Para surpresa de muitos, o militar aposentado conseguiu transformar seus delírios em realidade
Em um país tropical, cujo nome não quero lembrar, vivia um militar aposentado que defendia a ditadura
e que acreditava que o grande erro daquele regime foi não ter matado
mais vermelhos. Esse militar, em seus momentos de ócio, se dedicava a
fazer campanhas políticas e até chegou a ser deputado. Em quase três
décadas no Congresso, aprovou apenas duas leis de sua autoria. Sua
grande contribuição, em suas próprias palavras, foi impedir que certos
projetos fossem aprovados. Por causa desses projetos, passava noites em
claro. “As minorias têm que se curvar às maiorias”, disse em certa ocasião. A luta contra a expansão dos direitos de mulheres, homossexuais, negros e indígenas
o consumia por completo. E assim, dormindo pouco e lutando muito, seu
cérebro secou de tal maneira que perdeu o juízo. De fato, terminada sua
sanidade, um estranho pensamento se instalou em sua mente: tornar-se
presidente e sair pelo país com suas armas defendendo os direitos dos
homens brancos e ricos. Para alcançar seu nobre objetivo, estava
disposto a enfrentar o maior dos perigos, a esquerda radical.
Como foi paraquedista, decidiu se lançar no vazio das redes sociais e enchê-las com incríveis malfeitos
Como foi paraquedista em seu tempo no Exército,
decidiu se lançar no vazio das redes sociais e enchê-las com os
incríveis malfeitos cometidos por seu recalcitrante inimigo. Onde quer
que fosse, advertia sobre o perigo da esquerda, que pretendia instaurar
uma ditadura gay no país. Se os seus adversários chegassem ao poder,
legalizariam a pedofilia, os bicos das mamadeiras teriam a forma de
pênis e, nas escolas, as crianças heterossexuais se tornariam
homossexuais por causa de um material didático apelidado de kit gay pelo militar.
Outra de suas grandes preocupações era evitar o avanço do feminismo,
uma ideologia que levaria o país inexoravelmente ao apocalipse. O
feminismo era capaz de transformar mulheres em monstros peludos cheios
de ódio contra o gênero masculino. O objetivo desses monstros era
instaurar uma ditadura feminista que, junto com a ditadura gay,
perseguiria sem descanso os pobres homens heterossexuais.
Os ativistas que defendem os direitos humanos
e a natureza também representavam um risco. Eram um claro obstáculo ao
desenvolvimento da nação. “Hoje em dia é muito difícil ser patrão”,
defendeu o ex-paraquedista não faz muito tempo. Para ele, os donos das
grandes empresas e os latifundiários eram as verdadeiras vítimas
esquecidas pelas ONGs. Oprimidos pelos direitos de seus trabalhadores ou
pelas leis de preservação da natureza, os patrões são uma espécie
indefesa que deve ser protegida. No dicionário de seus seguidores, a
palavra “ativista” significava delinquente e “direitos humanos” era
pouco mais que um palavrão.
Além de denunciar as terríveis injustiças que seriam perpetradas pela
esquerda radical, o militar aposentado oferecia a solução para o grave
problema da insegurança no país tropical. “Bandido bom é bandido morto”,
gritavam seus acólitos. Seu plano inovador para melhorar a segurança era armar a população. Combater a violência com mais violência. Como ninguém tinha pensado nisso antes?
As armas foram, sem dúvida, o grande símbolo de sua cruzada pelo
país. Em suas mãos, qualquer objeto se tornou uma alusão a elas. Na
falta de um objeto, seus próprios dedos imitavam pistolas e revólveres. O
ex-militar fez o gesto de disparar em inúmeras ocasiões, tanto que
ninguém se lembrava mais de que tinha 10 dedos. Aqueles que o viram
garantiam que ele só tinha dois dedos em cada mão: o indicador e o
polegar, ambos manchados de pólvora.
Apesar de se apresentar como um herói à maneira de Chuck Norris,
o ex-paraquedista não pôde esconder sua maior fraqueza: o medo do
debate. Toda vez que enfrentou um adversário, perdeu seguidores. Os
adversários o crivavam com argumentos, disparavam-lhe ideias e o
acabavam com dados. Ele estava, pela primeira vez, desarmado e indefeso,
perdido no meio de um tiroteio dialético. Portanto, como bom militar,
optou por outra estratégia. Quando falava, preferia fazê-lo sozinho, em
um discurso; ou de maneira acordada, com um interlocutor amigável.
Adorava frases de efeito, geralmente vazias de conteúdo. O discurso de
ódio se tornou seu melhor aliado e tirou milhares de intolerantes do
armário. Para seus fãs, o desprezo pelas minorias era sinceridade, os
ataques à liberdade de expressão eram puro senso comum e a defesa da
repressão policial era pragmatismo. Para justificar o discurso de ódio, o
carrasco se faz passar por vítima, o perseguidor diz que está sendo
perseguido e o covarde se disfarça de herói.
Para surpresa de muitos, o militar aposentado conseguiu transformar
seu delírio em realidade e no primeiro dia do novo ano tomou posse como
presidente do país tropical. Para os narradores que descrevem suas
façanhas é quase impossível explicar como o ex-paraquedista conseguiu
convencer uma grande parte da população de que os moinhos de vento eram,
na verdade, gigantes.
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