de Pai, republicano sênior na FCC (participa dela desde 2012), foi o último e decisivo voto para que, no último dia 14 de dezembro e por 3 a 2, a Comissão decidisse em favor de uma nova compreensão do serviço de telecomunicações em banda larga. Muitos interesses acarretaram essa decisão. Decisão que foi mais política e ideológica do que técnica. A internet, além de seu óbvio aspecto técnico, também envolve questões jurídicas, políticas e socioeconômicas.
Assim, a visão política vencedora na FCC foi a narrativa em defesa de que as regras de 2015, e implementadas pelo ex-presidente Obama, seriam pesadas para o investimento em banda larga. Eis o principal argumento de Ajit Pai, ex-advogado da operadora Verizon, cujo pressuposto ideológico é o intrínseco dano do Estado para o “livre mercado”.
IHU On-Line - O que muda no funcionamento da internet a partir dessa medida?
A principal é a mudança de eixo, da centralidade no usuário, em sintonia com a origem da internet, gira-se agora para a centralidade do mercado, por meio das grandes operadoras como a AT&T, a Verizon e a Comcast
Marcelo Barreira - Com a quebra de neutralidade da rede haverá mudanças significativas. A principal é a mudança de eixo, da centralidade no usuário, em sintonia com a origem da internet, gira-se agora para a centralidade do mercado, por meio das grandes operadoras como a AT&T, a Verizon e a Comcast, aumentando sua margem de lucro. Além de romper com a democratização dos direitos digitais, o sinal mais eloquente dessa mudança será o encarecimento do acesso à internet pelo usuário-cidadão. Com o traffic shaping abandona-se seu oposto, o zero rating, isto é, a gratuidade no acesso a produtos on-line e no tráfego end-to-end de dados, que garante a transmissão de pacotes de dados entre origem e destino sem qualquer manipulação ou diferenciação.
O rompimento com o princípio end-to-end é o principal fator de ruptura com a neutralidade da rede, pois quanto mais fácil o acesso aos produtos na rede, melhor será para a popularidade e o retorno financeiro desses produtos. O traffic shaping não só diferenciará planos por velocidade de transferência (como hoje), mas também possibilitará “bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados”, nos termos em que nosso Marco Civil da Internet proíbe essas ações em seu § 3º, do art. 9º. Na medida em que produtores de conteúdo firmem contratos comerciais com as operadoras de telecomunicações, eles obterão preferência na disponibilidade de seus produtos na rede - como vídeos (YouTube), streaming (Netflix) e Voip (como Skype e WhatsApp). Um exemplo disso é o anúncio de “WhatsApp ilimitado” por operadoras de telefonia. Esses produtores de conteúdo exigirão, por conseguinte, uma cobrança pelo uso de seus serviços. Haverá, então, faixas de preços e categorias de usuários de acordo com quem pode ou não pagar.
IHU On-Line - Qual deve ser o impacto dessa decisão em termos mundiais?
Marcelo Barreira - A mudança na regulação funcionará como um elemento político-ideológico de pressão para que outros países adotem as mesmas regulamentações. Isso ocorre por dois motivos: no caso brasileiro, como vemos com a Lava Jato, nosso sistema de justiça tem sido crescentemente influenciado pela hermenêutica e jurisprudência estadunidense. Outro motivo é o fato de os EUA ser referência mundial em tecnologia de telecomunicações, tornando, por sua vez, paradigmática a sua legislação sobre o tema.
IHU On-Line - Em que consistiam as medidas estabelecidas em 2015 para proteger a equidade na internet?
Marcelo Barreira - Nas regras de 2015 a banda larga era vista como um serviço essencial e, portanto, de utilidade pública como água e energia elétrica; assim, independentemente do poder financeiro, todos os consumidores deveriam ser tratados igualmente. Ao alterar para um serviço não-essencial de informação, a regulação específica passa a deixar de ser do tipo Title II Order e passa a ser Title I Order. Com essa alteração, retoma-se a Lei de Telecomunicações, de 1996. Lei aprovada por um congresso de maioria conservadora e republicana e promulgada pelo ex-presidente Clinton. Tal Restoring Internet Freedom Order é uma regulação leve (light touch), mas de tão leve acaba se aproximando de uma autoregulação, mesmo que exija em tese maior transparência e mais competitividade.
Ademais, com tal decisão, a supervisão de serviços de banda larga passou a ser da esfera comercial; logo, suas demandas versam da ordem econômica, será outra autarquia, a Federal Trade Commision (FTC), a agência reguladora de comércio, que sanará demandas acerca dos direitos digitais, interpretadas agora como violação da livre concorrência. De qualquer modo, essa decisão será questionada nos tribunais. Procuradores-gerais de Nova Iorque e deputados do Partido Democrata pretendem restabelecer o Title II Order, de 2015. O Congresso pode ainda apresentar um Congressional Review Act (CRA), ou seja, um recurso para invalidar a decisão da FCC. Junto a essas estratégias, algumas entidades da sociedade civil organizada, como a American Civil Liberties Union e o movimento People Power, proporão a legislativos estaduais projetos de lei que assegurem regionalmente a neutralidade da rede.
IHU On-Line - Alguns pesquisadores têm dito que a neutralidade garantirá a competitividade na internet, mas que agora a competitividade está ameaçada. O senhor concorda?
Marcelo Barreira - A conjuntura aqui e nos EUA é de crise do sistema político e de desilusão com a democracia formal. Do mesmo modo que a decisão tomada pela FCC não foi apenas técnica, suas consequências também são políticas e talvez o maior peso neste sentido seja a falência doo princípio liberal e democrático à liberdade de informação e à diversidade de opiniões. Mesmo o processo que culminou na decisão da FCC expressou uma ausência de debate público ou seu arremedo – afinal, conforme Jeff Kao, engenheiro de software no site Hackernoon, grande parte dos e-mails favoráveis à quebra da neutralidade teriam como origem a Rússia e eram robôs de spam.
IHU On-Line - Qual deve ser o impacto dessa medida para o consumidor?
Marcelo Barreira - A variação no preço das franquias de pacotes de dados, colocando como paradigma de preço a telefonia móvel, seja na velocidade seja no acesso aos conteúdos, fará o consumidor, de um lado e de outro, pagar mais caro. Embora a narrativa em defesa do traffic shaping é de que pagará mais quem usar mais pacotes de dados e pagará menos quem usar menos, temos um frustrante exemplo recente quanto à desilusão desse discurso, especialmente em nossas terras. As franquias de bagagens para voos, além de não baratearem os preços das passagens aéreas, aumentaram a margem de lucro das empresas aéreas.
Em nosso país, os monopólios e a ineficiente proteção ao consumidor fazem os custos dos serviços aumentarem sem uma contrapartida em sua qualidade. O mesmo acontece com a notória e ilegal venda casada de serviço de banda larga com telefone fixo pelas operadoras de telefonia. Uma maneira de contornar essa venda casada tem sido o compartilhamento de redes sem fio entre vizinhos, ou as chamadas telefônicas pela internet por aplicativos, possibilidades atuais que seriam provavelmente muito dificultadas, ou até impedidas, com a quebra da neutralidade da rede.
IHU On-Line - Por que há uma disputa entre aqueles que defendem e aqueles que são contrários à neutralidade da rede? Quais são os grupos que hoje defendem e aqueles que são contrários à neutralidade da rede?
Marcelo Barreira - Há uma disputa política e econômica na esfera pública conforme grupos de interesse. Grupos contrários à neutralidade da rede afirmam, de modo geral, que se deve tratar de modo diferente os diversos tipos de uso da rede, com preços diferenciados segundo a sua finalidade, por exemplo, de acordo com interesses de nível de segurança; se é para uso comercial ou governamental; etc. Neste grupo se encontram as grandes operadoras, tais como a AT&T, a Verizon e a Comcast. Os partidários dessa narrativa defendem que mesmo antes da mudança de posição pela FCC já não havia propriamente uma neutralidade da rede, mas uma broadband neutrality. Ao replicarem pacotes de dados entre si, servidores de hospedagem de arquivos já conseguem uma ampliação diferenciada na largura da banda, o que cria uma maior disponibilidade de transferência de dados e estabelece uma saudável variação de planos e preços de acordo com a maior capacidade de oferecer uma mais ampla disponibilidade de banda.
Outro argumento contrário à neutralidade da rede é que a maior oferta de tráfego de dados na rede tem acarretado um enorme lucro aos produtores de conteúdo. O YouTube exemplifica bem essa tese. Sua maciça oferta de conteúdo – em um mês produz o equivalente a um ano de conteúdo produzido por rádios e televisões – não se traduz em recursos financeiros para os provedores de banda larga, mesmo assim, esses provedores ficam obrigados a defenderem a rede de ameaças, como a prevenção contra vírus e seus ataques DoS (Denial of Service), o que onera as operadoras. Junto a isso, a decisão de 2015 do ex-presidente Obama gerou uma queda de arrecadação nos últimos 2 anos, conforme preconiza Ajit Pai.
Os grupos favoráveis à neutralidade da rede polarizam em cada um dos pontos acima. Um importante grupo que saiu em defesa da neutralidade é formado pelas produtoras de conteúdo para a internet e startups, como Netflix, Apple, Google, Twitter, Twitch, Spotify, Airbnb e Snap, Microsoft, Amazon e Facebook. Nesse caso, como teriam de estabelecer acordos com provedores de acesso para que usuários acessem seus produtos, tal situação, mais do que liberdade, geraria uma submissão dessas empresas de conteúdo aos interesses de negócio das operadoras. As operadoras de banda larga, além da receita de acesso à rede, querem um compartilhamento da receita dos serviços que nela acontecem.
Mais do que um espírito comercial e mercadológico, a liberdade não vem do mercado, mas por um processo de interconexões e compartilhamentos. O valor econômico da rede segue esse tipo de liberdade, marcada pela relevância social
Numa analogia, por mais absurda que pareça, seria como se um serviço de delivery tivesse de estabelecer um contrato com montadoras de automóveis por estas fornecerem uma tecnologia de ponta, seus automóveis, isso se assemelharia ao que pleiteiam as operadoras. Por terem montado uma rede de banda larga, elas querem cobrar pelo seu uso. Além do grupo acima de empresas de conteúdo, mais visível, há outros. Dentre estes, há ativistas de direitos digitais, pequenas empresas de tecnologia, além de acadêmicos que conceberam a rede, como Tim Berners-Lee e Vint Cerf, além de outros que produziram tecnologias para a rede, como Steve Wozniak, co-fundador da Apple. Em geral, eles entendem que, ao inverso da posição anterior, foi a crescente relevância social da internet no cotidiano do cidadão comum, sobretudo graças à neutralidade da rede, que acarretou o seu valor econômico na economia de mercado.
Um grupo de ativistas, a Free Press, criou a plataforma Save The internet, exatamente para mostrar o equívoco da visão de que são as grandes indústrias de tecnologia que protagonizam necessariamente a inovação na internet. Desde a sua fundação, a internet se desenvolveu e foi inovadora pela descentralização de sua infraestrutura de cabos e fibras óticas que permitiram e permitem a conexão de banda larga fixa. Essa descentralização se deu, porém, por uma centralidade no usuário-cidadão e não pela ênfase no mercado e sua cumplicidade com o negócio das grandes operadoras e empresas de telecomunicações. A liberdade de tráfego de dados permitiu, então, o mais importante: a conexão colaborativa entre usuários, como no modelo P2P, além do crescimento de pequenas empresas de conteúdo. Mais do que um espírito comercial e mercadológico, a liberdade não vem do mercado, mas por um processo de interconexões e compartilhamentos. Assim, repetimos: o valor econômico da rede segue esse tipo de liberdade, marcada pela relevância social.
A democratização do acesso é o melhor meio de se incentivar a busca pela qualidade e inovação na rede, fazendo o usuário escolher o que melhor lhe convier, numa saudável e equitativa concorrência entre produtos e conteúdo. Embora financiamentos sejam sempre bem-vindos, o argumento de que a inovação pressupõe necessariamente altos investimentos “esquece” as ferramentas, aplicativos e sites surgidos em garagens, como a HP, a Sony, a Microsoft, a Apple, o YouTube, a Amazon e o Google. Tal “esquecimento” compromete o lançamento de novos produtos como esses, pois dificultaria a entrada no mercado de novas e pequenas empresas; empresas que teriam pouca força na negociação com operadoras que privilegiariam empresas mais populares de conteúdo.
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As operadoras precisam diminuir sua interferência no tráfego de dados em banda larga, e não o contrário. A centralidade está no direito digital do usuário, consumidor e cidadão
Marcelo Barreira - As operadoras precisam diminuir sua interferência no tráfego de dados em banda larga, e não o contrário. A centralidade está no direito digital do usuário, consumidor e cidadão. No Brasil, o Marco Civil da Internet, promulgado em 2014, foi o primeiro passo, mas precisamos de muitos outros passos na busca de uma cidadania digital plena. O Estado democrático de Direito há de neutralizar efetivamente a ganância das operadoras e garantir uma liberdade bem diferente da oferecida pelo mercado. A manifestação de pensamento e de informação como expressões dos Direitos Humanos, tornam o serviço de banda larga essencial para a democracia e, por isso, o Estado precisa intensificar políticas públicas de disseminação gratuita de internet banda larga em espaços públicos, sobretudo ante o crescimento da Internet of Things.
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