No último dia 9 de
agosto, o técnico de futebol Cuca foi multado em R$ 3,6 milhões pelo
Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) por ter pago menos
impostos sobre seu salário do que deveria durante o tempo em que foi
treinador do Santos e do Botafogo.
O atual técnico do Palmeiras
recebia por meio de sua empresa e pagava, como pessoa jurídica, uma
alíquota de 15% a 25% do que era considerado lucro da companhia. Para a
Receita Federal, Cuca deveria ter sido tributado como pessoa física e
recolhido 27,5% de imposto - a constituição de uma empresa seria uma
manobra para pagar menos ao Fisco.
Ao comentar o assunto na
época, o treinador disse não saber que a prática era ilegal. "Nem sei
quem é Carf, pensei que era jogador", declarou em entrevista coletiva,
quando informou que recorreria da decisão.
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Em um caso similar, a Receita processou o jogador Alexandre
Pato, condenado em fevereiro a pagar R$ 5 milhões - também cabe recurso.
À
BBC Brasil, a assessoria do clube afirmou que o posicionamento de Cuca
sobre o caso foi colocado durante a entrevista coletiva dada no dia 11. A
assessoria de Pato não retornou até a publicação desta reportagem. Mas a
verdade é que o expediente não é exclusivo do futebol. No Brasil, os
mais ricos usam uma série de estratégias para pagar menos impostos sobre
renda e patrimônio.
A grande maioria dos casos, entretanto, não é
considerada ilegal. São práticas conhecidas como "elisão fiscal",
quando se diminui a carga tributária com o uso de regras previstas pela
própria legislação.
O chamado planejamento tributário só está
acessível a quem tem melhor situação financeira, já que algumas
operações não valem a pena para rendas mais baixas ou só são possíveis
quando o patrimônio é maior. Nesses casos, os contribuintes costumam
contratar consultorias para garantir que todas as operações estarão
dentro da lei.
O olho do dono
Constituir uma empresa está entre os mecanismos mais recorrentes do planejamento tributário. As razões são muitas.
Lucros
e dividendos recebidos por pessoa física, por exemplo, são totalmente
isentos de impostos no Brasil. A justificativa é que esses rendimentos
já seriam taxados dentro das companhias, que pagam ao Fisco até 34% de
seu lucro.
Na
prática, contudo, a cobrança acaba sendo bem menor para diversas
empresas, segundo o economista Sérgio Gobetti, do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea).
É o que acontece, por exemplo, com o
regime de lucro presumido. Nessa modalidade, o governo assume que o
lucro é de até 32% do faturamento da firma e cobra como imposto 24%
sobre esse percentual - ou seja, 7,68% do faturamento.
Um número
significativo de médias empresas do setor de serviços que têm baixos
custos operacionais, entretanto, como consultorias ou escritórios de
advocacia, têm margem de lucro bem maior. Se a companhia está no regime
de lucro presumido, ela não paga imposto sobre essa diferença.
Além
disso, empresas com faturamento anual de até R$ 3,6 milhões - limite
considerado generoso por Gobetti - podem se enquadrar no regime do
Simples, no qual a tributação vai de 4% a pouco mais de 22%, a depender
do porte e do setor do contribuinte.
"Esse modelo só existe no
Brasil. Em outros países, o teto para o faturamento de um regime para
micro e pequena empresa é no máximo de US$ 100 mil", diz Fernando
Gaiger, pesquisador do International Policy Centre for Inclusive Growth
(IPC-IG), ligado à ONU.
O número excessivo de modalidades de
tributação foi criticado pelo próprio secretário da Receita. Em
audiência pública no Senado em maio, Jorge Rachid ressaltou que a
"proliferação de sistemáticas diferenciadas" propicia a "migração
artificial" e "distorsiva" de grupos de contribuintes "que se beneficiam
ao sair da regra geral para regras específicas menos onerosas".
Se meu apartamento falasse
Outra
forma que muitas pessoas usam para escapar do imposto de renda é
registrar os imóveis no nome da empresa. Isso porque a alíquota de 27,5%
que seria cobrada sobre o rendimento dos aluguéis para pessoa física
cai para 15% na pessoa jurídica.
Quem tem poder aquisitivo maior
ainda e um número de imóveis grande o suficiente para constituir um
fundo imobiliário pode pagar zero imposto - já que nesse caso o
rendimento do aluguel passa à categoria de lucros e dividendos.
Velozes e furiosos
Outra estratégia comum, segundo Gobetti, é o
registro de veículos - carros de luxo, lanchas e helicópteros - como
patrimônio da companhia. Nesses casos, todos os gastos com os bens são
considerados despesas operacionais da empresa e reduzem a base para
tributação sobre lucro.
Isso se soma ao fato de que aeronaves
particulares, iates e lanchas são isentos de impostos como o IPVA, pago
pelos donos de automóveis, como lembra a professora de direito
tributário da Fundação Getulio Vargas (FGV) Tathiane Piscitelli.
"Particularidades como essas mostram que há espaço para melhorar a
taxação sobre propriedade no Brasil", avalia.
A partilha
Há
ainda o que os especialistas chamam de "planejamento sucessório",
estratégias para desviar dos impostos cobrados sobre herança.
Pais
e filhos podem, por exemplo, se tornar acionistas de uma holding
familiar. Ou seja, imóveis e ações são transferidos para empresas que
têm os herdeiros como sócios.
Assim, eles ficam isentos do Imposto
de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e do imposto sobre herança, o
ITCMD (Imposto de Transmissão Causa Mortis), que chega a 8% no Brasil -
um dos menores valores do mundo. Nos EUA, essa taxação atinge 40% e na
França, 60%.
Nesses países, uma estratégia dos milionários é
"doar" parte de suas fortunas para instituições e fundações privadas e
pagar pouco ou nenhum imposto - não há um limite do valor que pode ser
abatido do Imposto de Renda por esse meio.
Essas fundações muitas vezes são criadas pelos próprios doadores e atuam usando esse dinheiro para promover seus interesses.
O jornal americano The New York Times publicou um artigo em 2015 argumentando que a doação feita pelo criador do Facebook, Mark Zuckerberg, para uma instituição que ele criou estaria longe de ser caridade, como foi anunciado. O bilionário se defendeu dizendo que não recebe benefícios fiscais com o tipo de instituição que criou - e que poderia ter criado uma fundação tradicional se fosse esse seu interesse.
A publicação ponderou, no entanto, que através da Chan-Zuckerberg Initiative o bilionário poderia fazer doações políticas, lobby para aprovar leis de interesse próprio, e que seus bens pessoais não seriam levados em conta no caso de processos judiciais.
No Brasil, segundo Gobetti, isso existe, mas é menos comum, pois os outros mecanismos existentes acabam satisfazendo as necessidades das famílias.
De volta para o futuro
A reforma tributária que está sendo discutida no Congresso não tratará de praticamente nenhuma dessas questões, diz Gaiger, do IPC-IG. "O grande objeto da reforma é a confusão da tributação de bens e serviços", acrescenta.Na semana passada, o relator da proposta na Câmara, deputado Carlos Hauly (PSDB-PR), apresentou o esboço da Proposta de Emenda Complementar (PEC) que tratará do tema ao Planalto.
A ideia central é substituir tributos como o ICMS, ISS e PIS/Cofins por um imposto único, à semelhança do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) adotado em países europeus.
"Os ganhos de eficiência para a economia seriam grandes, mas nada disso muda nosso problema de regressividade", pondera o economista. Ele se refere ao desenho do sistema tributário brasileiro, que, ao taxar mais o consumo do que a renda, cobra mais de quem é mais pobre. "Consertar isso passa pela tributação da pessoa física", completa.
Para Gobetti, do Ipea, uma "reforma tributária real" acabaria com todos os regimes especiais e unificaria a alíquota em 22,5% para todos os rendimentos de capital, com uma redução em paralelo da tributação sobre o lucro das empresas, para que não houvesse aumento da carga tributária.
Durante apresentação do texto preliminar da PEC em audiência em comissão especial da Câmara nesta terça-feira, Hauly falou sobre a regressividade do sistema brasileiro e destacou que a carga tributária é maior para as famílias de baixa renda.
Entre as propostas apresentadas, a única voltada especificamente para essa questão foi a de isenção de impostos para alimentos e medicamentos.
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