A manifestação neonazista e o atentado ocorridos na semana passada em Charlottesville giram em torno da disputa simbólica da herança representada pelos monumentos confederados. A cidade da Virgínia, seguindo o exemplo de algumas outras cidades do sul dos Estados Unidos, pretende remover a estátua do general Robert E. Lee, e os supremacistas brancos estavam por lá para defendê-la.
Lee foi o militar que comandou o exército da Virgínia
contra a União, numa guerra separatista que queria manter a escravidão
no Sul do país. A discussão tomou fôlego em 2015, depois que um supremacista branco matou nove
pessoas negras em um atentado a uma igreja em Charleston, na Carolina
do Sul. A cidade de New Orleans, por exemplo, comemorou, em maio
passado, a remoção do último dos quatro monumentos confederados, exatamente uma estátua do general Lee.
O prefeito Mitch Landrieu, que é branco, reconheceu que tais
monumentos celebram a supremacia branca, e disse que tal ato poderia
fazer com que o estado da Louisiana finalmente começasse a se curar [dos
males da escravidão], pois “não é bom continuar reverenciando uma falsa
versão da história e colocar a Confederação em um pedestal”,
completando que há que se reconhecer que os confederados estavam no lado
errado da história.
“Não é bom continuar reverenciando uma falsa versão da história e colocar a Confederação em um pedestal”
Por “lado errado da história”, por mais que se tente amenizar ou
mesmo mascarar a intenção dos estados do sul durante a Guerra da
Secessão, deve-se entender:o lado que defendia a manutenção de uma
economia baseada na escravidão.
Não é apenas nos Estados Unidos que o “lado errado da história” é
celebrado e mascarado. Aqui no Brasil, em Santa Bárbara D´Oeste (SP), há
mais de 30 anos acontece a Festa Confederada.
Com patrocínio estatal e incluída no calendário oficial do Estado de
São Paulo, a festa, segundo os organizadores, foi organizada para
“manter viva a memória dos nossos ancestrais” – ou seja, os confederados
que, depois de derrotados nos sul dos Estados Unidos, vieram procurar
abrigo no Brasil, onde ainda havia escravidão.
A história desses ancestrais e de como chegaram a esta região do estado de São Paulo pode ser lida no livro “Brazil: the Home for Southerners”
(“Brasil, lar dos sulistas”, em tradução livre), do reverendo Ballard
S. Dunn. Na festa dos descendentes dos confederados brasileiros, assim
como nas casas e nas manifestações dos supremacistas estadunidenses, a bandeira confederada está em todos os lugares: nas roupas, na decoração, nos uniformes, pintada no palco onde acontecem shows e apresentações.
O contexto dessa imigração
Um dos grandes problemas deixados por séculos de escravidão foi o que
fazer com o enorme contingente de negros libertos ou libertados, que
nunca seriam totalmente integrados à sociedade. Aos olhos dos
ex-senhores e das autoridades, representavam tanto uma ameaça à ordem
pública, em locais onde eram muito numerosos, como uma ameaça à
composição étnica, por serem considerados inferiores.
Os Estados Unidos fundaram uma colônia na África (Libéria), para onde
enviaram todos os negros que se dispunham a deixar o país, com todas as
despesas pagas. A ideia de uma colônia de negros norte-americanos no
Brasil, mais especificamente na região amazônica, também era bastante
atraente, por ser mais perto e por acreditarem que tínhamos aqui um
modelo de sociedade menos racista.
O governo brasileiro chegou a ser consultado
em algumas ocasiões, abortando a ideia porque, na época, mesmo antes da
Abolição por aqui, já se pensava em um processo de branqueamento da
população. Havia leis que proibiam a entrada
de africanos livres no país e, ainda em 1945, imigrantes deveriam ser
selecionados de acordo com a “necessidade de preservar e desenvolver, na
composição étnica da população, as características mais convenientes de sua ascendência européia.” A política de incentivos para atrair imigrantes europeus brancos acabou atraindo também os brancos norte-americanos.
Com o fim da Guerra Civil, alguns sulistas brancos escravocratas se
sentiram humilhados com a derrota imposta pelo norte abolicionista,
acreditando que não havia mais condições de permanecerem no país. Na
década de 1860, o reverendo Ballard S. Dunn fez uma longa expedição pelo
Brasil e acabou escolhendo, com o aval do Imperador, uma região no
interior do estado de São Paulo. Mudando-se para lá junto com várias
famílias, fundou os povoamentos que dariam origem às cidades de
Americana e Santa Bárbara D´Oeste. A ligação com o passado é tão forte
que até 1998, o brasão de Americana ainda fazia alusões à bandeira confederada.
Nenhum problema que os descendentes de confederados brasileiros queiram continuar reverenciando seus antepassados, mas que o façam com a verdade, em respeito à História e aos descendentes de escravizados.
Os descendentes dos confederados de Santa Bárbara D´Oeste,
representados por uma associação chamada Fraternidade Descendência
Americana, soltaram uma nota condenando e lamentando o atentado em
Charlottesville. A nota contém trechos de uma mesma nota emitida em
2015, quando do atentado na igreja de Charleston, como podemos ver reportagem, e pode ser lida na íntegra aqui , mas da qual destaco:
“A Fraternidade Descendência Americana representa milhares de descendentes de imigrantes Americanos que escolheram o Brasil como novo lar após sofrerem os horrores da guerra da secessão. Este conflito resolveu todas as divergências filosóficas, políticas, econômicas e sociais, onde o lado vencedor ditou as regras para todos daquele país, cujos efeitos refletem no atual sistema de vida dos Norte Americanos. Nossos ancestrais encontraram no Brasil o abraço acolhedor e a paz para recomeçarem suas vidas, sendo seus descendentes os maiores demonstradores da integração entre raças e povos frutos dos casamentos inter-raciais que ocorrem desde das primeiras gerações de descendentes.”
E:
“Aproveitamos para ressaltar que o General Robert E. Lee é considerado um dos melhores generais da história dos EUA e que ele não possuía escravos e entendia que a escravidão era um grande mal. Ele liderou as tropas confederadas na sua luta pela independência. Desta forma, o General Robert E. Lee não representa os grupos extremistas de direita estadunidense.”
Há tantos problemas nestes dois parágrafos acima que fica difícil
começar, mas vou me ater ao que se refere ao general Lee. Nenhum
problema que os descendentes de confederados brasileiros queiram
continuar reverenciando seus antepassados, mas que o façam com a
verdade, em respeito à História e aos descendentes de escravizados.
“Informações
sobre a vida de Lee foram editadas para apresentá-lo sob uma luz
favorável, começando imediatamente após sua morte – até mesmo no Norte”,
diz este artigo,
que ainda traz a seguinte declaração do ex-escravo, escritor e
abolicionista Frederick Douglass: “Dificilmente podemos pegar um jornal
que não esteja cheio de bajulações nauseantes” acerca de Lee, sobre quem
“parece que o soldado que mais matou homens em batalhas, até mesmo por
má causa, é o maior dos cristãos, qualificado por um lugar no paraíso.”
O artigo também dá conta de que Lee teve escravos sim, ao contrário
do que muitos tentam negar: “Lee possuía escravos próprios antes da
Guerra Civil, até 1852 [sua esposa continuou possuindo depois disto], e
considerou comprar mais depois desta data, de acordo do a biografia escrita por Elizabeth Brown Pryor, que se baseia nas correspondências de Lee.” Em carta para a esposa, o general diz o que acha da escravidão: “A escravidão, como instituição, é um mal moral e político em qualquer país”.
A Guerra Civil foi, sim, uma luta pela manutenção da escravidão
Deve ser daqui que a Fraternidade Descendência Americana tirou a
declaração sobre Lee, esquecendo-se, no entanto, do que complementa essa
sua declaração. Lee afirma que a escravidão era pior para os brancos do
que para os negros, e que era necessário que os negros a suportassem,
para que fossem civilizados:
“A dolorosa disciplina pela qual estão passando é para a instrução de
sua raça… Por quanto tempo esta instituição será necessária é sabido e
ordenado por uma sábia Providência Misericordiosa.”
Ou seja: só Deus sabia, e não cabia aos homens libertá-los. Aqui se
confirma o argumento de que a Guerra Civil foi, sim, uma luta pela
manutenção da escravidão, na qual a religião foi forte componente. O
que pode ser confirmado neste artigo, que a coloca no centro das declarações dos vários estados confederados.
Ou seja, naquele tempo e agora, os símbolos confederados, como a
bandeira e as estátuas do general Lee, representam um ideal defendido
tanto por Trump quanto pelos supremacistas brancos: a américa para os
americanos – e apenas os brancos protestantes. Os mesmos que migraram
para o Brasil e deram origem às cidades de Americana e Santa Bárbara
D`Oeste. Que seus descendentes queiram honrar sua memória é
completamente entendível, mas que também assumam a verdade histórica da herança que trouxeram com eles.
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