Até aqui
a grande mídia passa batida para “o déjà vu” dos protestos dos “coletes
amarelos” na França: em 2013 as chamadas “Jornadas de Junho” no Brasil
foram narradas da mesma maneira como hoje noticiam os protestos
franceses – “espontâneos”, “apartidários” e que “começam de forma
pacífica, mas que acabam tendo atos de vandalismo...”. Também como em
2013, surgem analistas que veem “o novo” na Política ou “quebra do
monopólio da narrativa midiática”. Aqui no Brasil vimos no que deram as
Revoluções Populares Híbridas. Na Europa estão sincronicamente
conectadas com o tour de Steve Bannon (ex-assessor da campanha de Trump)
pelo continente para unificar a direita num “movimento internacional de
nacionalistas”. Os “coletes amarelos” são icônicos e as câmeras os
amam, saturando de significados suas fotografias e vídeos. A revolução
não será televisionada: a mídia não está relatando o que as pessoas
fazem; relatam apenas o que as pessoas fazem para obter a atenção da
mídia para o Capitalismo dar um novo salto – o populismo de direita.
“O protesto
dos coletes amarelos, que surgiu de maneira espontânea nas redes
sociais contra o alto preço dos combustíveis, começou de forma pacífica,
mas acabou tendo atos de vandalismo e violência...”. Variações dessa
frase estão presentes em matérias jornalísticas na TV, portais da
Internet e jornais, nos relatos sobre as manifestações dos “coletes
amarelos” na França - movimento de protesto contra o imposto sobre o
combustível, taxa ecológica defendida pelo presidente francês Emmanuel
Macron.
Caro
leitor, esse excerto narrativo, recorrente na grande mídia ao noticiar a
atual onda de protestos na França, não lembra nada? Será que o leitor
não tem uma estranha sensação de déjà vu diante das fotos dos chamados coletes amarelos, em poses black bloc, mascarados e desafiadores?
São imagens
e relatos noticiosos que imediatamente nos fazem lembrar as “jornadas
de junho” de 2013 no Brasil. Claro, o cenário é bem diferente: das ruas e
avenidas brasileiras para as emblemáticas ruas de Paris.
“Flash mobs” ou Guerra Híbrida?
Um movimento com marca icônica (“coletes amarelos”), surgido de forma “espontânea”, convocado nas redes sociais como fosse flash mobs,
supostamente apartidário, pacífico. Mas que, repentinamente, saltam não
se sabe de onde black blocs (dessa vez com o doce sabor retro dos
protestos estudantis de maio de 1968 na França) que quebram, picham,
incendeiam, apanham da polícia e fazem poses desafiadoras para a
primeira câmera (celulares não valem!) de um cinegrafista de grande
mídia mais próximo.
Brasil, 2013; França, 2018 - o mesmo script midiático |
Os
protestos que explodem nesse momento na França têm todos os elementos
daquilo que é denominado Revolução Popular Híbrida (RPH), parte da
estratégia da Guerra Híbrida tal como definida pelo pesquisador Andre
Korybko, Conselheiro do Institute for Strategic Studies e jornalista da
Sputnik News:
As Guerras Híbridas são conflitos identitários provocados por agentes externos, que exploram diferenças históricas, étnicas, religiosas, socioeconômicas e geográficas em países de importância geopolítica por meio da transição gradual das revoluções coloridas para a guerra não convencional, a fim de desestabilizar, controlar ou influenciar projetos de infraestrutura multipolares por meio de enfraquecimento do regime, troca do regime ou reorganização do regime ( “Agentes externos provocaram uma guerra híbrida no Brasil, diz escritor”, Brasil de Fato, clique aqui).
Para ele, a
dinâmica das RPH é provocar um “caos administrado” para criar grandes
movimentos de protesto que podem então ser cooptados e dirigidos para
determinados fins políticos.
Até aqui,
de um lado a grande mídia e, do outro, a mídia alternativa, não
conseguiram ou não se interessaram em entender como os “coletes
amarelos” se articulam com a geopolítica do Departamento de Estado
norte-americano. Inclusive, muitas análises mais apressadas começam a
incorrer nas mesmas avaliações ingênuas idênticas a que cercaram as
“jornadas de Junho no Brasil: uma “rebelião peculiar”, “movimento
espontâneo”, “rebelião contra Macron que favorece apenas os mais ricos” e
assim por diante sempre dentro do raciocínio maniqueísta – a luta do
Bem contra o Mal.
Assim como
em 2013, começam as avaliações apressadas de que se trata da
“insatisfação da população periférica” cujos partidos, sindicatos ou
canais institucionais ou de representação política não conseguiriam dar
expressão. E toca a se insinuar que há por trás de tudo o chamado “novo”
na Política.
A verdade é
que em todas essas manifestações há um, por assim dizer, doce sabor de
“anarco-capitalismo”: movimentos “espontâneos”, sem lideranças da
carcomida Política e sindicatos, sempre contra impostos e o Estado que
insiste em incomodar a liberdades das ambições individuais.
E a grande mídia parece estar à espera desses protestos, sempre com um script pronto.
Protestos iconoclatas
Olhando o
conjunto dos vídeos e fotografias dos protestos franceses, é inegável
que em todas elas há um quê de fotogenia e telegenia – parecem
escolhidas à dedo, saturadas de significados (o black bloc cuja máscara é
própria a bandeira francesa, o manifestante parado solitário em frente
ao Arco do Triunfo pichado, mulheres se abraçando desesperadas – uma
delas com uma pequena bandeira nacional tapando a boca – diante do
avanço da polícia de choque etc.), a impressão de violência coreografada
lembrando as investidas da gangue de Alex no filme Laranja Mecânica,
poses desafiadoras de manifestantes tendo ao fundo chamas e grossos
rolos de fumaça negra e muitos personagens em contra luz, perfis humanos
colocado em frente a incêndios.
Como
sempre, toda RPH tem que ser icônica: Revolução Verde (Irã), Revolução
Laranja (Ucrânia), Primavera Árabe (Egito, Tunísia, Síria, Líbia),
Umbrella Revolution (Hong Kong). E, claro, transformar-se em verbetes da
Wikipedia: “Yellow Vests Movement” ou “Gilets Jaune Protests”, “O
Movimento dos Coletes Amarelos” etc. Uma autêntica e profissional
estratégia de branding.
E ainda
análises, como a da socióloga Angelina Peralva, veem nesses movimentos
um fenômeno de “quebra do monopólio da mídia institucional sobre as
narrativas políticas...” (clique aqui).
Pelo contrário: certamente a revolução jamais será televisionada! Uma
verdadeira revolução não é fotogênica ou telegênica – será irruptiva o
suficiente para câmeras e cinegrafistas fugirem sob as ordens de uma
grande mídia em pânico.
Muito além dos ícones
É
sincrônico que Steve Bannon, ex-assessor da campanha vitoriosa do
presidente Trump e atual líder de um projeto para “unificar a direita”
em toda Europa, estivesse na França no primeiro semestre, quando foi o
astro da abertura do congresso do partido francês de direita Frente
Nacional. Lá, Bannon defendeu um “movimento internacional de
nacionalistas” e descreveu o “Estado-Nação como uma joia que deve ser
polida, desejada e cuidada”. E completou: “estamos cheios de
globalistas!”.
Steve Bannon em campanha européia pela unificação da direita anti-globalista |
Por que
voltar-se contra Macron? Afinal, ele não é o queridinho dos defensores
da mão de ferro das medidas neoliberais do “Estado Mínimo”? E muito
menos pretende, como ousaram os governos petistas no Brasil, projetos de
infraestrutura multipolares, desafiando o eixo Norte/Sul e a
geopolítica (petrolífera e financeira) norte-americana com os BRICS.
O problema é
que desde a falência em 2008 do banco de investimentos Lehman Brothers
que desencadeou a maior crise do capitalismo desde 1929 numa reação em
cadeia que fez a Zona do Euro derreter, o pacto liberal social-democrata
(que até incorporou a esquerda) começou a ruir, principalmente na
Europa Ocidental.
Depois de
três décadas de destruição do Estado Social e de todos os mecanismos que
garantiam a possibilidade de ascensão social, destruição sistemática
dos direitos sociais, das garantias em Saúde e Educação (tudo em nome de
supostos direitos individuais do livre mercado, competição e
empreendedorismo), o que restou foi um rastro de isolamento das pessoas,
demonização da política e de instituições - como sindicatos e partidos
que davam voz a muitos setores da sociedade.
O novo
populismo de direita, representado pela vitória de Trump nos EUA e a
cruzada anti-globalista e nacionalista de Steve Bannon posam de
anti-stablishment ao querer representar essa frustração generalizada dos
excluídos da globalização - as camadas pobres e médias da população.
Agora, mais
"coletes amarelos se espalham pela Europa: Suécia, Bélgica, Holanda,
Alemanha. Com pautas de extrema-direita como, por exemplo, protestos
contra o acordo de migração anunciado pela ONU - clique aqui.
Mas essa
aparência antissistêmica é apenas uma simulação, estratégia dissuasiva
para o capitalismo em crise dar um novo salto: depois de décadas de
globalização e políticas neoliberais de pilhagem (da banca financeira) e
desmontagem do Estado de Bem estar Social, a engenharia social volta-se
para as estratégias de criação da RPH: destruir o pacto liberal que
impulsionou a Globalização para, nas palavras de Korybko citadas acima,
trocar ou reorganizar o regime.
"Coletes Amarelos" com pauta de extrema-direita se espalham pela Europa |
O sistema cria sua própria oposição
Como o diretor Gus Van Sant mostrou magistralmente no filme Terra Prometida (Promised Land,
2015), o Capitalismo sabe jogar dos dois lados: situação e oposição.
Como sempre na História recente, a direita sempre se antecipa à
esquerda, simulando uma oposição a partir da própria frustração que o
sistema gerou.
Cria sua
própria oposição para reorganizar o sistema em um outro nível. Dessa vez
o retorno nostálgico do nacionalismo combinado com um Estado fascista e
policial, dando voz e representatividade a uma massa frustrada e
ressentida sob os escombros do Estado de Direito e da social-democracia.
Assustada, a
esquerda (que fazia parte do velho pacto da democracia representativa)
assiste à irrupção das RPHs como a dos “coletes amarelos”, cuja explosão
de revolta passa ao largo dos canais institucionais de representação,
como, por exemplo, as greves lideradas por sindicatos.
Se no
Brasil as Jornadas de Junho de 2013 abriram o caminho para o impeachment
de Dilma Rousseff e à chegada da extrema direita ao poder com Jair
Bolsonaro, na França um porta voz dos “gilets jaunes”, Christophe
Chalençon, declarou à rádio Europe 1 que ele veria “com gosto” um
“general de Villers” (Pierre Villers, general que se afastou das Forças
Armadas em 2017 após criticar Macron) como chefe de governo.
Um gigantesco “Efeito Heisenberg”
Até aqui as
RPHs foram criadas nas diversas “Primaveras Coloridas” que rodaram o
mundo como um laboratório de pesquisas antropológicas, sociológicas e
psicométricas que conseguiram precisar os pontos fracos das sociedades
para perturbar o status quo e manipular desestabilizações – produzir o
maior efeito com o mínimo esforço.
Com os
“Coletes Amarelos” assistimos a uma nova etapa: troca e reorganização de
regimes cooptando a frustração e o ressentimento de massas vitimadas
pela aventura da globalização e financeirização que destruíram direitos e
garantias sociais. Agora, coopta-se essa raiva como um movimento
antissistema. É o paradoxo da manutenção do sistema criando a própria
oposição que simula querer destruir o sistema.
Daí porque
as câmeras de TV parecerem amar os coletes amarelos e como estes
coreografam tão bem diante delas. Não tenham dúvida que uma revolução
real jamais será televisionada. Por isso, tudo que assistimos nada mais é
do que um gigantesco “Efeito Heisenberg” (sobre esse conceito clique aqui): a mídia não está relatando o que as pessoas fazem; relatam apenas o que as pessoas fazem para obter a atenção da mídia.
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