Empresa repete erros que provocaram tragédia de Mariana a um custo humano e ambiental altíssimo
“Todas as barragens da Vale estão em risco e podem se romper a qualquer momento. A empresa não quer gastar o dinheiro necessário para recuperar o meio ambiente”.
A afirmação é de um dos mais solicitados engenheiros ambientais do
Brasil e que já prestou, por um longo período, consultoria à Vale. Por
questões óbvias, ele não quer se identificar. Não é preciso, porém, ser
perito para acreditar na veracidade desse testemunho. A repetição da tragédia demonstra que a empresa é, no mínimo, negligente.
O maior desastre ambiental na área de mineração do mundo aconteceu no município de Mariana, Minas Gerais, em 5 de novembro de 2015. Os responsáveis foram a empresa Samarco,controlada
pela Vale, em sociedade com a anglo-australiana BHP Billiton. A
barragem que se rompeu provocou uma enxurrada de lama tóxica, que dizimou o distrito de Bento Rodrigues e deixou19 mortos,
além de devastar a bacia hidrográfica do Rio Doce, matar a vida
aquática e acabar com o turismo e subsistência de milhares de pessoas.
A Vale conseguiu a façanha de destruir um rio, que nem a mineração na
região, onde está localizada Ouro Preto, foi capaz ao longo de 300 anos
de exploração do ouro. Pouco mais de três anos após o incidente, a Vale
volta a matar. Repetiu o mesmo erro em outra barragem, em Brumadinho, Minas Gerais.
Desta vez, porém, o número de vidas sacrificadas foi muito maior. Nas
primeiras 24 horas foram confirmadas 34 mortes e centenas de pessoas
desaparecidas.
Após a tragédia de Mariana, a Vale apoiou a criação da Fundação
Renova, que se demonstrou pouco eficaz. As vítimas, que perderam suas
moradias e familiares dos mortos, não foram totalmente indenizadas. A lama tóxica
(embora a empresa negue) continua no mesmo lugar e o Rio Doce continua
praticamente morto. Uma das líderes das comunidades ribeirinhas, Maria
Auxiliadora de Fátima, diz que foi preciso lutar muito para conseguir
alguma reparação. “Se não tivéssemos batalhado, não receberíamos nada”.
Ninguém foi preso e punido como deveria.
Em qualquer país sério agentes públicos responsáveis e os executivos
da empresa estariam presos. No mínimo a companhia já deveria ter pago
multas bilionárias, o que não ocorreu. Aqui os envolvidos posam como se
uma tragédia anterior não tivesse ocorrido. Dão entrevistas como se eles
fossem também as vítimas do acidente. Ao invés de buscar soluções
reais, a Vale aproveitou da tragédia para lucrar. Usou a Renova para
ganhar tempo com as autoridades, recusando-se a cumprir o acordo fechado
com o Ministério Público Estadual e levando a disputa para o lento
caminho judicial.
O objetivo era deixar as ações da Samarco despencarem de valor para
comprar a parte da sócia. Ironicamente, apesar do desastre ter
acontecido aqui no Brasil, a BHP Billiton está sofrendo consequências da
duras leis ambientais em seus países de origem, Reino Unido e Austrália. Com a Vale, porém, não foi o que aconteceu. Em matéria assinada por José Casado, veiculada em O Globo,
o jornalista informa que a Vale concluiu a compra da parte da sócia
estrangeira, mas as empresas não confirmaram o negócio. A Samarco
continua fechada, o que facilita para a Vale não pagar indenizações e
valorizar sua produção em Carajás.
Impunidade
A tragédia em Brumadinho é resultado, em primeiro lugar, da
impunidade do desastre de Mariana. E também de anos de um Estado
ausente, incompetente e corrupto. A começar pelo Governo Federal,
dominado pela corrupção sistêmica nos últimos anos do PT e MDB. Há de se
ressaltar que o defeito da Vale começou lá atrás na privatização
malfeita durante o governo de Fernando Henrique Cardoso,
entregue praticamente de graça à iniciativa privada, mas ainda com
grande participação do Estado, que não assume as suas responsabilidades
perante os desastres.
Ainda é resultado da falência de Minas Gerais pelos governos do PSDB (Aécio Neves
e Antônio Anastasia) e do PT (Fernando Pimentel).Tanto que um
empresário desconhecido acabou se elegendo governador, Romeu Zema. No
primeiro momento, pelo menos Zema e Jair Bolsonaro
agiram rápido na tragédia em Brumadinho, 25 de janeiro de 2019. O
presidente fez uma declaração pública na TV, criou um gabinete de crise,
e visitou de helicóptero a região no dia seguinte ao acidente. Ao
contrário de Dilma Rousseff que apenas se pronunciou pelo Twitter e,
após críticas, somente uma semana depois fez um sobrevoo na região.
Sob o governo de Michel Temer, que tinha como ministro do Meio
Ambiente Sarney Filho, a Vale continuou protegida, apesar do primoroso
relatório do Comitê Interfederativo, criado para tratar da reparação da
tragédia, que estipulava severas punições e ações eficazes, mas que não
foram executadas. Esta será a primeira oportunidade de Bolsonaro e Zema
provarem que são diferentes dos governos anteriores, que falharam
vergonhosamente. Está no alcance deles providências como acionar as
instituições de todos os poderes para obrigar a Vale e os responsáveis a
responderem pelo crime, pagar o que devem e restaurarem o meio
ambiente. O governo federal pode também intervir na empresa porque
possui ações com poder de decisão.
Está claro que não foi promovida manutenção adequada pela Vale nas
barragens rompidas. Aliás, o tipo de barragem escolhida pela empresa é a
mais barata e perigosa, porque é apenas um aterro de terra que cede com
o tempo. É assustador lembrar que só em Minas existem mais de 500
barragens. Segundo o engenheiro ambiental ouvido por este colunista, há
soluções seguras e que não armazenam a lama tóxica, a água é tratada
antes de voltar ao meio ambiente. É possível a exploração do minério com
baixo impacto ambiental, mas isso requer tecnologia e custos.
Para limpar e manter todo o Rio Doce limpo, com água potável e a
volta dos peixes, o presidente da Vale tem na mesa o orçamento de um
projeto de 3 bilhões de reais, com respaldo técnico do CIF, mas que a
empresa não quer assumir. Não só o Executivo, mas o legislativo e a
Justiça também são cúmplices. Não se viu um parlamentar, da esquerda à
direita, fazer um discurso mais duro e tomar uma medida eficaz contra a
Vale.Todas as iniciativas para aprovar leis que impõem obrigações,
melhoram a segurança e aumentam a punição não avançaram.Talvez porque
muitos políticos recebam fortunas das mineradoras para suas campanhas
eleitorais.
Agora é a oportunidade para os novos parlamentares mostrarem serviço e
fazerem alguma coisa.O Estado do Espírito Santo, onde está a sede da
Samarco, também lavou as mãos. O Secretário de Meio Ambiente disse que é
um problema de Minas Gerais, apesar do Rio Doce atravessar o
Estado.Parte da imprensa, principalmente a de Minas, também tem a sua
parcela de culpa, ao se curvar às verbas publicitárias da Vale, e não
revelar a verdade nua e crua. Em Minas os principais órgãos de
comunicação de Belo Horizonte são de propriedade de políticos e
empresários que atuam no setor. Diante dessa cumplicidade toda, o Rio
Doce permanece contaminado, as vítimas continuam reclamando nos
tribunais seus direitos, e a flora e fauna seguem agonizando.
De que adianta o Brasil ter assinado o Acordo de Paris, ter uma das
melhores leis ambientais do mundo, se na prática não funciona a
contento? A água doce é considerada o petróleo do Século XXI porque é
essencial à vida e está desaparecendo do Planeta. Apenas 2,5%das águas
da Terra são potáveis, e a maior quantidade (12%) está no Brasil, onde
os rios estão secando em sequência. As maiores ameaças são as
mineradoras, assassinas de rios e vidas. Algo precisa ser feito
urgentemente antes que seja tarde. Bem que o grande poeta Carlos
Drummond de Andrade, que nasceu em Itabira, Minas Gerais, (onde começou a
Vale do Rio Doce, que ironicamente antes de matar o rio tirou o “Rio
Doce” do nome) nos avisou décadas atrás: O Rio? É Doce; A Vale? Amarga.
Francisco Câmpera, jornalista nascido em Minas Gerais, comentarista nas Rádios Tupi Rio e Super Rádio em São Paulo.