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quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Sobre a necessidade de se rebelar: apologia ao motim, crítica à revolução, por Ramon T. Piretti Brandão.

Uma postura realista e sólida frente à nossa atualidade exige que não somente desistamos de esperar pela revolução, mas, igualmente, que paremos de deseja-la.

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Ramon T. Piretti Brandão*, Pragmatismo Político
A trajetória histórica padrão: revolução (à direita ou à esquerda), reação, traição e re-fundação de um governo ainda mais forte e opressivo (por favor, não compreendam a palavra opressivo apenas como sinônimo de tanques de guerra nas ruas, toques de recolher e militares carniceiros em nossas casas). Falo de algo tanto mais complexo quanto mais imperceptível. Trata-se de algo que se atualiza, que se desenvolve; trata-se do que se chama um “eterno retorno da história”, cada vez mais aprimorado, cada vez mais preciso, cada vez mais invisível e, por isso mesmo, cada vez mais presente. A regra, única regra neste eterno renascer da humanidade são as botas marchando sobre nossos corpos.
Aceitemos: o chamado “ciclo do progresso” não passa de um vício. As revoluções, por mais – ou menos – virtuosas que sejam suas ideias, não passam de uma armadilha do destino, de um pesadelo no qual, não importa o quanto lutemos, sempre seremos capturados e submetidos ao infinito ciclo da roda cármica de um eterno retorno que incuba Estados e governos.
A História nos diz que o Estado existe para garantir a permanência da cultura, das tradições e dos hábitos. No entanto, foram os levantes, as insurreições, os motins, enfim, esses movimentos que não chegam a se tornar um ciclo, os responsáveis pelas transformações estruturantes da vida cotidiana. Que seria da escravidão se não fossem os rebeldes e os inconformados transgressores da lei? Que seria da inclusão feminina na vida pública se não fossem as rebeldes e as inconformadas transgressoras da lei? A rebeldia, a rebelião, a desobediência e a transgressão das normas possuem um espaço fundamental no desenvolvimento da humanidade. Sem eles, que seríamos nós?
Se o Estado é história, então os movimentos rebeldes são o “momento proibido”, são a interrupção de uma maquinaria violenta que nos congela enquanto potência de transformação. São, portanto, esses motins os viabilizadores de uma espécie de fresta, de um rasgo, de uma rachadura que nos possibilita a busca por novas realidades possíveis; são, enfim, uma espécie de manobra xamanística que se realiza num espaço improvável, num ângulo impossível.
O Estado, através da História, busca permanência. Esses movimentos proibidos, por sua vez, são temporários. São como que “experiências de pico” quando comparadas aos padrões de normalidade da consciência e de experiência no mundo. Tal como os grandes festivais, esses movimentos não podem acontecer a todo tempo; se assim o fosse, não seriam extraordinários. Ademais, em seus relâmpagos, tais experiências proporcionam vitalidade, intensidade e potência de maneira a transformar toda uma vida individualmente. Creio, aliás, que seja este um dos motivos de a humanidade ainda permanecer viva.
É aí, então, que aquela maquinaria com suas botas bem lustradas retornam – afinal, o eterno retorno é implacável – e percebem que algo mudou, que trocas e interações ocorreram nas experiências cotidianas e que isso, efetivamente, constituiu alguma diferença.
A revolução, que muitos aguardam ainda hoje, jamais nos levou a lugar algum. Aliás, que é a revolução? Qual é sua cara, sua forma, sua cor, seu cheiro? No que foram transformados os sonhos revolucionários? Onde está o sonho anarquista? Onde estão a sociedade e a cultura livres?
Assumamos que a equação homem deu errado ou transformemos, de uma vez por todas, o mundo.
As transformações somente ganham vida nos momentos de motim. E são destruídas no instante mesmo em que o motim se torna revolução, em que a derrubada de um governo lança ao topo um “novo” governo. Quero lhes dizer, com isto, que o sonho e o ideal revolucionário já estão capturados, apropriados e, por isso mesmo, traídos. Todo o aparato bélico do Estado está apontado para o centro de nossos crânios e somente a consciência rebelde nos trará algum vigor.
Gilles Deleuze, filósofo francês, foi preciso ao analisar a figura caricata de Adolf Hitler, dizendo que ele representava algo que estava acima da própria instituição ou Estado nazista. Diz ele:
Se Hitler conquistou o poder mais do que o Estado Maior Alemão, foi porque dispunha em primeiro lugar de micro-organizações que lhe davam um meio incomparável, insubstituível de penetrar em todas as células da sociedade”.
Assim, a maquinaria moderna do Estado e dos governos, sempre sedentas e abertas a incorporar algo que a aperfeiçoe, compreendeu muito bem a experiência nazista. Com isso, transformou um Estado que se manifestava exclusivamente através de governos e instituições em algo ultra sofisticado. Hoje, o Estado sou eu, você, seus pais, filhos e todos os agentes sociais.
Você deve estar se perguntando: o que fazer, então? Bem, primeiro, assumir que a luta é desigual. O Estado nos esmaga com o mesmo esforço que nós esmagamos a uma barata. Assim, talvez, possamos nos rebelar, insurgir de modo a não confrontar o Estado frontalmente, mas pelas frestas, pelas rachaduras deixadas em aberto por Ele.
Tal como uma guerrilha, liberemos espaços de terra, de tempo, de imaginação e dissolvamo-nos entre as vísceras desde aparato para, depois, nos re-fazermos em outros espaços, antes que sejamos descobertos e que nos esmaguem. Deixemos de pensar em limites geográficos e passemos a pensar em zonas, em círculos, em becos. Que nos tornemos invisíveis tais como os mecanismos de poder contemporâneos, passando-nos desapercebidos justamente por não nos relacionarmos com o espetáculo, por não nos expormos a ele e por conduzirmos uma vida que, real, não se faz visível aos agentes da simulação.
Nosso grande trunfo estará em nossa invisibilidade. Ocultação que não se fará ver pelo Estado exatamente por não se permitir definir pela História. O instante em que aparecemos é o mesmo em que nos fazemos desaparecer, deixando um invólucro de vazio até que brotemos em outro espaço, sob outra forma e outra linguagem. Eis uma tática possível num contexto onde o Estado, que nos agride, é onipresente mas, ao mesmo tempo, repleto de fendas e rachaduras. Que sejamos, então, uma espécie de microcosmo ativo dos antigos sonhos de liberdade.
Que os levantes nômades ganhem força. Levantes que, na maioria dos casos, serão radicais a ponto de se recusarem a participar da carnificina promovida pelo espetáculo, se retirando deste território de simulação e desaparecendo.
Que os nossos ataques sejam direcionados às zonas de controle, sobretudo às ideias. Que nossa defesa resida na arte marcial, na arte oculta das artes marciais, que não se faz visível. Essa máquina de guerra nômade e praticamente incorpórea da qual lhes conclamo a fazer uso conquista sem ser notada e se move antes de ser descoberta.
Quanto ao futuro, bem, apenas o autônomo consegue planejar a autonomia a cria-la e a se organizar para e por ela. Digamos que o primeiro passo reside na constatação de que tudo isso nasce a partir de um simples ato de percepção.
Uma postura realista e sólida frente à nossa atualidade exige que não somente desistamos de esperar pela revolução, mas, igualmente, que paremos de deseja-la.
*Ramon T. Piretti Brandão é mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e colabora para Pragmatismo Político

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