Por enxergar riqueza apenas onde há dinheiro, indicador econômico despreza boa parte das atividades humanas — e subestima em especial as mulheres. Em tempo: não é hora de remunerar a atividade doméstica?
Por Luke Messac | Tradução: Inês Castilho | Imagem: Sebastião Salgado, Ashaninka (Acre), 2016
Lá se vão quase 80 anos desde que os economistas britânicos James
Meade e Richard Stone criaram o método de cálculo da riqueza nacional
que se tornaria o padrão global. Hoje, esse cálculo é chamado de Produto Interno Bruto (PIB).
Seu método pretendia oferecer um retrato amplo e atualizado de uma
economia nacional inteira, estimando o valor monetário de toda a
produção “econômica” ocorrida num dado país em determinado ano. Como a
maioria das estatísticas econômicas da época, Meade e Stone
preocuparam-se quase inteiramente em medir o valor de bens e serviços
que foram comprados e vendidos de fato.
Mas logo surgiu um problema, graças à experiência e às observações de uma mulher de 23 anos chamada Phyllis Deane.
Ela foi contratada por Meade e Stone, em 1941, para aplicar o método
deles em algumas colônias britânicas. Nos territórios hoje pertencentes
aos países Malawi e Zambia, Deane se deu conta de que era um erro
excluir do PIB o trabalho doméstico não-remunerado.
Exponho, num relatório de pesquisa sobre a história
do PIB que publiquei recentemente, como Deane acreditava que essa
convenção excluía uma grande parte da atividade produtiva –
especialmente na África rural. Ela argumentava
que “não tinha lógica” excluir o valor econômico do ato coletar lenha
para o fogo e preparar e cozinhar os alimentos. Alegava que esse tipo de
trabalho havia sido historicamente excluído porque era em geral
considerado como trabalho de mulher.
Para decidir quais atividades incluir em seus cálculos do PIB, Deane dispendeu meses conduzindo nas vilas pesquisas para
medir, e incluir nas estimativas do PIB, atividades pesadas em
particular, como a coleta de lenha. Ela concluiu que, se os governos
quisessem formular políticas que aumentassem a renda nacional agregada e
garantir a distribuição equitativa desse valor agregado, as
contribuições de todos os produtores – incluindo as mulheres rurais –
deveriam ser consideradas nos cálculos.
Nas sete décadas seguintes, os cálculos do PIB não incluiriam o
trabalho não-remunerado (e principalmente feminino) em geral. Mas os
esforços de Deane nos mostram que esse não era o único caminho para
medir a produção econômica. À medida em que os cálculos do PIB começaram
a receber cada vez mais críticas, devemos olhar para sua pesquisa como
um caminho a seguir.
Invisibilidade do trabalho feminino
Richard Stone prestou pouca atenção às recomendações de Deane. Em 1953, ele supervisionou a publicação do primeiro Sistema de Contas Nacionais das
Nações Unidas. Esse relatório oferecia padrões detalhados para o
cálculo do PIB. O sistema ignorava o pedido de Deane para incluir o
trabalho doméstico não-remunerado. E como os programas de assistência
técnica da ONU procuravam assegurar que países de baixa e média renda
seguissem os padrões do sistema, o método de Stone teve consequências
globais. Atividades que eram centrais para a vida cotidiana nos países
africanos de baixa renda – como buscar água, ralar milho e tecer tapetes
– não foram incluídas nas contas nacionais.
Esta invisibilidade do trabalho feminino no cálculo da renda nacional
acabou por provocar uma reação. Ao tentar fazer com o que o trabalho
doméstico das mulheres fosse quantificado economicamente, ativistas
acadêmicas tais como a filósofa de origem italiana Silvia Federici, que
lecionou na Nigéria durante vários anos, argumentavam que a produção
“econômica” masculina seria impossível sem o trabalho “não-econômico”
feito pelas mulheres sem remuneração.
Por exemplo, sem uma esposa para cuidar das crianças e da casa, como
poderia um trabalhador de fábrica ter tempo ou energia para cumprir seu
papel de provedor, conforme manda o estereótipo?
Tempo, ao invés de dinheiro
Algumas economistas feministas tinham uma visão diferente. Em 1999, a economista nascida na Nova Zelândia Marilyn Waring elaborou suas preocupações a respeito da inclusão do trabalho não-remunerado nas contas nacionais. Ao invés de usar a atividade econômica para medir o valor do trabalho, Waring escolheu um novo indicador: o tempo.
Algumas economistas feministas tinham uma visão diferente. Em 1999, a economista nascida na Nova Zelândia Marilyn Waring elaborou suas preocupações a respeito da inclusão do trabalho não-remunerado nas contas nacionais. Ao invés de usar a atividade econômica para medir o valor do trabalho, Waring escolheu um novo indicador: o tempo.
Tempo, ela explicou, era “o único investimento que todos nós precisamos fazer”. Com base numa pesquisa conduzida
na zona rural do Quênia, ela argumentou que as pesquisas com uso do
tempo demonstrariam “qual sexo faz o trabalho invisível, servil,
aborrecido, desvalorizado e não remunerado”.
Essas pesquisas mostrariam que intervenções pontuais, como o acesso a
água limpa e fornos eficientes, poderiam aliviar a faina do trabalho
doméstico e permitir que bilhões de mulheres ganhassem maior liberdade
no emprego do tempo durante seus dias.
Em 2008, os autores do recém-atualizado Sistema de Contas Nacionais
responderam às suas críticas feministas com um meio-termo. Concordaram
em incluir a produção de todos os bens – fossem eles pagos ou não-pagos –
nos cálculos do PIB, de modo que atividades como tecer tapetes ou
fermentar a cerveja seriam consideradas.
Contudo, continuaram a excluir a maioria dos serviços domésticos
não-remunerados, tais como cozinhar e limpar. E o sistema revisado
ignorou os pedidos, tanto de Deane quanto de Waring, pela coleta de mais
dados sobre a distribuição por gênero do uso do tempo. Isso fez com que
novas críticas fossem dirigidas ao sistema.
Em décadas recentes, o trabalho de economistas feministas mostrou
como os métodos de cálculo do PIB tornaram invisível a maior parte do
trabalho das mulheres. Enquanto isso, pesquisas e estudos sobre o uso do
tempo mostram o ônus que isso significou na vida das mulheres,
particularmente no Sul Global. Um relatório
recente revelou que centenas de milhões de mulheres em todo o mundo
precisam andar mais de 30 minutos, na ida e na volta, em busca de água
limpa para suas famílias.
Futuro do PIB
Um relatório de 2009, encomendado pelo então presidente francês Nicolas Sarkozy, afirmou que, porque o PIB é “tratado como uma medida de bem-estar”, ele “pode conduzir a indicadores errados sobre quão bem as pessoas estão, e induzir a decisões políticas erradas”.
Um relatório de 2009, encomendado pelo então presidente francês Nicolas Sarkozy, afirmou que, porque o PIB é “tratado como uma medida de bem-estar”, ele “pode conduzir a indicadores errados sobre quão bem as pessoas estão, e induzir a decisões políticas erradas”.
Mais recentemente, o Banco Mundial ressaltou que
o PIB mede apenas os fluxos de renda, mas não nos diz se a saúde, a
educação e as riquezas naturais estão sendo preservadas ou saqueadas. A
revista Economist pediu uma “nova métrica” de progresso econômico que incluísse “trabalho doméstico não-remunerado como cuidados com a família”.
Nenhum desses insights são novos. Mas eles sinalizam uma
nova avaliação dos índices e políticas econômicas, que acadêmicas
feministas há muito vêm defendendo. Por exemplo, a insistência de Silvia
Federici de que o trabalho doméstico deveria ser pago foi concretizado, pelo menos em parte, nos programas de distribuição de renda na África.
Se de fato queremos tirar das sombras o trabalho das mulheres e
reverter os papeis sexuais estereotipados que relegam a elas mais do que
sua justa parcela de trabalho doméstico, precisamos primeiro tirar as
vendas do sistema de cálculo do PIB.
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