Deportadas dos EUA sem que os pais soubessem, três irmãs salvadorenhas encontram-se presas numa Casa do Migrante na Guatemala. Essa história de horror é apenas uma entre milhares
Por Celio Turino | Imagem: Philemona Williamson
As imagens das crianças filhas de imigrantes nos EUA, arrancadas
de seus pais e enjauladas pelo governo, estão chocando o mundo. Mas as
histórias que relato em meu livro mais recente, Cultura a unir os povos – a arte do encontro,
são de uma perversidade civilizatória ainda pior. Em minhas viagens
pela América Latina, deparei com várias histórias de horror. De todas as
que contei, a que vi na Guatemala foi das que mais me tocou. Ela trata
da expulsão de crianças apátridas, sem que os pais sequer possam saber
para onde foram levadas. Isso acontece há anos, desde antes do governo
Trump, e com milhares de crianças.
“Beatriz Sandoval e Ronald Carrillo formam um casal e, juntos, dirigem a Escola Frida Kahlo para ninõs y niñas pintores,
na Cidade da Guatemala; conheceram-se na faculdade de Belas Artes e, ao
se formarem, ela foi trabalhar como professora em um colégio
tradicional e ele como cenógrafo no Teatro Nacional. Com o tempo
perceberam que não era isso que desejavam para suas vidas e deixaram os
empregos, passando a trabalhar com a capacidade curativa da arte.
“Para além da Escola de Artes, ‘começaram a meter o nariz nas Casas
dos Migrantes’. Estas Casas foram formadas para receber
centro-americanos, de nacionalidades diversas, deportados dos EUA. Por
acordo com os Estados Unidos, a Guatemala recebe deportados em guarda
provisória, mesmo que não tenham nascido no país, em um mecanismo
jurídico bastante questionável, que deixa as pessoas em um limbo de
nacionalidade. Em uma destas casas o casal encontra três irmãs, uma com
nove, outra com oito e a menor, com seis anos de idade, nascidas nos
EUA, mas filhas de salvadorenhos não documentados, que seguem sem
nacionalidade alguma. As irmãs foram capturadas quando estavam sozinhas,
perambulando na rua, entre travessuras e brincadeiras de crianças, como
tantos bilhões de crianças já o fizeram e o fazem. Por estarem
desacompanhadas, e os pais estarem legalmente impedidos de resgatá-las,
foram deportadas, e há meses vivem em uma destas Casas de Migrantes. Uma
casa acanhada, sem quintal ou espaço de brincar, em que até as janelas
são trancadas por grades e as meninas, impedidas de sair. Beatriz e
Ronald conseguiram dar aulas de pintura no local. E, um dia, o tema
escolhido foi: ‘Nuvens’.
Mas que nuvens? Como vê-las?
“No dia triste o meu coração mais triste que o dia…
No dia triste, todos os dias…
No dia tão triste…”
(Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, poema Nuvens)
No dia triste, todos os dias…
No dia tão triste…”
(Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, poema Nuvens)
“Para visualizar as nuvens, as cabecinhas tinham que atravessar as
grades da janela. Aquelas irmãs buscavam mirar os céus, encontrando, ao
menos, a imagem de uma pequena nuvem e suas formas variadas, para depois
recriá-las em papel. Um pequeno exercício, tão simples e tão custoso
àquelas meninas prisioneiras em lugar algum, pelo crime de nascerem em
país algum. Como momento de humanidade, empatia e afeto, o olhar para as
nuvens, o pintar as nuvens. Como únicos amigos daquelas meninas, o
casal de artistas e as nuvens de algodão.
“Há uma força que move o casal. Mesmo em condições tão difíceis e
torturantes, em que sequer conseguem permissão para levarem crianças a
brincar em um quintal, ou deitar na grama em busca de inspiração,
Beatriz e Ronald vão inventando suas formas de arte, suas temáticas.
Lançam gritos desesperados, mas sempre levando junto o sorriso. Inventam
temas. Um dia aula de pintura sobre melancias, cores, milhos, árvores.
Há vezes em que convidam amigos especialistas a falarem sobre
determinado tema, o milho, o maiz ancestral, daí falam sobre
transgênicos; também contam com a ajuda de amigos psicólogos. Os sonhos
deles são muitos. Gostariam de receber as crianças em seu Ponto de
Cultura, com uma sede maior, quem sabe podendo contar com autorização
para levarem as crianças das Casas de Migrantes. Também planejam pintar
cada uma das Casas de Migrantes, por dentro e por fora, enche-las de cor
e de vida. Sonhos delicados e possíveis, mas ainda assim, bloqueados.
“Beatriz também tem um sonho que a persegue desde há muito: quer
oferecer algo mais às crianças maltratadas e violadas e quer que a
pintura as ajude a encontrar ordem em vidas com tantas instabilidades e
desordens. Deseja realizar este sonho oferecendo um Mariposário,
um Borboletário, às meninas. Uma ideia simples e por isso genial. Cada
menina receberia uma borboleta-monarca e uma planta cujas folhas
pudessem servir de alimento para que o ovo, depois larva, se
transformasse em pupa. Nesta terapia viva, as meninas acompanhariam a
lagarta transformando-se em casulo e depois borboleta, em ciclo de
regeneração, vida e beleza, tal qual deve ser a vida de todos os seres,
tal qual deve ser a vida daquelas meninas-borboletas. Enquanto sonha, as
três irmãs esticam os pescoços e olham para o céu entre as grades,
buscando visualizar nuvens para que possam pintá-las. Entre as grades,
sozinhas, as meninas estão lá, presas e deportadas em uma Casa do
Migrante, em algum lugar da América Central. E o mundo não diz nada.”
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