Muitas vezes
encontramos verdades no pensamento conservador. Apenas que elas estão invertidas.
Um exemplo é “Apocalypto” (2006). Dirigido por um conservador assumido, o ator
Mel Gibson, o filme quer mostrar como foi possível a civilização maia, que
alcançou sofisticado conhecimento em Astronomia, Matemática, Artes e
Arquitetura, ter se extinguido muito tempo antes da chegada dos espanhóis na
América. A hipótese mais aceita é a ecológica (esgotamento dos recursos
naturais e mudanças climáticas), que o filme partilha ao acompanhar um
protagonista que teve sua tribo destruída e levado prisioneiro para a capital
maia para sacrifício em um ritual sangrento para entreter as massas. Na capital
maia encontramos seca e doenças. A ignorância e amoralidade poderiam ter levado
à decadência. Mas também a dominação e escravidão. Luta de classes custa caro e
pode exaurir uma sociedade. Esse é o surpreendente viés aberto por Mel Gibson a
partir de um pressuposto conservador em “Apocalypto”.
No livro Antropologia
do Cinema (Brasiliense, 1987), a certa altura o pesquisador italiano Massimo
Canevacci afirma que muitas vezes encontramos verdades na Direita. Apenas que
estas apresentam-se invertidas. Canevacci faz alusão ao método de Marx de
inverter o idealismo hegeliano, para coloca-los com os pés no chão – o
materialismo histórico.
Pelo menos no caso do diretor e ator Mel
Gibson, parece ser verdade. Gibson, um conservador católico declarado e filho
de um notório negador do Holocausto (Hutton Gibson), foi duramente criticado
pelo filme A Paixão de Cristo (2004)
por se tratar supostamente de um filme religioso “antissemita” e “extremamente
brutal”.
O filme posterior, Apocalypto (2006), já inicia com uma epígrafe do historiador
conservador norte-americano Will Durant: “Uma grande civilização não pode ser
conquistada por fora, antes de ser destruída por dentro”. Ao lado de outro
historiador, Leo Strauss, são pesquisadores cujas ideias foram associadas à
política externa neoconservadora da Era Bush, cujas obras combatiam o
relativismo multiculturalista da antropologia.
Isto é, através de um Direito Natural,
encontrar uma referencia filosófica que permita juízos sobre culturas diversas
no tempo e no espaço – logicamente, a supremacia do “juízo” da democracia
norte-americana sobre todas as outras culturas e países. Ou seja, o Direto
Natural se sobrepondo ao Direito Positivo: a busca daquilo que é universalmente
correto e justo, acima das regras e normas vigentes em um país ou cultura.
Uma história universal
Em Apocalypto,
Gibson quer narrar uma história supostamente universal: o final de uma civilização
– as guerra frequentes entre tribos e cidades-estado, o desespero das elites
por colheitas prósperas e o sacrifício serial de corpos e cabeças decepadas como
sangrentos rituais para aplacar a fúria do Deus Sol. E por fim, a chegada das
caravelas dos conquistadores espanhóis no século XVI, para encontrar uma
cultura já devastada e submetê-la.
Como uma civilização conhecida pelos
avançados conhecimentos astronômicos, matemáticos e arquitetônicos foi capaz de
se autodestruir? Para Gibson, acompanhando a epígrafe de Durant, o grande
responsável foram os excessos de uma civilização que quando chegou ao ápice,
esgotou os recursos naturais ao mesmo tempo em que se apegava a deuses pagãos
para justificar a violência e a dominação. Isto é, por não respeitar os
verdadeiros valores universais que fundamentariam uma sociedade.
Gibson, assim como Durant, aborda um tema
universal: porque as civilizações crescem, chegam ao ápice, para depois
decaírem? Mas a resposta é invertida, idealista e moralista: a culpa são os
“valores”, ou melhor, a falta deles.
Apocalypto aborda essa
indagação em uma narrativa altamente convencional, no clássico clichê do que
melhor o cinema norte-americano faz: filmes de perseguição - de carros, aviões,
trens e, no caso desse filme, a pé, correndo pelas selvas da América Central.
Porém, mesmo nessa narrativa simplista igual
a centenas de filmes hollywoodianos, a virtude do roteiro assinado por Gibson e
Farhad Safinia é explorar argumentos que permitem reverter e “colocar os pés no
chão” essa visão moralista e conservadora: mais do que desrespeito a valores
morais universais e humanistas, a civilização maia criou uma perversa estrutura
social que se autoconsumiu pela dominação, exploração e escravidão.
Também igualmente interessante é o viés
gnóstico da reversibilidade simbólica do Mal que caracterizaria a evolução
humana: como o avançado conhecimento científico, estético e teológico de uma
civilização se reverteu no seu oposto – obscurantismo, violência, guerras e, no
final, autodestruição.
O Filme
Apocalypto foi filmado em
uma escala épica em selvas verdadeiras e ruínas maias reais da América Central.
Se em A
Paixão de Cristo os personagens falavam o aramaico bíblico, em Apocalypto todas as linhas de diálogo
são faladas em um dialeto maia com legendas em inglês, e com um grupo de atores
desconhecidos. Pelo menos para o grande público dos filmes hollywoodianos.
O filme acompanha um jovem chamado
Pata-de-Jaguar (Rudy Youngblood), membro de uma tribo pacífica que vive em
harmonia com a selva, cuja aldeia repentinamente é atacada por um grupo
fortemente armado de guerreiros maias. Eles matam e estupram
indiscriminadamente, incendiando toda a aldeia. Os sobreviventes são feitos
prisioneiros para serem levados como escravos.
Pata-de-Jaguar ainda tem tempo de esconder
sua esposa grávida e seu pequeno filho em um buraco, livrando-os da chacina.
Mas ele também é feito prisioneiro e condenado a marchar junto com os outros em
direção à capital maia.
Depois de uma sofrida e perigosa caminhada,
chegam à metrópole para encontrar uma civilização em plena decadência: as
plantações dizimadas pela seca, doenças, centenas de crianças órfãs e
miseráveis, e milhares de escravos revestidos de pó construindo novos templos e
edificações em cenas que mais parecem as célebres imagens de mineiros do
fotógrafo Sebastião Salgado.
E, claro, uma elite que se refastela na
opulência com seus pequenos filhos obesos e mulheres cercadas de joias e
adereços.
Lá, o grupo de Pata-de-Jaguar descobre que
não serão escravos – são escolhidos para um sangrento ritual de oferendas de
corpos, cabeças decepadas e corações arrancados por sacerdotes, para serem
jogados escadaria abaixo de uma alta pirâmide como forma de aplacar a ira do Deus
Sol e fazer a chuva e as fartas colheitas voltarem.
Na verdade, um espetáculo para manter as
massas entretidas – milhares de pessoas embaixo assistem, regozijando-se a cada
cabeça que rola pelas escadarias.
O melhor de Hollywood: filmes de perseguição
Pata-de-Jaguar só pensa em uma coisa: fugir
para resgatar sua família, presa no profundo buraco sob o risco de animais e
intempéries.
Depois disso, a narrativa de Apocalypto incorre naquilo que melhor
Hollywood faz: as perseguições: Pata-de-Jaguar foge pela floresta com um grupo
de guerreiros no seu encalço com sede de vingança – antes de escapar, o
fugitivo matou o filho do líder dos guerreiros.
Na
perseguição temos todos os clichês de filmes como Rambo, O Predador e
congêneres, com direito ainda a uma alusão a Apocalipse Now: Pata-de-Jaguar emergindo de um pântano de areia
movediça lembrando o atávico assassino da selva de Martin Sheen.
A luta de classes de Mel Gibson - alerta de spoilers à frente
A cena-chave de Apocalypto, sutil mas que permite essa inversão do moralismo do
filme, está na sequência dos sacrifícios humanos seriais no alto da pirâmide
maia. Na verdade, um espetáculo de “pão e circo” para as multidões miseráveis
da metrópole.
Quando chega a vez de Pata-de-Jaguar ter o
seu coração arrancado, inicia-se um eclipse do Sol. Prontamente o sumo
sacerdote tranquiliza a multidão como fosse um grand finale cênico de tanta matança – bons conhecedores de
Astronomia, a elite sacerdotal já sabia que ocorreria o eclipse. Já estava
previsto para fazer parte do show para enganar as massas, e transformar tudo
num evento religioso – um “sinal” do Deus Sol que já estaria saciado de tanto
sangue.
Por isso, o protagonista é poupado no último
instante.
Há muitas teorias sobre o porquê do
desaparecimentos da civilização maia, muito tempo antes da chegada dos
espanhóis – o filme propositalmente incorre nesse erro histórico no final, para
poder reforçar a epígrafe que abre Apocalypto.
A hipótese dominante é a ecológica –
esgotamento dos recursos, mudanças climáticas, seca, fome e doenças. Mas com
essa sequência em que mostra a escravidão, rituais como um show para entreter
as massas e manter o poder de uma elite que monopolizava o conhecimento, o
filme põe em bases sociais e políticas os fatores da decadência maia.
Uma elite predatória que esgota não só a
natureza mas a própria sociedade através da exploração e todos os esforços
econômicos para manter a dominação. Luta de classes é cara, e esgota os
recursos econômicos e naturais.
Essa é a uma versão politizada da questão
gnóstica do Mal – a “reversibilidade simbólica”: tudo tende a se reverter no
seu contrário. Progresso em retrocesso, a paz em guerra, a ciência em horror, o
conhecimento em ignorância e assim por diante.
Por isso Apocalypto
é um filme surpreendente: seu pressupostos e argumentos podem ser
conservadores, mas a paixão de Gibson em construir as mais eficazes e
perturbadoras cenas sangrentas abre no filme o viés sócio-político para
explicar a extinção da civilização maia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário