Apoiando-se na Razão e na Ciência, as Luzes europeias enfrentaram
a servidão — mas também sacrificaram todas as demais formas de
conhecimento. Em contrapartida, é preciso afirmar, a partir das lutas,
as Epistemologias do Sul
Por Boaventura de Sousa Santos
A conhecida revista de arte norte-americana Artforum solicitou-me um
curto texto sobre o tema “O que é o Iluminismo?” Este é o título do
famoso texto de Immanuel Kant publicado em 1784, glosado desde então por
muito autores, inclusivamente por Michel Foucault. A editora da revista
queria especificamente que eu abordasse o tema a partir da minha
proposta das epistemologias do sul (Epistemologies of the South: Justice against Epistemicide. Nova Iorque, Routledge, 2014; The End of the Cognitive Empire: The Coming of Age of the Epistemologies of the South. Durham, Duke University Press, 2018.). Eis a minha resposta.
Em 1966, um dos mais inovadores intelectuais ocidentais do século XX,
Pier Paolo Pasolini, escreveu que somos muitas vezes prisioneiros de
palavras doentes. Referia-se a palavras que parecem plenas de sentido,
mas que, de fato, estão desprovidas dele ou, talvez mais precisamente,
palavras que possuem conotações vagas e misteriosas, mas nos deixam
muito inquietos, dada a sua aparência de estabilidade e coerência.
Pasolini refere três palavras doentes—cinema, homem e diálogo—,
insistindo no fato de existirem muitas mais. Penso que uma delas é
Iluminismo. Foucault mostrou já que somos prisioneiros desta palavra.
Contudo, na sua obsessão com a ideia de poder, não reconheceu que os
prisioneiros nunca estão totalmente aprisionados e que a resistência
nunca é apenas determinada pelas condições impostas pelo opressor.
Afinal, as conquistas revolucionárias dos protagonistas do Iluminismo
europeu mostram-nos precisamente isso. Devemos então começar a partir do
ponto em que Foucault nos deixou. Poderemos nós curar essa palavra
doente? Duvido que possamos. Contudo, se houver uma cura, ela ocorrerá,
sem dúvida, contra a vontade do doente.
Se perguntarmos a um budista o que é o Iluminismo, poderemos obter
uma resposta como a de Matthieu Ricard, um monge que vive no Nepal. Para
Ricard, Iluminismo implica:
Um estado de conhecimento ou
sabedoria perfeitos, aliado a uma infinita compaixão. Neste caso, o
conhecimento não significa somente a acumulação de dados ou uma
descrição do mundo dos fenómenos até aos mais ínfimos pormenores. O
Iluminismo é uma compreensão tanto do modo relativo da existência (a
forma como as coisas se nos apresentam) como do modo último da
existência (a verdadeira natureza dessas mesmas aparências). Tal inclui
as nossas mentes, bem como o mundo exterior. Esse conhecimento é o
antídoto básico para a ignorância e o sofrimento.
Até que ponto é que o Iluminismo de Ricard é diferente do de Kant,
Locke ou Diderot? Ambas as concepções implicam uma ruptura com o mundo
tal como ele nos é dado. Ambas exigem uma luta contínua pela verdade e
pelo conhecimento, sendo que o seu objetivo último equivale a uma
revolução — uma revolução interior, no caso do Iluminismo budista, e uma
revolução social e cultural, no caso do Iluminismo europeu. Será que
existem continuidades entre essas rupturas, tão distantes em termos das
suas gêneses e dos seus resultados? Devemos considerar como dado
adquirido que nos conhecemos a nós ao conhecermos o mundo, conforme nos
promete o Iluminismo europeu, ou devemos antes partir do pressuposto de
que conhecemos o mundo uma vez que nos conheçamos a nós, conforme a
promessa do Iluminismo budista? Qual dos dois pressupõe a tarefa mais
impossível?
Qual dos dois acarreta mais riscos para os que não acreditam nas suas
promessas? E, finalmente, porque é que questionar o Iluminismo europeu é
ainda hoje, mais de dois séculos depois da sua formulação, tão mais
relevante e controverso do que questionar o Iluminismo budista? Será
apenas porque a maioria de nós é ontológica, cultural e socialmente
eurocêntrica, e não budocêntrica?
A força do Iluminismo europeu baseia-se em duas demandas
incondicionais: a busca do conhecimento científico, entendido como a
única forma verdadeira de conhecimento e como fonte única de
racionalidade; e o empenho no sentido de vencer a “escuridão”, ou seja,
de banir tudo quanto é não-científico ou irracional. A
incondicionalidade dessas demandas tem como premissa a
incondicionalidade das causas que as orientam. E causas incondicionais
levam logicamente a consequências incondicionalmente positivas. Aqui
reside a fatal debilidade dessa força tão extrema, o seu calcanhar de
Aquiles. Tomar como base uma concepção única de conhecimento e de
racionalidade social exige que se sacrifique tudo aquilo que não lhe é
conforme. A natureza sacrificial desta confiança reside em que a
tolerância e a fraternidade decorrentes da celebração da liberdade e da
autonomia contêm em si a fatal incapacidade de distinguir coerção e
servidão de modos alternativos de ser livre ou autônomo. Ambos são
concebidos como inimigos da liberdade e da autonomia e, logicamente,
tratados com desapiedada intolerância e violência. É esse o impulso
atávico que subjaz à construção iluminista da humanidade “universal” e o
impele a sacrificar alguns humanos, banindo-os da categoria do humano,
como o antigo bode expiatório abandonado no deserto. Isso explica a
razão pela qual os direitos humanos podem ser violados em nome dos
direitos humanos, a democracia pode ser destruída em nome da democracia e
a morte pode ser celebrada em nome da vida. Aquilo que torna o
Iluminismo europeu tão fatalmente relevante e tão necessitado de
constante reavaliação é o fato de, ao contrário de outros projetos
iluministas (como o budista), o poder de impor as suas ideias aos outros
não se reger, ele próprio, por essas ideias e sim pelo desígnio de
prevalecer, se necessário através de uma imposição violenta, sobre
aqueles que não acreditam em tais ideias iluminadas ou se veem
fatalmente afetados pelas consequências da implementação delas na vida
económica, social, cultural e política.
A natureza sacrificial do Iluminismo europeu manifesta-se na forma
como raciocina sem razoabilidade, na forma como apresenta as opções que
rejeita ou os caminhos que não escolhe como prova da inexistência de
outras vias, na forma como justifica resultados catastróficos como danos
colaterais inevitáveis. Estas operações traçam uma linha abissal entre,
por um lado, a luz forte das boas causas e das formas iluminadas de
organização social e, por outro, a escuridão profunda das alternativas
silenciadas e das consequências destruidoras. Historicamente, o
capitalismo, o colonialismo e o patriarcado são as forças principais que
têm sustentado a fronteira abissal entre seres totalmente humanos, que
merecem a vida plena, e criaturas sub-humanas descartáveis.
Essa linha abissal é uma linha epistêmica. Por isso, a justiça social
exige justiça cognitiva e a justiça cognitiva exige que se reconheça
que a querela entre a ciência, por um lado, e a filosofia e a teologia,
por outro, é um conflito que se enquadra confortavelmente no âmbito da
epistemologia iluminista. Aquilo que precisamos de entender é o fato de
estes modos de conhecimento se oporem coletivamente a formas de
pensamento e sabedorias alheias ao paradigma ocidental. O colonial
propriamente dito poderia definir-se em termos dessa terra incógnita
epistemológica. Como observou Locke de forma bem reveladora, “No
princípio o mundo todo era a América”. Longe de representar a superação
universal do “estado de natureza” pela sociedade civil, o que o
Iluminismo fez foi criar o estado de natureza, consignando-lhe amplas
extensões de humanidade e vastos conjuntos de conhecimentos. A
cartografia, enquanto disciplina, inscreveu uma demarcação precisa entre
a metrópole civilizada e as distantes terras selvagens (americanas,
africanas, oceânicas). Esse mundo “natural”, na lógica geo-temporal
lockiana, tornou-se também uma história “natural”. A contemporaneidade e
a simultaneidade dos mundos do Outro colonial tornaram-se uma espécie
de passado dentro do presente.
Para se chegar ao tipo de pensamento pós-abissal capaz de transcender
completamente a oposição binária metropolitano/colonial, é necessário
travar uma batalha que excede parâmetros epistêmicos. Apenas se pode
confrontar o poder hegemônico através das lutas daqueles grupos sociais
que têm sido sistematicamente lesados e privados da possibilidade e do
direito de representar o mundo como seu. Os seus conhecimentos, nascidos
em lutas anticapitalistas, anticoloniais e antipatriarcais, constituem
aquilo a que chamo epistemologias do sul. Tais lutas não se regem por
princípios anti-iluministas (a opção conservadora, de direita), mas
criam condições para que seja possível uma conversação entre diferentes
projetos de Iluminismo, uma ecologia de ideais iluministas.
Os conhecimentos nascidos nas lutas apontam para a razoabilidade
(troca de razões) e não para racionalidade unilateralmente imposta, e
partem das consequências em vez de partirem das causas. A noção de causa
enquanto objeto privilegiado de conhecimento—a ideia de que a nossa
tarefa consiste em ir cada vez mais fundo até se chegar, por fim, às
fundações epistemológicas ou ontológicas, a causa sui ou causa
sem causa—é ela própria um artefato da modernidade ocidental. Para os
oprimidos, uma epistemologia a partir das consequências torna legível a
experiência e possível a justiça. Só assim podem as ruínas converter-se
em sementes.
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