Em
cinema e teatro fala-se muito de atores que, de tão concentrados no
personagem, não conseguem mais sair do papel. Uma análise semiótica da
nova identidade visual do Governo Federal revela que nada mais resta
para o presidente Jair Bolsonaro do que se manter no personagem da
campanha eleitoral – belicoso e provocativo, pronto para criar sempre um
novo inimigo. Para além do ufanismo e da nostalgia idealizada dos
governos militares, a nova logomarca revela muito mais uma estratégia de
comunicação do que de propaganda clássica – simbolização ou doutrinação
ideológica. A marca visual expressa a atual estratégia visual da
chamada alt-right (“direita alternativa”): polarização, provocação e
apropriação. Assim como a bandeira nacional e a camisa amarela da CBF,
agora o último verso do hino nacional foi apropriado. Do simbolismo
original da Pátria como “mãe gentil”, foi ressignificado como ícone de
polarização: a divisão entre patriotas e antipatriotas.
Em postagem anterior, quando esse Cinegnose analisou
anomalias semióticas no lançamento da logomarca do então “novo” Governo
Temer, observávamos que a marca visual revelava atos falhos:
verdadeiras intenções por trás de uma propaganda política que pretendia
expressar progresso, avanço e retomada do desenvolvimento econômico – clique aqui.
Os “atos
falhos” da comunicação visual criada pelo marqueteiro Elsinho Mouco
revelavam diversos retrocessos: o desaparecimento da cor verde -
predomínio do azul, masculino, e o contraste com o branco, conotando
“inteligência”, “racionalidade”, “concentração”, contrastando com a
“emotividade”, segundo a Psicologia das Cores; e o estilo geométrico com
um sólido geométrico levitando sobre letras com superfície em extrusão –
alusão direta ao estilo retro-futurista da velha marca da Globo dos
tempos de Hans Donner, que a própria emissora abandonou.
Enfim, uma
marca que nascia velha. Tentava esconder os retrocessos, mas revelava
involuntariamente o contrário. Digamos que a logomarca do Governo Temer
era um caso exemplar de ideologia como falsa consciência.
Muito
diferente é a nova logomarca do Governo Jair Bolsonaro: não há “atos
falhos” ou qualquer exercício de retórica visual para tentar esconder
intenções. A comunicação é direta e sem floreios: replica a polarização
que a velha propaganda da ditadura militar nos anos 1970 criou no tom de
“Brasil, ame-o ou deixe-o”.
Se ainda no
tom retro-futurista de Temer ainda tinha uma intenção (frustrada)
teleológica ao simbolizar progresso ou ansiar por algum tipo de futuro,
nessa logomarca de 2019 é nostálgico e explícito: meia volta e volver
aos tempos das ditaduras militares.
Retorna a
velha dominante verde e amarela recorrente de todas as marcas de
governos anteriores, mas dessa vez com uma sugestão de movimento e
narrativa: a associação da bandeira do Brasil como um sol nascente sobre
as terras verdes brasileiras.
Mas, muito
mais do que isso: a marca visual do governo do capitão da reserva
comprova a linha de continuidade entre a campanha eleitoral e o
dia-a-dia do Governo – diferente das logomarcas anteriores que
simbolicamente demarcaram o início dos trabalhos do Poder Executivo, a
marca atual revela que a retórica alt-right da campanha de 2018 continuará como tática cotidiana dos próximos anos.
Afinal,
esse é o único discurso possível de Bolsonaro, já que ele próprio admite
que nada entende sobre economia ou qualquer outro tema das pastas
ministeriais.
Primeira leitura: o ufanismo
O olhar
inicial da marca visual denota o claro tom ufanista. O vídeo no qual a
nova marca foi divulgada (claro, na Internet...) diz que o povo
brasileiro foi às urnas para “escolher” e “resgatar um novo País”. "Em
2018, não fomos às urnas apenas para escolher um novo presidente. Fomos
às urnas para escolher um novo Brasil, sem corrupção, sem impunidade,
sem doutrinação nas escolas e sem a erotização de nossas crianças. Fomos
às urnas para resgatar o Brasil", diz o vídeo divulgado pelos perfis
das redes sociais do presidente.
Se desde
Collor de Mello (o primeiro presidente eleito após a redemocratização do
País), as marcas sempre tiveram um tom executivo ou programático
(“trabalhando em todo o Brasil”, FHC; “Governo do Brasil”, Collor;
“Pátria Educadora”, “País de Todos”, “País Rico é País sem Pobreza”,
governos petistas), dessa vez o ufanismo da propaganda política clássica
domina esse primeiro nível de leitura semiótica.
Nesse primeiro nível de leitura, tudo parece ser uma clássica
propaganda política apelando para Nacionalismo, Pátria, Nação etc. Mas a
narrativa sugerida pela imagem estilizada (o Sol que nasce sobre terra
verdes) vai mais além: do tom ufanista para o messianismo.
Segunda leitura: retorica visual e narrativa
Se no
primeiro nível descobrimos que há uma narrativa messiânica para além do
ufanismo, no segundo nível descobrimos que há uma retórica que satura
essa narrativa: a bandeira nacional estilizada como o Sol que nasce
ocupa grande parte do espaço visual. A bandeira nacional chega a ser o
próprio céu, sobre o solo verde que ocupa o menor espaço.
Portanto,
está acima do nível dos olhos, criando o efeito contra-plongée – isto é,
a bandeira vista de baixo para cima. A criação da mitologia da
superioridade, idealismo, ou seja, a princípio o velho macete da
propaganda política nazi ou de contra-propaganda norte-americana na
Segunda Guerra Mundial que até hoje está presente nos pôsteres
promocionais de filmes românticos ou de aventura hollywoodianos.
O discurso
do vídeo promocional fala em “resgate” de um País, mas a marca visual
expressa algo muito diferente: messianismo – sistema ideológico que
prega a ideia de salvação através da entronização de um indivíduo, um
grupo ou uma ideia.
Nessa
retórica visual é marcante o uso do degradê. Se na logomarca do Governo
Temer o degradê era utilizado para conferir volume à extrusão e sólido
geométrico, aqui no “Pátria Amada Brasil” é para marcar essa ideia de
alvorada ou amanhecer de algo que vai dominar o céu e a maior parte do
espaço da área gráfica: a bandeira nacional.
Assim como
na logomarca do Governo Temer, nesse de 2019 há igualmente um tom retrô
ou nostálgico – revivem estéticas de outras épocas. No caso da marca de
Temer, o retrô-futurismo da estética Hans Donner das computações
gráficas que conferiam modernidade não só à Globo como à própria
Ditadura Militar do discurso do “Brasil Grande” e do milagre econômico
para uma nova classe média que surgia nos anos 1970.
Porém, no
logo do Governo Bolsonaro há uma nostalgia ainda mais idealizada, sem o
futurismo da estética Global que apoiou os governos militares. Apenas a
bandeira nacional como valor eterno, estático. Sem o futurismo da
estética da TV Globo que pretendia conferir o simbolismo de avanço,
progresso e futuro aos governos dos generais.
Se a propaganda da Ditadura dos anos 1970 procurava expressar
valores de movimento, avanço ou progresso em slogans como “esse é um
País que vai prá frente”, “Brasil Grande” ou “Ninguém segura mais esse
País”, com Bolsonaro tudo é estático, idealizado – a nostalgia
bolsonária do que supostamente teria sido o Regime Militar: um movimento
de defesa dos valores eternos da Família, Deus, Religião e Pátria.
Terceira leitura: apropriação e iconificação
Isso nos
conduz ao terceiro nível de leitura: a função pragmática da logomarca
não tanto como instrumento de propaganda, mas de estratégia de
comunicação dentro do atual estilo chamado alt-right (“direita alternativa”): polarização, provocação e apropriação.
Primeiro, a
logomarca do governo Bolsonaro é uma provocação dentro de um discurso
que deve ser continuamente beligerante, sempre em guerra contra algum
tipo de inimigo – os esquerdistas, os mimimis, antinacionalistas,
globalistas, antipatriotas etc. “Pátria Amada Brasil” equivale a
“Brasil, Ame-o ou Deixe-o” – o Governo não é “para todos”, é para
“Patriotas”.
Segundo, a nova identidade visual é mais um exemplo da eficiente prática semiótica alt-right de apropriação ou ressignificação de símbolos, transformando-os em ícones para rápida disseminação ou massificação.
A
tática de guerra de comunicação da direita não deixa de lado essa
perfeita bomba semiótica da iconificação. O que comprova a continuidade
da estratégia de campanha eleitoral no dia-a-dia do atual governo. Assim
como Trump nos EUA: defendendo até as últimas consequências a
construção do muro na fronteira com o México e aparecendo nas câmeras
usando um boné com o lema de campanha: “Make America Great Again”...
A
direita já havia se apropriado de dois símbolos: a bandeira nacional (o
verde simbolizando nossas matas, o amarelo as nossas riquezas etc.) e a
camiseta da seleção brasileira (o simbolismo da “pátria de chuteiras”)
para se transformarem em ícones perfeitos: adereços em manifestações
para exposição repetitiva nas ruas e TV.
Agora temos
a apropriação do simbolismo do trecho final do Hino Nacional no qual a
Pátria é representada como “mãe gentil” dos filhos (os brasileiros).
Apropriado
pelo logo, agora a “Pátria Amada” é figurada como uma bandeira que nasce
no horizonte para encobrir todo o céu, converte-se em ícone de
polarização: os Patriotas contra os antipatriotas – o ícone liquida o
simbolismo do acolhimento para ressignificá-lo como marca de distinção
maniqueísta.
Procurando
uma síntese: o logo do Governo Bolsonaro é antes uma estratégia de
comunicação do que propaganda. Tanto no discurso verbal como na retórica
visual não há propriamente uma doutrinação ideológica no sentido da
propaganda política clássica. Muito embora se utilize da retórica visual
da criação da mitologia da superioridade e idealismo, como vimos no
segundo nível de leitura semiótica.
O conteúdo
simbólico e ideológico do campo simbólico (a bandeira, o hino nacional
etc.) é um mero pretexto para ser apropriado como ícone, ao qual é
inserido um novo significado contextual, de estratégia de combate:
provocar, polarizar, distinguir, assim como os uniformes militares
distinguem o lado dos oponentes.
Com a nova
marca visual do Governo Federal comprova-se que Bolsonaro ainda continua
em campanha eleitoral agressiva e belicosa, porque fora dela seu
personagem não existe.
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