Haddad: “Não sei o que levou Gleisi a Caracas. É preciso cuidar do gesto, mas também da comunicação do gesto”
Ex-prefeito diz que o ambiente na Venezuela "não é democrático" e faz crítica à ida de presidenta do PT à posse de Maduro. Sobre Ciro Gomes, diz: "Você retoma o diálogo com quem quer dialogar"
São Paulo
Indagado se está de férias "desde o fim das eleições", Fernando Haddad, candidato derrotado por Jair Bolsonaro
na disputa pelo Planalto em 2018, se surpreende. "Férias? Você acha que
professor tem férias desse jeito? Estou preparando curso", afirma o
petista em entrevista ao EL PAÍS. O ex-prefeito paulistano, professor de
administração e gestão pública no Insper, volta ao trabalho em 11 de
fevereiro. Com relação à política, seu papel ainda é incerto. Sem
mandato e com seu maior padrinho eleitoral —Lula— atrás das grades,
Haddad tem pela frente o desafio de se manter relevante para não sofrer o
mesmo destino de Marina Silva,
de ver se esvair o capital político dos 47 milhões de votos que obteve
nas urnas. O professor rejeita o papel de "líder" da oposição ao Governo
de Bolsonaro e diz que vai atuar sem almejar qualquer posto no PT. Em
conversa de pouco mais de uma hora em sua casa em São Paulo, em 14 de
janeiro, o ex-prefeito falou sobre a Venezuela ("o ambiente lá não é democrático") e deixou sugerida uma crítica a ida de Gleisi Hoffmann a Caracas para a posse de Nicolás Maduro. “Não sei o que levou Gleisi a Caracas. É preciso cuidar não só do gesto, mas da comunicação.”
Pergunta. O PT enviou sua presidenta para a cerimônia de posse de Nicolás Maduro, isolado por quase todos os países da região. Por que o PT apoia Maduro?
Resposta. Eu gostaria de situar essa discussão em um plano um pouco diferente. Se não fosse a mediação pessoal do Lula durante seu Governo, já teria ocorrido uma intervenção dos Estados Unidos na Venezuela.
P. Mas passaram-se anos, muitas coisas aconteceram depois disso...
R. A obsessão da esquerda brasileira tem que ser com a paz, com a não ingerência. Evidentemente a situação na Venezuela se deteriorou. E o ambiente na Venezuela hoje não é democrático. Porque as partes não reconhecem os processos.
P. Mas essa degradação do ambiente democrático, você credita isso só à oposição?
R. Acredito que o Governo Maduro tem uma parte de
responsabilidade. É evidente que não há por parte da oposição um enorme
compromisso. Seria ingenuidade imaginar que a oposição não tem seus
interesses, inclusive de buscar um status quo anterior, que era o da
Venezuela como um quintal cheio de petróleo para os americanos. A
obsessão do PT é buscar um caminho no qual possamos restabelecer o
ambiente democrático na Venezuela. Que está difícil. Não é uma tarefa
fácil. Mas pode se tornar mais difícil ainda se houver uma intervenção
militar.
P. Você teria ido à posse do Maduro?
R. Não participei da discussão, não sei os argumentos e o que levou a Gleisi
(Hoffmann) a ir para Caracas. Existe uma questão que considero
importante, que é da mensagem que você passa ao tomar qualquer decisão. É
preciso cuidar não só do gesto que você considera mais adequado, mas da
comunicação desse gesto para a opinião pública mundial.
P. A justificativa do PT para não comparecer à
cerimônia de posse do Bolsonaro é que o processo democrático foi
inadequado devido à prisão de Lula. Você acha que a Venezuela tem um
processo democrático mais transparente que o Brasil?
"A obsessão do PT é buscar um caminho no qual possamos restabelecer o ambiente democrático na Venezuela"
R. São situações diferentes.
P. Por quê?
R. A questão do Brasil é que o líder das pesquisas foi impedido de participar da eleição.
P. Na Venezuela também. O opositor Leopoldo López está em prisão domiciliar.
R. O que eu digo e repito: a obsessão do PT
com a qual eu compartilho é evitar um conflito militar na região.
Brasil está há mais de 140 anos sem conflito militar com seus vizinhos. A
obsessão da centro-esquerda pacifista é buscar uma solução negociada.
Outra questão é comunicar adequadamente o que você quer comunicar com
seu gesto [a ida de Gleisi à posse de Maduro].
P. A ida dela não pode ser entendida como uma chancela do PT ao Governo Maduro?
R. O PT nasceu do questionamento de ditaduras de esquerda.
P. Considera o Governo de Maduro uma ditadura?
R. O que eu disse na campanha e eu repeti é que o
ambiente na Venezuela não é democrático. As forças políticas
venezuelanas hoje não respeitam o resultado de qualquer consulta que
você faça. Veja quantas consultas foram feitas nos últimos três anos ao
povo venezuelano, nenhum resultado foi considerado legítimo.
P. Em que medida o PT tenta se aproximar da oposição venezuelana?
R. Aí você está perguntado para mim, o que eu penso
não é necessário o que o PT pensa. Para saber o que o PT pensa você tem
que fazer uma entrevista com a Gleisi. O que eu penso e defendi na
campanha foi isso, não mudei de ideia. Considero a situação da Venezuela
grave do ponto de vista democrático, porque as partes não se
reconhecem.
P. Você já disse que Bolsonaro era uma ameaça à democracia. Ainda enxerga assim?
R. Se você tem um conceito estrito, tanques de
guerra na rua, alguém está armado te ameaçando... Nesse conceito de
democracia a ameaça pode estar mais distante. Mas se você entende
democracia enquanto ambiente onde são cultivados certos valores,
inclusive de proteção às minorias, sem dúvida, neste conceito, a
democracia está ameaçada. Os indígenas estão se sentindo ameaçados, a comunidade LGBTQ,
os professores e líderes de movimentos sociais também, porque podem ser
considerados terroristas a qualquer momento pelo presidente. A oposição
está se sentindo ameaçada, porque ele anunciou que ela terá dois
caminhos, a cadeia ou o exílio. Este conceito que eu acredito de
democracia, sim, está ameaçado. As instituições tem que funcionar com um
propósito, de fazer as pessoas se sentirem seguras independente do que
pensam, de sua orientação sexual.
P. O Congresso e o Supremo Tribunal Federal não estão preparados para exercer um contrapeso a estas medidas?
R. Veremos. Os sinais do Executivo são os piores
possíveis, então temos que ver se os contrapesos funcionarão. Veremos
como reagem a imprensa, o Judiciário e o Congresso a estas ameaças, que são reais.
P. Qual o papel do PT na oposição?
R. O PT já foi oposição no Brasil. Até 2002 nós
éramos um partido de oposição. E o PT fez uma oposição bastante
qualificada à época. Tanto é que logrou resultados na campanha de 2002
[quando Lula foi eleito pela primeira vez], e a transição do Fernando Henrique
para o Lula foi uma transição muito tranquila e civilizada, o que
demonstra de certa forma que as relações entre oposição e situação no
Brasil mantinham um padrão adequado. Estamos voltando à oposição desde o
impeachment da Dilma, mas tendo a experiência de 13 anos de Governo, o
que significa que vamos poder fazer uma oposição muito mais qualificada
do que fizemos antes.
P. Qual seria seu papel no PT nos próximos anos?
R. Meu papel é o que exercia antes e passo a exercer
agora: não tenho cargo, mas nunca tive antes de o PT chegar ao poder, e
nem por isso deixava de exercer na plenitude minha cidadania como
professor e articulista. Lembrando que o próprio Lula nunca precisou de
cargos para exercer cidadania, para conversar com o país, conversar com
outras forças democráticas do continente e da Europa.
P. Você gostaria de assumir a presidência do PT?
R. Não está nos meus planos. Eu nunca fiz parte da
burocracia partidária, nunca participei da vida interna do partido a não
ser quando convidado, na condição de professor universitário.
P. Você pretende liderar a oposição no Brasil?
R. Eu não acredito que alguém possa ter essa
pretensão. Estamos em um sistema multipartidário, nós ainda temos 30
partidos. Acredito que ninguém possa se arvorar a ser o chefe da
oposição.
P. Durante a campanha o rapper Mano Brown fez um discurso forte com relação ao PT, dizendo que o partido tinha perdido contato com suas bases. O que vocês têm feito de diferente para reverter isso?
R. Em primeiro lugar, o PT foi para o segundo turno
com 30% dos votos, e chegou ao final da eleição com 45% dos votos.
Contra 51% de 2014. Então nós não perdemos [as bases]...
P. Tem uma base ampla, mas não o suficiente para ganhar...
R. Estamos falando de um partido que ganhou quatro
eleições consecutivas. E perdeu a quinta tendo disputado em condições
competitivas. Eu acredito que, se não fosse a ação das fake news e o dinheiro de empresários para disseminá-las, nós iríamos dar muito mais trabalho.
P. Mas na época da campanha você deu razão ao Brown...
R. Dei.
P. E agora está falando que houve desgaste no Governo, fake news...
R. Uma coisa não tem a ver com a outra. As duas são
verdadeiras. Quando você é Governo durante quatro mandatos existe um
processo de distanciamento das bases em função do fato de que a maioria
dos quadros são assimilados pela máquina estatal. Isso é um processo
muito desagradável, infeliz, mas acontece. O sucesso eleitoral do PT
enfraqueceu o próprio partido em sua conexão com as bases. O outro
fenômeno é a crise política, ética, e econômica que aconteceu.
E a outra questão é que há novos atores no Brasil. Por exemplo, as igrejas evangélicas
tinham um tamanho quando ganhamos em 2002, e têm outro tamanho agora. E
nós não aprendemos a dialogar com a base dessa igreja, muito menos com
os líderes, que são em geral bastante conservadores.
P. Como recompor o cinturão vermelho, tradicional
reduto petista em São Paulo e onde desde as eleições municipais de 2016
vocês perdem terreno?
R. Acho que vai haver um processo natural de
migração do partido da máquina do Estado para a base. E nessa reconexão
vai haver um aprendizado. Vamos nos deparar com outro país. Muito fruto
inclusive do sucesso dos nossos Governos, mas que não necessariamente se
identificam com nossos valores. Não está dado que um pobre que deixa a
pobreza mantenha seus valores igualitários, por exemplo.
P. Alguns analistas dizem que o PT foi vítima do seu
próprio erro, ao tirar pessoas da pobreza, mas não formar cidadãos.
Como analisa essa crítica?
R. Eu acho que deveríamos ter trabalhado mais a
questão da consciência política. O avanço objetivo tinha que ter sido
acompanhado de um avanço subjetivo. O avanço material tem quer vir
acompanhado de um avanço espiritual. Essas coisas tem que vir juntas
para que o processo se consolide. Espiritual não no sentido religioso,
mas no sentido ético, de valores. A ética tem que ser uma obsessão de um
partido que transforma a vida material das pessoas. Se você dissocia
isso as pessoas atribuem o próprio êxito a questões que... Claro que
tudo depende do esforço individual também, mas isso tem que vir
acompanhado de um processo de formação política.
P. O pilar da crítica feita ao PT é a corrupção. Como enfrentar isso?
"Cabe a um Governo progressista fortalecer todos
os mecanismos estatais de combate à corrupção. E ninguém fez isso
melhor do que o PT"
R. O que cabia ao Governo fazer? Fortalecer os
mecanismos de combate à corrupção. Cabe a um governo progressista
fortalecer todos os mecanismos estatais de combate à corrupção. E
ninguém fez isso melhor do que o PT. A Polícia Federal
nunca esteve tão bem quanto no Governo do PT. O ministério Público
Federal idem. O Tribunal de Contas, o Judiciário, a Controladoria Geral
da União...Nunca atuaram tanto. Jamais haveria combate à corrupção sem
essas medidas. E nunca houve orientação do Governo para parar
investigação. Toda a legislação usada na Lava Jato foi aprovada durante os Governos do PT.
Isso é um ponto. Outro ponto: além de fortalecer os mecanismo de
combate, você tem que fortalecer as instituições de maneira a que se
evite a corrupção. Nesse ponto acho que nós falhamos em não aprovar a reforma política.
Porque nós sabíamos, está no nosso plano de Governo, a defesa do
financiamento público de campanha. O PT sabe desde sempre que havia uma
vulnerabilidade muito grande no sistema ao permitir, e não fomos nós que
inventamos a regra, o financiamento privado, mais do que privado,
empresarial, das campanhas eleitorais. E isso afetou todo o sistema
político, sem exceção.
Quando você permite o financiamento empresarial você cria um ambiente
em que as decisões individuais importam. E quando o comportamento
individual fala mais que o institucional, você está com um risco
elevadíssimo de alguém estar cometendo um erro em seu nome e te tornando
vulnerável. A verdade é que se pedia dinheiro no sistema político sem
nenhum protocolo. E isso foi se tornando a regra em todos os partidos. E
abriu espaço para crimes pequenos e para crimes enormes.
P. Que peso o Lula terá na coordenação do PT enquanto oposição?
R. O Lula vai ser sempre ouvido.
P. Você considera que o Lula ainda é mais um ativo do que um fardo para o partido?
R. Vamos supor que tivesse acontecido o seguinte
cenário: acharam uma conta em dólares do Lula e da Marisa num paraíso
fiscal. Se fosse algo assim, "tá aqui". Se tivessem apresentado uma
prova que tivesse convencido o partido de que realmente houve uma falha,
um crime, e que sendo ele cidadão brasileiro teria que responder por
aquilo, acho que nós teríamos lamentado, mas teríamos seguido adiante.
Mas não foi o que aconteceu. Eu me envolvi pessoalmente com o processo do tríplex
e lhe asseguro: ele não se sustenta. Não há prova cabal, como aconteceu
com os outros que estão presos. Com eles está lá: conta no exterior,
dinheiro na mala, diálogo gravado... Então, sim, ele é um ativo.
P. Qual o campo onde a oposição deve agir?
R. Há dois componentes importantes. Um que é mais
amplo, que é o campo da defesa dos direitos civis, que no meu juízo
estão ameaçados no Brasil. Estamos vendo aí os direitos indígenas sendo
atacados, na contramão do que reza a Constituição Federal.
Temos visto questões ambientais muito delicadas sendo questionadas pelo
Governo, tratados internacionais assinados pelo Brasil [ameaçados]...
As Nações Unidas
sendo questionadas em todas suas decisões e orientações, acabamos de
sair do pacto de imigração, sendo que somos um país que foi feito por
imigrantes. Nós estamos vendo a comunidade LGBTQ sendo ameaçada nas ruas
sem que as autoridades emitam nenhum juízo a este respeito. Estamos
vendo professores sendo ameaçados de monitoramento. Então são sintomas
muito preocupantes.
Há um outro plano de direitos sociais e econômicos. Aí inclui
política de valorização do salário mínimo, o destino do nosso patrimônio
público, nossas reservas de petróleo, cambiais, nossas estatais, o
destino das políticas de promoção da igualdade de renda em um dos países
mais desiguais do mundo, direitos trabalhistas, que já passaram por uma
primeira onda de reformas liberalizantes e desprotetoras do
trabalhador, e se anuncia uma segunda rodada de reformas que colocariam,
se aprovadas, o trabalhador em uma situação de maior vulnerabilidade
perante o capital. Direitos sociais ligados a serviços públicos,
sobretudo saúde e educação, que estão na mira do Governo...
P. O PT é muito cobrado a fazer uma autocrítica com relação aos erros. Você falou da reforma política, há algo mais?
R. Eu faço sempre a mesma consideração. Erramos
muito ao não fazer a reforma política, tínhamos que ter tentado fazer, e
acho que a condução da política econômica depois de 2012 teve
problemas. E a maneira como se pretendeu resolver esses problemas depois
da reeleição também foi um equívoco.
"Erramos muito ao não fazer a reforma política,
tínhamos que ter tentado fazer, e acho que a condução da política
econômica depois de 2012 teve problemas"
P. O PT aparentemente foi surpreendido por uma rede bem estruturada de WhatsApp por parte da campanha de Bolsonaro. Vocês pretendem investir nessa ferramenta de olho em 2022?
R. Fala-se do WhatsApp, mas na verdade essa
ferramenta foi acompanhada de três expedientes ilegais [por parte da
campanha de Bolsonaro]: o primeiro foi turbinar o aplicativo com caixa
2. O segundo foi usar cadastro de terceiros. E o último foi caluniar os
opositores com mentiras. De que eu era dono de Ferrari, tinha relógio de
500.000 reais, que eu era a favor do incesto... Então foram três
ilegalidades cometidas.
P. Mas aparentemente a campanha dele tinha uma rede estruturada há mais tempo, e mais experiência no seu uso.
R. Isso sim. Nós poderíamos ter feito. Mas o que de
fato alavancou a candidatura dele no final do segundo turno não foi
isso. Porque se fosse isso ele já teria avançado previamente. Ele batia
sempre no patamar de 18% das intenções de voto. Não passava de 20%. O
que fez ele passar este patamar foi, em primeiro lugar, a facada, que
levou ele para 26%. E depois disso ele só cresceu com o uso ilegal do
WhatsApp.
P. O Ciro Gomes, a quem você chamava de amigo, bateu muito no PT durante a campanha. Retomaram o diálogo?
R. Olha, você retoma o diálogo com quem quer
dialogar. As declarações do Ciro têm sido muito duras. Acho que existem
episódios que ele descreve que não são dessa maneira. O episódio do PSB,
por exemplo. O PSB fez um acordo com o PT, divulgado com transparência:
nós apoiávamos o Paulo Câmara em Pernambuco em troca do apoio deles ao Fernando Pimentel em Minas, e da neutralidade no plano nacional. Foi uma construção do PSB. Isso é do jogo democrático.
Nenhum comentário:
Postar um comentário